segunda-feira, 13 de junho de 2011

BONS ENCONTROS: CLARICE LISPECTOR, CAMINHOS DO EXISTIR...

CLARICE LISPECTOR: UMA COSMOVISÃO
 Márcio José Lauria

             (Exercício de viajar em alheio e inquieto fundo de  poço)

TEXTO: Água Viva, 2.ª edição, Artenova, Rio, 1973

INTRÓITO
         Clarice Lispector continua sendo algo estranho e fascinante na literatura brasileira. Dotada de especial sensibilidade, sua preocupação maior nunca esteve no enredo, no linear das coisas. Exigiu, ao contrário, que o leitor se entregasse em meditação à aventura de ler, se quisesse desfrutar da profundidade dos conceitos que se multiplicavam.
         Alguém chegou mesmo à ousadia de dizer que CL era uma grande escritora à procura de um tema. E ainda não foi em Água Viva que se deu a predominância temática: aqui o enredo fica à conta do leitor que, se puder, transforma-se em personagem e se encontra a cada instante no pensamento profundo da escritora, traduzido em frases maciças e originais.
         Procurei, para deleite pessoal, organizar um roteiro da visão do mundo de Clarice, através de suas próprias palavras. Agrupei-os em torno daqueles focos de reflexão que me pareceram mais evidentes  no livro em exame: a hora que passa (“Aqui e Agora”), os desejos nem sempre possíveis (“Aspiração”), as relações interpessoais (“Eros”), a metalinguagem da escritora (“Áspero Ofício”), o autoconhecimento (“Nosce Te Ipsum”), a força da palavra (“Verbum”), as autodefinições (“Ser”), as relações  da palavra com a música e a pintura (“Luz e Som”), o transcendental (“Deus e Eternidade”), o mundo circundante (“Natureza”), o princípio e o fim (“Alfa e Ômega”). Para assegurar certa organicidade ao trabalho, inseri um “Pórtico”, um “Arremate”, um “Apelo Final”, um “Post Scriptum”, além de várias “Pausas”).
         Os números entre parênteses ao fim de cada tópico indicam as páginas do livro de onde extraí o texto.

         PÓRTICO
         O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente? Minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas. O halo é mais importante que as coisas e as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra. E é trombeta que anuncia. (57)

         AQUI & AGORA
Estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já. (9)
Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes, em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim. (11)
Domingo é o dia dos ecos – quentes, secos, e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas – de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco. (19-20)
Nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade é dor humana. É nossa. Eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto. (59)

ASPIRAÇÃO – I
Quero apossar-me do é da coisa. (10)
Quero possuir os átomos do tempo. (10)
Não quero ter a terrível limitação  de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. (25)
Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. Quero a profunda desordem que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente. (31)
Um dia eu disse infantilmente: eu posso tudo. Era a antevisão de poder um dia me largar e cair num abandono de qualquer lei. Elástica. (33)

EROS
Só no ato do amor – pela límpida abstração de estrela do que se sente – capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si. (10)
No amor o instante de impessoal jóia refulge no ar, glória estranha de corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio de instantes. (10)
Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então. (30)
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor acabou. Mas às vezes em seu lugar vem o belo ódio dos que se amaram  e se entredevoraram. (101)
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo. (115)

ÁSPERO OFÍCIO – I
Ao escrever, não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. (13)
Escrevo por profundamente querer falar. (13)
E se digo “eu” é porque não ouso dizer “tu”, ou “nós” ou “uma pessoa”. Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando  mas sou o és-tu. (14)
Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. (14)
Quero escrever-te como quem aprende. (15)

PAUSA – I
Estou atrás do que fica atrás do pensamento. (14)

NOSCE TE IPSUM – I
Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é bom. (14-15)
Não quero perguntar por que, pode-se sempre perguntar por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim. (16)
Venho de longe – de uma pesada ancestralidade. (18)
Liberdade? É meu último refúgio, forcei-me à liberdade e agüento-a não como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. (18)
Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor. (18)
O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo. (19)

VERBUM – I
A palavra é a minha quarta dimensão. (11)
O que pintei nessa tela é passível de ser  fraseado em palavras? Tanto quanto possa ser implícita a palavra muda no som musical. (12)
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. (12)
Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. (13)
O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. (16)

 DO SITE: http://www.culturabrasil.org/clarice.htm 



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