SAÚDE MENTAL: SINGULARIDADE E INCLUSÃO SOCIAL
Jorge Bichuetti
Vivemos tempos difíceis... Tempo de dores, tempo de indignação...
Fome, miséria... Solidão... Desemprego, corrupção...
Até Canaá, a terra da celebração da alegria, onde, um dia, a água se fez vinho; agora, chora pois uma guerra imperialista, selvagem e desumana, quebrou suas taças e matou suas crianças e ela, tristonha, é, hoje, lamentavelmente, terra que verte sangue.
Tempos difíceis... Mundo de guerras, de exploração do homem pelo homem e de destruição irracional da natureza.
Um outro mundo é preciso...
... Mas, como, lucidamente, assinala Daniel Bensaid(1), é urgente agir, fazendo do mundo necessário, um mundo possível.
Precisamos fazer possível a liberdade, a solidariedade e a justiça social.
Tempo de dores, tempo de indignação..
A fé que temos no homem e na vida nos conclama: é hora de indiganação e rebeldia.
Precisamos agir...
Contudo, para muitos, isto é ousadia demasiada... É a voz dos tíbios que após a queda do muro de Berlim tem declarada loucura os espaços de vida da utopia.
... Há outras vozes... Um canto: a vida é combate que os fracos abatem, mas que os fortes , os bravos só sabem exaltar.. ( G. Dias)(2).
Assim, é preciso ousar, porquanto,¨ não será o medo da loucura que nos há de fazer baixar as bandeiras da imaginação.”(Breton)”(3).
Fundação Gregorio F Baremblitt. 15 anos. Um longo caminho. Ousadia, indignação positivadas. Um caminho de delírio, sonho e poesia.
Gregorio F Baremblitt. Uma longo caminho. Criatividade inventiva, rebeldia guerreira e generosidade de homem novo, à la Che, o próprio amanhã hoje. Um caminho de delírio, sonho e poesia.
Las Madres. Las Madres de Plaza de Mayo. A personificação de uma utopia ativa. O útero coletivo onde a vida gesta continuamente por filho – o outro mundo possível. Um longo caminho... Também, um caminho de delírio, sonho e poesia...
Assim, pretendo abordar o tema ¨Saúde Mental: Singularidade e Inclusão Social”, não a partir da racionalidade instrumental do capitalismo, mas sim, através da força criativa destes tres agentes de um outro mundo possível – Fundação, professor Gregorio e Las Madres - , fontes de delírio, sonho e poesia com que um dia iremos tomar o céu de assalto e dá-lo em matrimônio a nossa Mãe Gaia, para que todos tenham vida e que a tenham plenamente...
Singularidade: o vôo de pásssaros livres
A racionalidade instrumental normatizou de forma castradora e restritiva a loucura. Tornou-a doença mental e llhe deu um destino, o hospício. A ideologia médica e o hospício, deste modo, suprime, funcionalmente, da teia social a virulência subversiva da loucura. Silencia-a, acorrenta-a...
Por que?
Certamente, pesa o funcionamento alheio aos impositivos do corpo submisso necessário ao trabalho fabril, alienado e robotizado; mas igualmente nela encontramos outro elemento disruptivo e intolerável para o socius dominante: é germinação de diferença e potência criativa de vida para além dos trios previsíveis da razão.
É encruzilhada... ( G. Rosa)(4)
O delíro, o sonho e a poesia são o real ocultado, negado, suprimido pela lógica da racionalidade instrumental. Pertencem ao cosmos lírico do desejo e da liberdade, e não ao universo da necessidade imediata e da ganância superlativa...
De fato, ¨o psícotico é alguém que renunciou o mundo de vendedores e vencedores”, ou ¨a surra que o simulacro levou do sistema” ( Baremblitt)(5)
Não basta, assim, na prática da clínica antimanicomial superar as violências da segregação hospitalar, urge criar espaços de liberdade para efetiva afirmação criativa da singularidade do dito louco, e o processo de formação, desta nova clínica, é, também, o processo de construção de uma nova sociedade, pois aqui não se trata mais de adaptá-lo, mas de fazê-lo caber na sociedade.
E o que nos pode dizer de novo esta singularidade tão estranha?...
Sendo homens de razão, matemáticos e positivistas, fabricamos um mundo cinzento. De terno e gravata. Sapatos apertados. Repetimos normativas. Incorporamos expectativas. Trabalhamos de sol a sol, nunca vemos as estrelas. Somos cópias... Homens cinzentos... E, um dia qualquer morremos e outros nos substituem, afinal, somos descartáveis ambulantes que sabemos a opinião da mídia, os valores da bolsa e até mesmo as últimas novidades do mercado, porém não escutamos o pulsar das nossas vísceras, nem permitimos a manifestação do que pode um corpo nas aventuras tresloucadas de um livre coração.
Morrremos, como vivemos ... Morremos de tédio.
É a normalidade. E “a normalidade é a mediocridade institucionalizada.” ( Miziara)(6)
E o que pode a loucura? A loucura pode colorir o nosso mundo pálido e anêmico; pode-nos acordar deste embriagante torpor chamado acomodação, e, também, pode, principalmente, nos levar a atravessar o espelho e assim nos dar por moradia o território do devir.
A loucura pode...
Neste sentido, a singularidade é o avesso do homem- subjetividade violada e acorrentada.
O delírio/sonho/poesia singulariza...
Recordo Nize da Silveira(7) e suas descobertas da potência singularizante da loucura. Via ela, todos os dias, um psicótico mirando o horizonte e gritando: navios, navios... Nada entendia. Ali, a médica só percebia um delírio ilógico num improdutivo surto psicótico. Desejando ir além do senso objetivista da prática psiquiátrica, tentou decifrar ... Um certo dia, o louco lhe respondeu o enigma: ¨Ora, ora, navios entre estrelas”...
Aprendamos com a loucura a poetizar o caminho, pois o mundo da razão pura e absoluta é um mundo de tédio, desesperança e solidão.
Busquemos o sonho...
Para tanto, copiemos o Subcomandante Marcos(8) e tentemos desvendar a velocidade do sonho.
Como, bem diz Marcos, a do pesadelo nós conhecemos: ¨é a mesma do se cruzar as mãos, ou a do render-se, ou a do resignar-se, ou a do assumir a cômoda e estúpida posição de expectador, ou ainda a do abandonar os ideais em nome de um pragmatismo estéril e deformante.”
Conhecemos, sim, o pesadelo e dele não gostamos, tanto que me parece oportuna as palavras do Subcomandante Marcos: ¨... frente ao pesadelo, não basta despertar. A vigilia necessita florecer-se em sonho.”
Nesta travessia de busca , de conexão surrealista entre ação e poesia, sonho e revolução, deixemos os nossos fantasmas, o nosso medo da loucura adormecer, ouvindo este canto zapatista: Pero ahora en esta madrugada de septiembre, sin más compañía que un viento helado, con la lluvia tamborileando en el de la champa, y sumando la nube que porto a la que afuera reposa, se me ha ocurrido, que tal vez, es la misma velocidad con que, en mi sueño, la sombra que soy se desvanece en la otra y amable sombra de la entrepierna de ella, mientras con mis labios escribo promesas imposibles en las plantas de sus pies desnudos”. ( Subcomandante Marcos)
Inclusão Social, para a saúde mental da humanidade
A Saúde Mental fez muito. Caminhou, experimentou... Substituiu a idéia de doença pela de sofrimento mental em conexão com o social; e de cura por emancipação.
Derrotamos o manicômio. E agora na lida dos serviços substitutivos enfrentamos o velho dilema pichoniano: é preciso devolver à sociedade o seu emergente.
Contudo, a sociedade nega-se ao convívio com a diferença, não se quer plural. Se reproduz como vida opressiva, mundo de exclusão...
O louco persiste sem lugar... Igualmente, o delírio, o sonho e a poesia... Vivemos sem ar, sem liberdade, sem possibilidade de afirmação criativa... Vida de rebanho, mundo de exclusão...
O trabalho de inclusão social dos portadores de sofrimento mental pede que pensemos a clínica para além dos campos do agir técnico. Ele se situa sob o espectro da luta por um outro mundo possível: exige-nos a união do mudar a vida de Rimbaut com o transformar o mundo de Marx.
Emancipar é uma necessidade imperiosa para os que na clínica enxergam um espaço de afirmação da singularidade e um trabalho ativo de inclusão social.
Neste sentido emancipatório, parece´-me apropriado pensar com uma velha recordação do nosso amigo prof. Gregorio, quando este afirma lhe bastar por meta pessoal o desejo constante de trabalhar e relacionar criativamente.
Esta meta guarda consigo todas possibilidades de delírio, sonho e poesia...
Pela loucura, pelos usuários e por nós mesmos, saibamos reconhecer que o processo de inclusão envolve a criação de novos modos de se relacionar, envolve a criação de novas relações entre os homens, relações solidárias, ternas e generosas, relações libertárias.
E que para se trabalhar criativamente, entre um devir macunaíma e um devir obreiro das abelhas que fazendo o mel valem o tempo que não voaram, devemos permitir o cruzamento fértil da economia solidária com a economia do ócio. Mais: devemos abrir as portas da vida cotidiana para uma efetiva superação do trabalho alienado , atráves do trabalho como invenção da invenção permanente.
Sendo que nada se metamorfoseia na inquietude apenas do desejo, esta nova clínica, de singularidade e inclusão social, de trabalho e relações criativas, precisa adotar ,igualmente, por desafio, a construção, no dia-a-dia , de uma militância criatica.
E na impossibilidade de gaguejar sobre este desafio de se ser na clínica e na vida militantes de um novo mundo possível, personifico- a militância criativa- em tres agentes deste sonho de se mudar a vida e transformar o mundo: Fundação Gregorio F. Baremblitt, Gregorio Baremblitt e Las Madres de Plaza de Mayo.
Alguma Palavras: Kocherê, loná...
Fundação Gregorio F Baremblitt. 15 anos... Kocherê, loná....Eté essanha...(9)
Uma gota. Uma ong no processo de libertação. O público não-estatal, profeticamente, criando já uma molécula do socialismo democrático de uma sociedade sem a opressão de um estado vertical.
Uma gota de água...
Uma gota desgarrada dos rios, mares e chuvas...
Uma gota que superou o temor por amor à vida e com ousadia e coragem caiu no chão do mundo.
Uma gota, que projeto era tão-somente promessa, profecia... Mas que caindo no chão se fez pequena poça de água que como define D. Helder Câmera(10), reflete o céu estrelado.
E é na força de vida deste chão de estrelas que digo: escutemos a voz do sonho...
Um outro mundo é possível.
Liberdade, solidariedade e justiça social...
Por uma sociedade sem manicômio.
Fé e esperança no socialismo que há de vir da luta de todos nós
E esta fé-sonho no mundo pão, terra, seresta e oração de D. Pedro Casaldáliga(11), afeta-me e me leva a quebrar novamente o silêncio para simplesmente dizer: muito obrigado!
Obrigado, Fundação.Pela luz das estrelas no chão incendiando de amanhecer o próprio destino...
Obrigado, Dr. Gregorio. Não se agradece a companhia, degusta-se os amigos. Obrigado pelo teu devir caminho nas horas torpes de desatinos e confusão e pelo teu devir farol nos momentos de escuridão.
Obrigado, a Las Madres, Las Mamas Panchas da nossa Latinoamerica e do nosso outro mundo possível. Obrigado pelo útero emprestado que gesta mil, um milhão de filhos na produção guerreira do amanhã e pelo útero caloroso e amigo que dá descanso e alento aos guerreiros delirantes, sonhadores e poetas . Aos que vão pela vida, destemidos e perseverantes, sempre na luta por sabê-la o único preço da vitória.
.Notas
1. Daniel Bensaid. Pensador francês e dirigente da organização LCR ( Liga Comunista Revolucionária). Autor de Marx, o intempestivo e Cambiar el mundo. Do texto: Posguerra.
2. Gonçalves Dias. Poeta romântico de temática indigenista. Autor de I- Juca Pirama.
3. André Breton. Criador e articulador do surrealismo> Do Primeiro Manifesto Surrealista.
4. Guimarães Rosa. Escritor modernista das Geraes. No romance Grande Sertão: Vereda desenha o conceito de território e seus efeitos. A encruzilhada é local de caosmose...
5. Gregorio f. Baremblitt. Esquizoanalista latinoamericano, inventor do esquizodrama. Estes conceitos estão no livro A rua como espaço clínico e no texto Introdução ao esquizodrama.
6. Lineu Miziara. Escritor uberabense. Do livro: A salamandra. Ed. Vitória.
7. Nize da Silveira. Pioneira da reforma psiquiátrica Brasileira. Do texto: Recordando Nize da Silveira. De: Bichuetti, J( mimeo).
8. Subcomandante Marcos. Líder zapatista. Texto:La velocidad Del sueño 1, 2 e 3.
9. Kocheré, loná( paz no caminho). Yorubá, idoma africano. Eté essanha( verdadeira alegria).Tupiguarani, idioma indígena.
10. Dom Hélder Câmara. Do livro: Helder, o dom. De: Zildo Rocha(org). Ed. Vozes.
11. Dom Pedro Casaldáligaa. Do livro: Rememória. De: Azevedo e maués(org). Ed. Perseu Abramo
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
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