sábado, 27 de novembro de 2010

MESTRES DO CAMINHO: SOBRE O HUMANISMO DE CHE

Che Guevara pagou com a própria vida a coerência com um ideal - Entrevista com João Pedro Stedile
“O humanismo do Che aparece em toda sua vida e suas ações práticas.  Ele sempre colocava o bem-estar e a felicidade do povo pobre em primeiro lugar. Mas identificava que essa ‘libertação’, essa melhoria das condições de vida, somente seriam possíveis como uma ação social, como uma obra coletiva”, afirma João Pedro Stédile, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Stédile é formado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), com pós-graduação na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). O gaúcho de Lagoa Vermelha é um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e, atualmente, membro da sua direção nacional.
IHU On-Line - Qual é o maior legado de Che Guevara para a cultura e a política latino-americana?
João Pedro Stédile - O maior legado de Che para a cultura latino-americana foi ele ter dado concretude, na prática, nas suas ações políticas, à defesa do velho sonho da pátria grande americana. Ou seja, ele soube interpretar que o nosso continente tinha sido dominado por uma forma específica de capitalismo que subordinava a todos e todas. E que, ao mesmo tempo, havia uma formação antropológica, sócia e cultural, que transformava o povo de cada país num imenso povo latino-americano. Além disso, compreendeu que o futuro desse povo, independente do território específico em que morava, seu destino, seu futuro, estava unido. Não é possível a libertação de um só país, de um só povo latino-americano. Nesse sentido, as idéias agora recuperadas e colocadas em práticas pela ALBA (Aliança Bolivariana das Américas) são a concretude de seu legado.
IHU On-Line - Em que sentido Che Guevara inspira a luta do MST?
João Pedro Stédile - Para os militantes do MST, o exemplo da vida de Che Guevara nos inspira e alenta em muitos aspectos, mas, sobretudo, nos valores que ele praticou. Talvez tenha sido um dos poucos líderes populares latino-americanos que viveu intensamente e coerentemente com tudo o que pensava e defendia na teoria nas teses políticas. E essa coerência de vida nos deu como legado o seu espírito humanista, de sacrifício. Che era o primeiro no trabalho e no estudo, e o último na fila da comida e do lazer. E praticou isso, mesmo ocupando os mais altos cargos públicos, como ministro da Revolução Cubana. Ele estimulava a necessidade do estudo, de que todos deviam, todo o tempo, procurar estudar, se aperfeiçoar. Como ele costumava dizer, “dominar os conhecimentos científicos, para resolver mais rápido os problemas sociais e assim melhorar as condições de vida do povo”.
IHU On-Line - Che Guevara gerava revoltas populares?
João Pedro Stédile - Che não gerava revoltas populares. Che teve talvez uma sorte histórica, de ter vivido seus melhores anos de vida durante um período histórico de reascenso do movimento de massas. Assim, uniu sua generosidade, sua disposição de luta, seu espírito de sacrifício, com os processos sociais que estavam em curso. Quando Che chegou na Guatemala, já havia uma revolução social em curso, sob a intervenção das forças norte-americanas. Depois, quando se envolveu com o processo revolucionário cubano, havia dezenas de anos de acúmulo de forças, do Movimento 26 de julho[1], do partido socialista cubano. Da mesma forma, quando se somou no Congo e na Bolívia, também havia processos de organização popular há muito tempo. Ou seja, deu a coincidência de ele viver justamente o reascenso continental de massas, entre 1950 e 1967. 
IHU On-Line - O senhor identifica na trajetória de Che um “profundo humanismo”. Poderia explicar em que sentido o humanismo se manifestava em Che? Existia algo nele que lembrasse os valores cristãos? E como explicar esse “humanismo” em alguém capaz de acabar com a vida de tantas pessoas? 
João Pedro Stédile - O humanismo do Che aparece em toda sua vida e suas ações práticas.  Ele sempre colocava o bem-estar e a felicidade do povo pobre, em primeiro lugar. Mas identificava que essa “libertação”, essa melhoria das condições de vida, somente seriam possíveis como uma ação social, como uma obra coletiva. E procurava dar exemplo de que a solução não seria por suas decisões pessoais, mas somente pela ação coletiva do povo. Foi assim, que como ministro, introduziu o conceito de trabalho solidário, do povo cubano, para que todos se envolvessem na campanha de alfabetização. Ou seja, livrar o povo do analfabetismo não seria obra de alguns abnegados professores, mas a obra de todo o povo. Depois, utilizou isso na construção de moradias populares, no corte de cana da super-safra, na limpeza da cidade, na construção de escolas etc.
E, evidentemente, colocar as pessoas no centro de todo objetivo da ação política é base também dos princípios cristãos. Não sei qual foi a formação religiosa do Che. Mas certamente foi uma pessoa que viveu intensamente a doutrina cristã, na prática. Aliás, certa vez ouvi uma homilia de Dom Mendez Arceo[2], em Cuernavaca, México, e ele disse, se referindo à Revolução Cubana, que talvez o povo cubano fosse o povo que mais praticava o cristianismo nas Américas, ainda que não soubessem.
IHU On-Line - O que motivava a luta de Che? Qual era o “combustível” que o movia?
João Pedro Stédile - Era o ideal de vida, de sempre estar a serviço dos mais pobres, dos oprimidos, dos explorados. Nisso, pode-se ver, retratado esplendidamente no filme Diários de motocicleta, em que Walter Salles[3] procurou ser extramente fiel com a verdade, e reproduziu o que pensava e como vivia o jovem Che. E, pelo filme, pode-se ver como sem muita elaboração ideológica um jovem estudante de medicina, por onde passava na América Latina, se envolvia com os explorados: os mineiros do Chile, os leprosos do Peru, os povos indígenas da Amazônia. Sem ser piegas, mas acho que o combustível que movia ao Che era um profundo amor pelos trabalhadores mais pobres. Mesmo quando atuou nas guerrilhas cubanas, congolesas e bolivianas, em extremas condições e perigos, é talvez a prova maior que uma pessoa pode dar. Trocar os sofás, ar condicionado e um bando de puxa-sacos que teria como ministro, além da fama, na Revolução Cubana, por voltar a subir as montanhas e colocar sua vida em risco, o levou a pagar com a própria vida a coerência com um ideal.
IHU On-Line - Como seria uma revolução social ideal para Che Guevara? É possível vislumbrar na sociedade atual um cenário em que o povo assuma seu próprio destino e participe das decisões políticas da sociedade?
João Pedro Stédile - Os ideais revolucionários acerca de uma sociedade mais justa e igualitária  estão descritos pelo Che, em suas cartas, em seus discursos, mas ainda mais em sua prática, o tempo todo. Acho que o ideário de Che é defender que somente é possível a libertação das pessoas, na construção de sociedades e regimes políticos, quando elas possuem as mesmas oportunidades e direitos. Onde todos e todas sejam de fato iguais, no poder e na renda. E aplicava isso. Seus filhos foram criados exatamente como qualquer outro filho de um trabalhador cubano. Defendia o estudo como um direito de todas as pessoas, aplicando na prática as idéias de José Martí[4], que defendia que somente o conhecimento liberta). Defendia os mecanismos de participação direta do povo, na política, no exercício do poder no estado. Abominava os burocratas, os esquemas burgueses de dominação existentes até hoje. Não só é possível ainda vislumbrar o seu ideal de sociedade como é necessário que a humanidade continue caminhando, perseguindo a construção de regimes políticos em que as sociedades estejam baseadas no princípio de igualdade, da justiça social e da solidariedade.
IHU On-Line - Que tipo de líder era Che Guevara? Quem hoje poderia ser apontado como seu seguidor?
João Pedro Stédile - Che não era um líder carismático por seus dons de oratória. Tinha uma personalidade contrária aos lideres populistas que a literatura registra. Che era tímido, de voz  fraca e asmático. Tornou-se um líder por seu exemplo e por sua extrema coerência e identidade com aqueles com quem conviveu. Foi assim que o povo o transformou em líder. Por isso, não adianta buscarmos líderes famosos, que possam se alvorar como descendentes de Che. Acho que todos os militantes sociais, do Brasil, da América Latina e do mundo, que dedicam suas vidas, modestamente, quotidianamente, na luta por causas justas e igualitárias, estão praticando os ideais do Che. E talvez seja por isso que, sem dúvida nenhuma, Che é o líder socialista mais conhecido em todo mundo, durante a segunda metade do século XX até hoje. Tive o privilégio de viajar bastante. E em todas partes do Brasil, da América Latina e do mundo encontramos as referências do Che, entre a juventude.
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[1] Movimento 26 de julho: foi o movimento revolucionário cubano, fundado em 1954, por Fidel Castro e seus companheiros, contra o ditador Fulgêncio Batista. (Nota da IHU On-Line)
[2] Dom Sergio Méndez Arceo: Foi bispo de Cuernavaca, México. (Nota da IHU On-Line)
[3] Walter Moreira Salles Jr. (1956): cineasta brasileiro, filho do embaixador Walther Moreira Salles, da família que detém o controle do grupo Unibanco, adquiriu projeção internacional, especialmente após os seus filmes que foram nomeados para o Oscar. Seu primeiro filme relevante, Terra estrangeira, foi rodado em 1995 e premiado como melhor filme do ano no Brasil. A edição 237 da IHU On-Line, de 24-09-2007, destacou como Filme da Semana o recente documentário de Salles intitulado Santiago. (Nota da IHU On-Line)
[4] José Julián Martí (1853-1895): mártir da independência cubana em relação à Espanha. Além de poeta e pensador fecundo, desde sua mocidade demonstrou sua inquietude cívica e sua simpatia pelas idéias revolucionárias que gestavam entre os cubanos. Em 19 de maio de 1895, no comando de um pequeno contingente de patriotas cubanos, após um encontro inesperado com tropas espanholas nas proximidades do vilarejo de Dos Rios, José Martí é atingido e vem a falecer em seguida. Seu corpo, mutilado pelos soldados espanhóis, é exibido à população e posteriormente sepultado na cidade de Santiago de Cuba, em 27 de maio do mesmo ano. (Nota da IHU On-Line)

9 comentários:

Anônimo disse...

Querer ser bom é bom, mas muitas vezes, sem informação suficiente sobre o que significa o nosso semelhante, coisa que se perdeu perdeu desde que surgiu o pensamento, a fala e a escrita, nos deixamos envolver por sentimentalismos. Isto provoca radicalismo, e isso não é bom. Nunca deu bons resultados. O século XX teve experiências suficientes para nos mostrar os caminhos menos ruins para uma convivência minimamente aceitável entre nós,humanos.
Ideologias ou religiões não podem cumprir aquilo que prometem, mas sim leis e regulamentos, que se cumpridos, como nos EUA, que não é nenhum paraíso, podem atender com um mínimo de insatisfação as insaciáveis ambições humanas.

Anônimo disse...

O século XX taí, rico em fatos, experiências e ideías viáveis e inviáveis no campo da organização político social.
A pretensão humana de achar que pode transformar milhões de anos de um produto da natureza em um produto humano contradiz o fato de que existe mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia. Buda, Nietzsche, Cioram, para citar alguns, são pessoas que sabiam disto e nunca propuseram nada , além de estudar o que significa os humanos e a sua convivência com o outro.
Tranformar um produto de milhões de anos em um "ista" (cristianista, marxista, leninista, fidelista, pol potista, stalinista, nazista, comunista, etc) é ser infantil e acreditar em papai noel e, deu resultados nefastos para a humanidade. Foram quase um século de experimentos alternativos á democracia. A história está aí para não nos deixar mentir.
O máximo que se pode pretender para uma convivência melhor entre os humanos, são algumas regras, poucas leis e mesmo assim não se pode achar que vai funcionar em 100%, pois as verdadeiras leis estão dentro do Homem e elas são imutáveis. São genéticas...Por essas e outras, os fatos demonstram que os EUA com a democracia, embora não seja nenhum paraíso, até agora, é o país que deu resultados menos piores para avida social: maioria das revoluções, sem sangue, sairam de dentro deste país, atravéz das necessidades humanas com suas lutas.

Anônimo disse...

Todos temos sentimentos, mas antes de nos movermos, devemos conferir se estes sentimentos têm fundamentos no amor, na paz e na solidariedade, como Irmã Dulce e Madre Tereza e não em alternativas que precisam da violência como desculpa para "salvar" a humanidade.

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

A vida é complexa: a realidade não feita fora, mas dentro de um contexto de exploração, dominação e mistificação... A maior bondade é próprio libertação dos homens...
Dom Helder diziam que se ele atendiam os pobres era considerado bom, mas bastava ele questionar o por que da pobreza e llogo era discriminado como comunista...
Não é meu caso que acredito no socialismo libertário, experiência ainda não vivida pela humanidade...
Refletindo, caminhamos... Abraços com ternura. jorge

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Eu creio na historicidade da realidade, na sua impermanência e no compromisso do homem de transformá-la, humanizando com e para todos. abraços jorge

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Me pergunto: quanta violência tem sido necessária e usada na manutenção do sistema capitalista?
Os escravos, os tuberculosos das fábricas, os desnutridos... as vítimas das guerras... Estas são legítimas?
Com carinho jorge

José Caui disse...

Caro Sr. Anonimo, me perdoe a franqueza, mas sua insistência no apoio aos norte americanos extrapolam a realidade, bastou uma crise econômica ano passado, para entregarem suas casas e passarem a morar dentro dos carros, eles não conseguem se reinventar, são robotizados, fico lembrando do furacão Katrina, onde os moradores de New Orleans, em sua maioria negra foram abandonados a própria sorte, morrendo sem assistência. Não aprenderam a se solidarizar com a dor dos seus iguais.

José Caui disse...

Jorge que sorriso lindo do Che!!! que entrevista lúcida do Stédile sobre esta personalidade e símbolo da luta diária contra os processos opressivos. Me fez lembrar uma frase da Margareth Mead "Nunca pense que um pequeno grupo de pessoas pode mudar o mundo, na realidade são elas que sempre mudaram". Abraço

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Cauí, você tem razão, é um sorriso lindo. Um sorriso tecido de sonhos, lutas e ternuras... Ele muda vidas, ainda hoje... abraços jorge