sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

sobre o desejo e a cultura

ANGÚSTIA e CIVILIZAÇÃO
                                Jorge Bichuetti

A condição humana se destaca no universo. O homem é, a um só tempo, natureza e história.

Ação consciente, a capacidade de interferir transformando a natureza com consciência prévia de um projeto fez do homem um ser natural para além dos limites da natureza. Ele confecciona o seu destino; digita com seus atos os trâmites da história.

E este agir consolidou um novo modo de organizar-se; as civilizações humanas são, assim, sociedades que são criadas pelo homem e, ao mesmo tempo, homem é determinado pelo modo de funcionar destas.

Viver em grupo supera a angústia primeira: a natureza hostil passa a ser controlada e, então, domesticada já não representa uma ameaça constante à sobrevivência do homem.

Contudo, as contradições da vida social gestam novas fontes de angústia.

Entender, assim, a origem da condição social do homem auxilia-nos na lida com a angústia que afugenta o coração humano na própria produção da vida.

Engels no livro “A transformação do macaco em homem” define no trabalho o elemento essencial capaz de explicar o processo de humanização da vida. Bachelard, influenciado por Freud, responsabiliza o desejo, nele vendo definidor da condição humana: o homem não se aventurou no mar pela necessidade da pesca, ele enfrentou o desafio, porque sonhou, desejou, contemplou o mistério do desconhecido.

Dois focos explicativos opostos. Oposição que marca a filosofia, e igualmente, marca o cotidiano do homem, do homem e suas angústias. De como viveiros, atenuamos ou esquecemos nossas dores.

Paulo Freire contribui demonstrando o valor da idéia de praxis: nem tarefismo sem reflexão, nem o ato contemplar sem agir. União de trabalho e consciência, prática e conceituação.

Guattari, no mesmo sentido, diz-nos que é vital colocar o desejo na produção e a produção no desejo.

Dom Helder Camara, o inesquecível bispo dos pobres, resgata o conteúdo evangélico como ciência e projeto de vida e propõe: “Digo a vocês: o ideal é ter as mãos de Marta e o coração de Maria”.

Parece-nos, deste modo, que a questão da angústia necessita de uma audácia: a fuga das velhas dicotomias.

Sinteticamente, poderíamos, escutar na produção recente dos teólogos da libertação dicas valiosas para a lida diária com a angústia: militância e mística.

Miitar, produzindo na luta, as transformações de toda e qualquer fonte de angústia.

Transcender, sentindo-se mergulhado numa vida cuja potência existe na virtualidade do humano que pode e deve se plenificar num modo de funcionar aonde doçura e solidariedade, ternura e mansidão exorcizem do real os fantasmas da angústia inerente a convivência consigo e com o outro.

Desejar, produzindo vida; produzir, desejando com e pela vida são estratégias que maquinam, de fato, uma nova era. Um novo tempo...

Tempo em que o novo homem - pleno de solidariedade e cidadania esquecerá sua angústia, para em coro repetir com Dom Helder: “gostaria de ser uma simples poça d’água para refletir o céu!”.






                                                            DESEJO E CULTURA


DESEJO E CULTURA (1)
                          JORGE BICHUETTI

                                                       

 O homem aliena-se comumente dos seus desejos. Vive-se com freqüência em atenção às expectativas alheias.

A psicanálise revolucionou a cultura, revelando o inconsciente: Desejos inconscientes e maquinações inconscientes de evitação do desejo.

De fato, é cultural o temor humano diante da emergência da natureza-desejo. Desejo-necessidade e desejo-interesse.

Desejo de criar, de procriar-se... Desejo do novo. Do prazer. Enfim, desejo de vida.

O inconsciente psicanalítico, inicialmente, era processos que desconheciam a negação. Era desejante, era positividade... Posteriormente, nele se introduziu a negatividade e a falta, projetando nele sistemas de representação que funcionam como um agenciamento de formação do corpo servil necessário a produção capitalista, ao universo da propriedade privada.

Deste modo, fez-se uma psicanálise em que a “noção-chave é a de superego” (Guattari) e não se questionou se este é “uma formação egressa do meio social e transmitida por intermédio da família ou um corte necessário da tópica psíquica, único acesso do sujeito a um justo equilíbrio e única garantia ao ego de uma boa adaptação à realidade. (Guattari)

Adaptando-se o desejo à cultura capitalista, ele se restringiu... Viu-se abortado de sua potência criativa. Anulou-se como intensidade e fluxo, e cristalizou-se como uma breve representação.

Hoje, quando se vê o mundo questionar um vazio existencial que vitima a humanidade, parece oportuno reconhecer que este homem vazio, é o protótipo da subjetividade burguesa, a subjetividade do desejo capturado pelo modo de funcionar individualista, narcísico e competitivo; do desejo negado; do desejo alheio ao encontro, sempre interiorizado num eterno si mesmo de um ego corporal revitalizado pela satisfação se devindo de simbólicas representações.

Cabe, assim, aos que apostam na cultura da vida e na vida da cultura, igualmente, apostarem “em máquinas de toda espécie que fariam o desejo sair desta oscilação entre o triângulo edipiano e seu desmoronamento na pulsão de morte, para conectá-lo a multiplicidades cada vez mais abertas ao campo social”(Guattari).

Ou seja, permitir ao desejo maquinar na vida e pela vida a amplificação do horizonte existencial, onde o outro, o cosmos, sejam encontros possíveis, que retiram o homem da sua solidão narcísica para vivenciar a suavidade de se compartilhar com algo ou alguém as aventuras da estrada.

                                                              

DESEJO E CULTURA (II)

                               Jorge Bichuetti

Marcuse, no livro “Eros e Civilização”, desenhou um novo panorama para a problemática do desejo: o corpo genitalizado, a equivalência entre orgasmo e prazer e acasalamento burguês, edípico e machista são alguns dos fatos percebidos não mais como fatos naturais, inerentes ao próprio desenvolvimento psíquico, mas sim como analisadores da sexualidade no capitalismo industrial onde o corpo torna-se objeto, força de trabalho, uma nova mercadoria, que necessita se alienar de sua potência desejante para assumir o desprazer de um trabalho alienante e alienado, o desprazer de um desgaste peculiar à exaustão do corpo e da vida, corpo servil e vida cheia de exploração e dominação.

O capitalismo não se consolidaria se os homens funcionassem num devir “macunaíma”, nem num devir cristão: “observai os lírios do campo, que não tecem e não fiam...”

Reich é, sem dúvida, o grande revolucionário que a partir das concepções de Freud, amplia o horizonte da psicanálise, compreendendo que a repressão do desejo guarda por base relações econômicas, sociais e políticas.

Deleuze e Guattari demarcaram novas análises que permitiram a criação da comumente denominada política do desejo.

Contudo, eles igualmente deixaram para nossa reflexão uma assertiva polêmica: “o prazer atrapalha”.

O prazer atrapalha? Freud percebeu na união amorosa uma fisiológica vivência da dependência simbiótica, narcísica. A necessidade do outro. A ilusão de uma totalidade que nos subtrai da dor da finitude humana e da condição de solidão própria da história do homem.

A idéia de múltiplas dependências e de solidão compartilhada parecem sugestões eficazes para o prazer e o amor, para o prazer e o amor que não atrapalham.

No entanto, estas sugestões possuem por fonte o mesmo pensamento que afirmou: atrapalha...

Atrapalha, então, o quê, em quê e por quê?

O prazer atrapalha a aventura do homem em busca do novo, do inédito, do insólito.

O prazer leva-nos a sentir que tudo está bem, resolvido, que a vida como está pode se perpetuar.

A aventura pelo novo traz consigo a ansiedade desprazerosa de se lutar, sofrer por novas realizações e a ansiedade desprazerosa de se temer, de se aterrorizar diante da comodidade, do ajuste que se há de perder no processo de mudança.

Assim, hipoteticamente, poderíamos entender que o prazer atual nos atrapalha nas batalhas necessárias ao devir, ao ato de construir o amanhã e nele encontrar novos prazeres, novos e novos alvoreceres.

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