Carência da Justa Medida
Leonardo Boff
A nossa cultura se caracteriza pelo excesso em quase todas os âmbitos da vida: excesso na utilização dos recursos naturais, na exploração da força de trabalho, na especulação financeira, na acumulação de riqueza. A atual crise é fruto em grande parte deste excesso.
O historiador inglês Arnold Toynbee em seus estudos sobre o nascimento e morte das civilizações assinala que estas entram em colapso quando o excesso para mais ou para menos começa a predominar. É o que estamos assistindo atualmente. Daí a importância de refletirmos sobre a justa medida, que acaba sendo sinônimo de sustentabilidade.
A justa medida tem a ver com o ótimo relativo, vale dizer, com o equilíbrio dinâmico entre o mais e o menos. Por um lado, toda medida é sentida negativamente como limite às nossas pretensões. Daí nasce a vontade e até o prazer de violar o limite. Por outro, é sentida positivamente como a capacidade de usar, de forma moderada, potencialidades que podem dar outro rumo à história e assim garantir a continuidade da vida.
Vejamos rapidamente o lugar da justa medida em algumas das grandes culturas por nós conhecidas.
Nas culturas da bacia do Mediterrâneo, particularmente, entre os egípcios, gregos, latinos e hebreus a procura da justa medida era central. O mesmo se dá no budismo e na filosofia ecológica do Feng-Shuy chinês. Para estas tradições o símbolo era a balança e as respectivas divindades femininas, tutoras do equilíbrio.
A deusa Maat era a personificação da justa medida para os egípcios. Sob sua responsabilidade estava aquela medida política que permitia tudo fluir equilibrada e sinfonicamente. Mas os sábios egípcios cedo perceberam que esse equilíbrio só é sustentável se a medida exterior corresponder à medida interior. Caso contrário, impera o legalismo. Hoje sabemos que essa visão influenciou fortemente o pensamento grego e latino e fez com que uma das características fundamentais da cultura grega fosse a busca insaciável da medida (métron, em grego, de onde vem nosso metro). Clássica é a formulação, verdadeira regra de ouro: “a perfeição está na justa medida em todas as coisas.”
A deusa Nêmese, venerada por gregos e latinos, correspondia à deusa Maat dos egípcios. Representava a justiça divina e a justa medida. Quem ousasse ultrapassar a própria medida (chamavam a isso de hybris = arrogância e presunção exacerbada) era imediatamente fulminado por esta divindade. Assim, por exemplo, os campeões olímpicos que, como nos dias de hoje, se deixavam endeusar pelos fãs; também os escritores e os artistas que permitiam sua divinização por causa de suas obras.
A Bíblia hebraico-cristã formula, à sua maneira, a busca da justa medida. Ela se baseia no reconhecimento do limite intransponível entre o Criador e a criatura. A criatura jamais poderá ultrapassar esse limite e ser como Deus. A grande tentação formulada pela serpente a Adão e Eva no paraíso terrenal era: caso ultrapassassem o limite seriam como Deus. Ultrapassaram e receberam o castigo: a expulsão do paraíso. Pecado é não aceitar a situação de criatura, é recusar esse limite e essa medida, é procurar alçar-se à altura divina.
Apesar da expulsão, continuou a missão de “cultivar e guardar” o jardim do Éden. Aqui se anuncia uma medida de valor sempre atual: o ser humano pode intervir na natureza desde que orientado pela medida do cuidado, pois “cultivar” expressa o cuidado essencial e “guardar” é sinônimo de garantir a sustentabilidade.
Mas cabe perguntar: quem estabelece a medida? Indicaram-se muitas fontes inspiradoras. Geralmente apontadas como únicas: ou a natureza, ou a razão universal, ou as ciências empíricas, ou a sabedoria dos povos, ou as religiões e a revelação contida na Bíblia judaico-cristã, ou o Alcorão, ou os Upanishads, ou o Tao e outros.
Hoje mais e mais estamos convencidos de que nada pode ser reduzido a uma única causa (monocausalidade) ou a um único fator. Pois nada é linear e simples. Tudo é complexo e vem urdido de inter-retro-relações e de redes de inclusões. Por isso precisamos articular todas aquelas instâncias e outras mais. Juntas devem nos ajudar a encontrar uma justa medida adequada. Pois todas elas trazem alguma luz e comunicam alguma verdade. Sabedoria é colher estas verdades que potenciam o equilíbrio e permitem a vida viver e evitam conflitos desnecessários.
Para nós hoje a questão é: qual é a justa medida de intervenção na natureza que, por um lado, preserva o capital natural e por outro nos traga benefícios? Porque ainda não achamos a fórmula justa estamos patinando na crise.
Nenhum comentário:
Postar um comentário