domingo, 28 de novembro de 2010

MESTRES DO CAMINHO: AMAURI FERREIRA

O anjo exterminador 

                     AMAURI FERREIRA

1. O rio de Heráclito: amá-lo ou odiá-lo?
Há momentos na nossa existência que servem para conhecermos a nossa capacidade de reação, que nos levam até ao ponto em que nos encontramos diante de um território desconhecido. Então, um dos pés vacila, o corpo inclina-se para trás, as mãos não têm mais onde se agarrar: em tal ponto de desconfiança, o mais provável é refugiarmos na lembrança de um afeto prazeroso e focar o nosso desejo em um ideal. O mesmo dobrar dos sinos, o mesmo canto dos pássaros, o mesmo pôr-do-sol: tudo igual, sem surpresas. Mas um instante de clareza pode surgir; a nossa capacidade de renovação pode falar mais alto; um novo jeito de olhar, de ouvir, de cheirar... Novos sentimentos das coisas que estão ao nosso redor, que, sem pedir licença, nos atingem, modificando-nos, tornando-nos diferentes a cada instante.
Outros, outros e outros: um turbilhão que nos leva a um campo ermo, onde nos livramos do que se tornou inútil para nós, uma identidade que não faz mais sentido preservar nesse novo mundo. Não é o “mundo tão real com todos os seus sóis e todas as suas vias lácteas, que é o nada”, como imaginou Schopenhauer (“O Mundo Como Vontade e Representação”, livro quarto), mas o mundo do devir, o mundo de um novo território existencial, o mundo de uma nova relação de forças, o mundo de novos sentimentos de dor, de amor, de tristeza e de alegria. Nada nos falta nesse novo mundo: o coração segue batendo no peito, os pulmões continuam a receber oxigênio, o nosso corpo continua a sentir os outros corpos. Não há como faltar amor a esse mundo: por estarmos destinados às relações, estamos destinados a amar... O nosso amor é o amor cósmico, o amor que nunca se esgota, o amor que não exige nada, o amor que é trágico. Um amor como de uma estrela anã branca, que suga a matéria da sua estrela vizinha, aumentando a sua temperatura e pressão, até o ponto em que ela simplesmente explode, espalhando grande quantidade de matéria e energia no espaço: eis um dos tipos de “supernova”, o amor estelar. Portanto, o amor não é algo que seria possível planejar, que poderíamos controlar conscientemente, mas, pelo contrário, somente através do acaso podemos aprender o que é amar.
Se realmente entendermos a profundidade de tal amor, não há como não amarmos o rio de Heráclito. “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. Surge em nós a imagem de um fluxo incessante de águas – sempre um novo fluxo de águas. Quem entra no rio nunca é banhado pelas mesmas águas – e o próprio banhista não é mais o mesmo. O que o rio heraclitiano nos permite pensar é a respeito da realidade do devir e as afecções que nunca se repetem: o encontro do corpo humano com as águas do rio sempre produz novos afetos. Água e corpo humano: sempre um encontro inédito e singular... E podemos pensar assim: mergulhar no rio e aproveitar a experiência de ser afetado por ele; viver em sociedade e aproveitar a experiência de ser afetado por ela... Águas que retornam, sempre de modo diferenciado; relações humanas que retornam, sempre de modo diferenciado... Ficar dentro do rio tem os seus riscos, pois podemos afogar-nos nele; viver em sociedade também tem os seus riscos, pois podemos ser destruídos por ela... No rio, podemos formar uma noção comum entre o nosso corpo e o fluxo das águas; na sociedade, também podemos formar uma noção comum entre o nosso corpo e o corpo social... Ao sairmos do rio, buscamos a sombra de uma árvore e refletimos sobre a experiência de ser banhado por ele; ao sairmos dos encontros com os indivíduos na sociedade, refugiamos nos momentos de solidão e refletimos sobre a experiência de ser afetado por eles... Na sombra de uma árvore, recebemos outros fluxos, vivemos uma nova experiência, comemos um alimento com outro sabor; na solidão, novos fluxos nos atingem, vivemos também uma nova experiência que se torna uma ótima ocasião para o conhecimento das nossas próprias forças... Voltamos ao rio para construir outras relações com ele, sempre de modo diferente; voltamos ao encontro com os indivíduos para construir outras relações com eles, também de modo diferente... “Deste jeito sim, deste jeito não; vou por aqui, e não por ali. É preciso ter temperança, mas sem esquecer a ousadia”... Riquezas que se escondem no rio e na sociedade: para descobri-las, é necessário criar novos caminhos dentro do rio, entender o que nos move dentro dele; da mesma forma, é necessário criar novos caminhos dentro da sociedade, entender o que nos move dentro dela... Podemos criar novos caminhos quando estamos fora do rio, para encontrarmos uma terra generosa, que nos espera pacientemente; também podemos criar novos caminhos quando estamos fora da sociedade, para descobrirmos as riquezas da nossa solidão... Experiência de estar dentro e fora do rio; experiência dos momentos de vida social e de retiro espiritual: não há como vivermos absolutamente dentro ou fora do rio, dentro ou fora da vida social. Podemos ter a sabedoria de dosar as experiências que convém para o polimento da nossa própria liberdade, para a expansão dos nossos limites, para sentirmos a natureza do nosso próprio tempo. Cabe somente a nós respondermos às seguintes questões: o que nos fortalece e o que nos enfraquece? Qual o momento de entrarmos e de sairmos do rio? O que fazemos com as nossas próprias modificações que ocorrem dentro e fora do rio?
Então, sentimos que algo se passa conosco. Não somos mais os mesmos; deixamos as nossas lembranças para trás, caminhamos pela areia da praia, rumo ao mar, plenamente seguros do nosso caminho! Para nossa surpresa, descobrimos que também podemos viver no mar: de animais terrestres, tornamo-nos animais marítimos! Ah, e que mar maravilhoso é esse, com seus inúmeros peixes, um mais belo que o outro! Ao mesmo tempo, tudo pode ainda parecer estranho aos nossos olhos tão acostumados com a vida terrestre. Descobrimos que precisamos trabalhar duro, construir alianças, se quisermos sobreviver nesse mundo simultaneamente belo e perigoso. Criamos um novo modo de viver no mar, construímos novas relações com os seus habitantes, aprendemos a amá-lo e esquecemos como era a vida fora dele. A realidade da nossa vida se confunde com a realidade do mar: pintamos o mar à nossa maneira, vivemos o mar em toda a sua intensidade. Simplesmente não negamos o mar, mas, ao contrário, resolvemos afirmá-lo em toda a sua realidade...





















7 comentários:

Helidamar disse...

Oi meu querido Jorge, viva seu meio século! Bela estrada de vida ás vezes muito tortuosa mas também com aprendizados e bonitas experiências.
Muitos Amigos, talvez horas caminhando juntos, outras separadas mas pela mesma causa.
Gostaria dde ter um pouquino do seu conhecimento, da sua cultura, da sua ternura, de sua humildade tão bela, ás vezes muito terno, outros muito severo, mas nem por isso deixa de ser o amigo da hora certa nas horas incertas.
Por isto você tem que comemorar os seus 50 anos com muita alegria, pois se todos vivessem intensamente igual a você ouvindo um tango quem sabe um bolero, um bom livro, ou um bom vinho.
Estariam começando cinquenta anos jovialidade com riqueza de espírito, sem pensar em velhice, pois a vida começa agora com suas experiências e o que sabe fazer muito bem.
Ser amigo quando precisamos, e nos dar aquele puxão de orelha quando precisamos.
Felicidades
Helidamar

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Helidamar, sua amizade me ajuda a ver os próximos 50 anos com esperança e paz. Obrigado de coração. Jorge

Samara Dairel Ribeiro disse...

Oi, Jorgito.
Hoje me levantei e dei de cara com vários textos e vídeos do Amauri na internet. Um em especial me pegou de jeito. Pensei, vou entrar no Utopia Ativa e ver onde ele adorna. Entrei e lá estava ele, como num encontro marcado.

Despedida

É notória a objeção que muitos indivíduos têm diante de um ato tão grandioso de despedir-se: talvez a despedida seja a coisa mais difícil de ser desejada porque a idéia comum que se tem da existência ainda está impregnada de concepções demasiado utilitárias, e de uma avaliação profundamente torpe dos pressupostos mais essenciais à criação. Mas, apesar disso, a despedida é, talvez, o ato mais importante para quem é impelido por uma grande inspiração: um pensamento maior surge naquele que percebe o movimento inexorável das mudanças que estão presentes em absolutamente tudo que existe. Para quem tem no corpo o sangue do artista, despedir-se das coisas que, temporariamente, fazem parte da sua existência é a condição vital para que a sublime obra de manter-se na transposição de limites não seja interrompida por uma leviandade qualquer que pode assolá-lo em certas circunstâncias, e que, por isso, torna-se perigosa. Melhor que seja interrompida por uma causa muito mais nobre, que é a produção infinita da existência... A dor da despedida, por ser honesta, é infinitamente menor do que a dor do adoecimento que, inevitavelmente, surge quando estamos dominados pelo medo do desconhecido. Mas há tanta coisa para ser explorada nesse mundo desconhecido que, inclusive, nos habita! É, sem dúvida, um problema nosso saber quando não podemos mais esperar para irmos embora. Mas enquanto não partimos, um vento forte – que se repete incontáveis vezes durante a nossa existência – continua a nos empurrar para efetuarmos a despedida de tudo aquilo que tornou-se uma desarmonia – não há dúvida que somos impulsionados, a todo momento, à musicalidade. Somente assim podemos nos unir aos que puderam despedir-se: eles tornam-se compreensíveis para nós porque experimentamos o que são as dores e as lágrimas de uma despedida, mas também aprendemos que a alegria e os sorrisos também estão implicados no ato de despedir-se... Nasce uma união dos que superaram o medo de se diferenciar. Apenas essa união é legítima, pois, afinal, é a própria vida que quer expandir-se que a legitima. Grande celebração dos que ousaram trocar de pele! E tal união é radicalmente distinta daquelas que são realizadas pelas instituições que foram erguidas por aqueles que não conseguem efetuar a despedida: é inevitável que sejam uniões artificiais, marcadas por um ínfimo traço de vida...

Amauri Ferreira

bjs, samara.

Samara Dairel Ribeiro disse...

Oi, Jorgito.

Hoje me levantei e dei de cara com vários textos e vídeos do Amauri Ferreira na internet, mas um em especial pegou-me de jeito (Despedida). Pensei, vou entrar no Utopia Ativa e sentir onde ele adorna melhor. Entrei e lá estava o Amauri, como num encontro marcado. Tentei postá-lo, mas não houve espaço suficiente, por isso enviei-o para o seu e-mail.
bjs, samara.

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Querida Samara, sempre enriquecendo nossas reflexões. poderia passar o endereço, por favor, deste magnífico vídeo. abraços jorge

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Samara, nos falta condições objetivas para a publicação de vídeo. Um abraço carinhoso. jorge

Samara Dairel Ribeiro disse...

Oi, o vídeo está neste endereço:

http://amauriferreiravideos.blogspot.com/2010/11/despedida.html?spref=fb

bjs, samara.