quarta-feira, 3 de agosto de 2011

DIÁRIO DE BORDO: CICATRIZES DO TEMPO

                                          Jorge Bichuetti

Dores, o ar fugindo... Corpo cansado... Lá fora, a lua e as estrelas superam o cinza das nuvens e brilham... Do meu lado, o livro "Canção Inacabada" de Joan Jara: um livro que desnuda as dores e os sonhos da nossa Latinoamérica... A Luinha já passeou pela casa, não ousou ir no quintal... Tranquila, dorme... Talvez, sonhe... A lentidão não me abate; escrevo... A disciplina apolínea não me perturba a felicidade. Nem me dói os limites físicos... mesmo porque clinicamente falando é só um mal estar passageiro: um combinado do ar seco, das fuligens e aridez dos canaviais, da vida líquida... em contraste com minha obstinada caminhada de quem prefere  os atropelos da estrada... Sentar na margem é um grande equívoco... Afinal, na vida pesa...
Na vida pesa as omissões, as fugas, o não-vivido...
Olho e vejo, como dói...
Dói o beijo não roubado; o amor ocultado; a luta não enfrentada... Dói o silêncio na hora do grito de indignação; dói a acomodação no instante que vida pedia coragem e ousadia para que o sonho pudesse caminhar pelas ruas e praças, poetizando a utopia do novo, da mudança...
Dói sentar no pôr-do-sol, suave e alegre, e ver... o povo da rua maltrapilho, com hematomas, sujo... E saber que na nossa vida de exclusão não há refeitórios coletivos, abrigos para banho e descanso, não acolhimento... O calvário do povo da rua segue sem que nas suas quedas acham de prontidão cirineus... O Cristo o teve. Caiu, venceu... Mas, entre a queda e a vitória, por três vezes, um camponês anônimo, o Simeão, carregou por ele a cruz... Nós e o estado evitamos o devir Simeão...
Na rua, os cãozinhos revelam no olhar triste as cicatrizes do tempo: o abandono... a ausência de um carinho que os fizessem uivar e latir com alegria, saudando, novamente, o luar... Cabisbaixo, seguem esquecidos...
Não nego o avanço no campo das políticas sociais...
Restituem direitos, enquadrando; não acolhem, amando...
O mesmo veremos na ousadia de rever nossas vidas.
Quantas vezes desistimos quando a paixão enluarado clamava por luta?...
Quantas vezes ficamos quando o nosso coração sofrido clamava, rogando o direito de partir?...
A vida clama... pede atitude.
Ontem, me vi ensinado a um dos nossos moradores das Casas-Lares, a arte da negociação como tática de guerra... Ele ama  a Festa de Nossa Senhora da Abadia: gente, canções, folia... o povo dela - gente sofrida.  Lhe ensinei as palavras, o tom da voz, a expressão... E, depois do diálogo, sorri com minha peraltice e a teorizei: incluir é fazer o diferente caber na alegria e fazer a alegria caber no diferente...
Um dia, descobriremos que viver é gerenciar com paciência e teimosia as lágrimas e potencializar, multiplicando as alegrias...
E, de fato, os alegres, com ternura e suavidade, não entrarão no reino dos céus... lá já estão, ainda que perambulando entre nós nas agruras do nosso mundo cinzento.


2 comentários:

Mila Pires disse...

Jorge querido, penso a inclusão assim como a tua teoria...devir justiça social e por aí vai...
Beijos...com carinho e ternura...Mila.

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Mila, pensamos e sonhamos juntos noo caminho das lutas... Meu carinhoso e terno abraço, jorge