Devir Criança: lições dos Erês
Jorge Bichuetti
Diretor clínico da Fundação Gregório F. Baremblitt .
Analista Institucional e Esquizoanálista
Introdução
O ser é devir e devém como diferença, singularidade e multiplicidade (Baremblitt,1998). Assim, o essencial na individualização é poder se subjetivar rizomaticamente, superando a pessoalidade restritiva de uma identidade fixa e imutável.
A impessoalidade emerge na transversalidade dos n devires que ocorrem no homem e no mundo.
A identidade é entidade molar, castrada e castradora; um instituído que reprime as forças instituintes. A vida reprimida torna-se cinzenta e o homem enfrenta o cotidiano empobrecido. Passa, então, a existir com um repertório pouco flexível e pouco hábil diante da complexidade e diversidade das exigências, internas e externas, da própria existência.
O homem- cópia: ser de repetições, é o normal, a ''mediocridade institucionalizada'' (Miziara, l990); e evita situações de mudança.
Guattari (2000), no caosmose, reconhece na infância, na loucura, na arte e na paixão situações potencialmente disruptivas no sentido de criaçãodo novo.
Assim, pensamos a importãncia do devir criança, cuja potência analisaremos aqui a partir de lições da mitologia dos erês.
Devir Criança
O devir criança não equivale à idéia de infantilização do jovem, do adulto e do velho.
Trata-se do resgate das potências da infância que são reprimidas no processo de amadurecimento do socius atual onde se gesta uma identidade única, rígida, racional e estável.
Para Gil (2000), o devir criança é imprescindível a todos os devires do adulto.
O devir criança envolve a capacidade de:
• outrar-se (devir outros);
• fantasiar, fabular (visão criativa de multiplicidades virtuais);
• brincar, brincar sem perigo;
• sonhar;
• estar fora do tempo cronológico;
• dar às coisas e espaços uma topologia própria, mágica;
• e de outros n devires (mineral, vegetal, animal etc ).
Outrar-se depende de agenciamentos que con-forme ''blocos de infância'', plano de encontro de dois devires de vetor contrário: '' do passado para o futuro, do presente para o passado'' (Gil, 2000, pg 93).
A brincadeira é essencial nos agenciamentos do devir criança.
Na terapia temos necessidade/possibilidade de desaparecimento do sintoma incrustado na identidade, e, portanto, a de se devir outro, um devir inerente à infância, ao devir criança.
Devir Criança e os Erês
O universo da magia afrobrasileira se dá numa encruzilhada entre o sagrado e o profano, o divino e o humano.Nela, os erês desnuda e materializa a infância enquanto uma potência da vida imanente ao jogo alegre do brincar como fonte de um devir suavidade.
Nascem de uma mãe guerreira e são cuidados por uma mãe terna, meiga e faceira.
Suas lendas revelam sentidos do próprio devir criança:
• brincando, eternamente, eles superam a morte, a tristeza, a anedonia e a solidão.
• são arteiros, mas já não brincam com fogo (perigo), brincam sem perigo; por isso suas artes provocam emoções fortes;
• só se devém num passar, passear alegre, após serem resgatadas da criança morta;
• definham se perseguimos o devir animal, a libertação do macaco fortalece o vigor da criança;
• no brincar afugenta da vida os miasmas da morte: a) brincando descobrem fonte subterrânea que mata a sede e afasta a morte b) e o toque dos seus tambores, encanta a morte.
Em síntese, eles gostam mesmo é de brincar (Prandi, 2001).
Festa e oferendas: em jardims, praças; debaixo de roseiras. Com doces, pirulitos, balas, bolos...
Provocam afectos alegres:
Vendo estas lendas e com eles estando no en(canto) dos terreiros, notamos que eles afetam, colorindo a vida cinzenta do cismar humano de alegria, leveza, suavidade... Leva- nos a cirandar e na ciranda, bifurcar descobrindo no brincar e na travessura novos modos de desconstruir nossa amargura, nossa rigidez, nossa existência desbotada.
Conclusão
Devir criança- brincar, outrar- se...
Superar-se no instituído da identidade: adulto, sério, sisudo, rabugento.
Re- descobrir o riso, o canto... A Fábula.
Uma fábula de sonhos encantados.
Os erês parecem um exercício catártico.
... Mas são pura provocação.
Podemos. Um corpo pode devir...
Devir- se alegria.
Contudo, urge deixar fissurar sua rostridade de adulto. Do adulto com seu trono, um trono de verdades absolutas, de racionalidade matematicamente cifradas e sentir, viver as potentes desterritorializações do brincar.
Referências Bibliográficas
1. Baremblitt, G. Introdução à Esquizoanálise. Belo Horizonte, Inst. Felix Guattari, 1998.
2. Gil, J. Diferença e negação em Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, Relume - Dumará, 2000.
3. Guattari, F. Caosmose. Rio de Janeiro, Ed 34, 2000.
4. Miziara, L. A Salamandra. São Paulo, João Scordecci Ed, 1990.
5. Prandi, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Cia das Letras, 2001.
.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário