O HOSPÍCIO
Jorge Bichuetti
O hospício é um campo de concentração, legitimado pelo saber médico-científico. Nasceu com a organização do espaço urbano. E trazia consigo uma finalidade: isolar e excluir da cidade todo contigente humano que por este ou aquele motivo não se enquadrava no ideal de homem - “corpo servil” -, sendo assim homens-parasitas para o capitalismo emergente. A medicina adotou o hospital e dele fez o locus privilegiado de produção do saber; afastando o dito louco da sociedade, e, então, como dizia Basaglia “a psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses e se preocupou com a doença: é hora de colocar a “doença” entre parênteses e nos preocuparmos com o homem”. Assim, o hospício é hoje pensado e condenado. Parecia natural, lugar de louco é no hospício. Uma visita, porém, a um manicômio nos desconcerta. O hospício não cura, cronifica... Não protege, violenta... Não reabilita, desumaniza...
Normalmente, entregamos nossos entes queridos e dormimos tranquilos, certos de que o hospício deles tomará encargo. Dura ilusão! Ou melhor, ingênua loucura.
A nova psiquiatria estudou o hospício e advoga: não existe cura em tratamentos que roubam do portador de sofrimento mental o estatuto de cidadão e lhe confere o papel de louco que se constitue vinculando-o aos processos de antiprodução.
Alfredo Moffalt dissecou a lógica manicomial: a) o habitat manicomial - um lugar fechado, isolado do exterior; com falta absoluta de privacidade pessoal. Portas abertas, pátios áridos e superpovoados, pouca luminosidade e espaço compartimentado, filas, e sempre a mesmice; b) nivel corporal - a transformação da pessoa em coisa, em objeto. Violências, insegurança pessoal. O corpo é ócio. Eles deambulam e parecem zumbis. Roupa androjosa ou uniforme, cabelos raspados. A comida e o sexo já não desempenham a “função de comunhão social e íntima”. Proíbe-se relações heterossexuais e se faz vistas grossas ao homossexualismo institucional; c) Instrumentos - dificuldade de manter a propriedade dos objetos pessoais, a produção do papel de mendigo, a cama como única pertença de fato, tarefas obsessivas que se consumam como trabalho alienado e trabalho não pago, e os objetos exóticos, sinais de resistência do ainda tentar-se caracterizar pessoa; d) Comunicação - “a rede de comunicações dos hospitais psiquiátricos é que ela praticamente não existe”. Díalogos imprecisos. Médicos detetives e usuários sonegando a fala, temendo ao dizer algo verem aumentadas as suas penas; e) Tempo - um presente enorme e vazio. Rotina. Falta calendário, relógio... Destino e futuro incerto. Em síntese: o hospício é a experiência de um brutal e maciço processo de amputação de todas as funções sociais e pessoais.
Quando da alta, a família recebe de novo seu encargo: o ente querido, agora, condicionado por um sistema empobrecedor de se readaptar ao mundo real, desistindo da vida. Quieto, cabisbaixo, lento, acamado... Sem sonhos... Um mendigo existencial...
Um dia, todavia, uma nova crise ou um acontecimento desperta estes agentes: terapeutas, usuários e familiares... E aí, então, o hospício já não terá espaço no coração da dignidade humana. Afinal, diante do sofrimento mental, se ontem acorrentávamos, empobrecíamos e silenciávamos os diferentes, hoje podemos na reabilitação do diferente desbravar horizontes e mudar a própria Terra - este grande hospício, sociedade de controle, onde é loucura viver e sonhar, dar-se e amar.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
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