Humberto Maturana: a biologia do amor
maria da conceição de almeida
Há em cada um de nós uma biologia do amor que pede para ser acionada, que deseja uma condição favorável para emergir e expressar-se. Render-se ou não render-se a biologia do amor, pode ser um desafio importante para a condição humana.
Pelo menos no limite dos objetivos aos quais nos propomos aqui, a alternativa acima anunciada sintetiza o conjunto das reflexões éticas do biólogo chileno Humberto Maturana no que se refere a convivência humana com base na emoção do amor. Para o construtor da noção de autopoieses (1997), noção que procura compreender o processo constitutivo dos sistemas vivos, todo ato de conhecimento é uma construção de um sujeito observador que vê, explica, classifica e qualifica os fenômenos a partir de uma emoção constitutiva fundamental. “Existem duas emoções pré-verbais” diz Maturana: “a rejeição e o amor”. A rejeição opera uma cognição pautada pela separação, pela negação e pela exclusão do outro em relação ao observador. Quanto ao amor, este “constitui o espaço de condutas que aceitam o outro, como um legítimo outro na convivência” (1998). Rejeição e amor não são entretanto opostos entre si, porque a ausência de um não leva ao outro, sendo mais apropriado dizer que ambos têm como oposição, a indiferença. Para Maturana é no plano das conseqüências do agenciamento do amor ou da rejeição, que se configuram caminhos cognitivos divergentes. A rejeição nega a convivência; o amor a constitui. Quanto à indiferença, esta não agencia conhecimento, não prover valores, não posiciona o sujeito, não opera ação pelo linguajar, não é oposição nem adesão. É mais propriamente um estado de inércia, desprovido de aptidão e vontade para colocar-se frente a qualquer coisa. Um estado de apatia e torpor. A rejeição e o amor são, ao contrário, operantes, agenciamentos da cognição, estados cognitivos dinâmicos, em ação. O primeiro (rejeição) opera pela recusa prévia frente a um fenômeno, a um valor, a uma circunstância. Poderíamos chamar a isso de um estado cognitivo covarde, medroso, frágil. Rejeitar e negar a priori uma situação, um enunciado, ou um “outro” qualquer, não denota a resistência como fragilidade? A recusa como medo de auto-destruição? A negação apriorística como inconsistência interna que não pode se pôr à prova?
Para Maturana operar na emoção pela via do amor é constituir o propriamente humano na convivência. Isso porque o “amor não é um fenômeno biológico eventual nem especial, é um fenômeno biológico cotidiano” (op. cit.). Ele é tão básico que torna-se necessária uma verdadeira maquinação cultural para contê-lo. Por isso, a consciência da guerra e a incitação a ver no outro um inimigo a ser destruído, são frutos da internalização de uma visão de mundo que só se mantém pela vigilância e pela obediência. Se não houver vigilância para criar, cultivar e manter a idéia do inimigo, a biologia do amor emerge e se desconstrói a imagem de inimigo. Fazendo alusão a Primeira Guerra Mundial, Maturana diz que era esse o problema com as trincheiras. “Era preciso proibir o encontro dos inimigos fora da luta”, porque se os alemães, ingleses e franceses conversassem entre si nesses períodos, “acabava-se a guerra”. Daí a necessidade de manter uma dinâmica permanente de desclassificação do outro como uma forma de conter a compulsão natural para a aceitação, o convivial, o afetual. “É por isto que o torturador tem que insultar e denegrir o torturado” (1998).
Também em situações de crise ou em circunstâncias extremas, como terremotos e incêndios, “as pessoas se encontram num nível básico onde a solidariedade está presente e nem sequer é preciso recomendá-la, ela aparece sozinha. Por que? Porque o amor nos pertence como característica biológica que constitui o humano”. (op. cit.).
Em relação ao desequilíbrio de nossas funções vitais, vale lembrar que “a maior parte das enfermidades humanas surgem na negação do amor. Adoecemos se não nos querem, se nos rejeitam, se nos negam ou nos criticam de uma maneira que nos parece injusta”, porque “a dinâmica fisiológica tem a ver com a dinâmica emocional”. Não é demais lembrar que grande parte do que se convencionou chamar as “doenças do século” tem por origem a disfunção vital de um sujeito que estranha e vivencia mal a solidão que ele próprio criou, e a angústia de um indivíduo que se amesquinha pelas opções unitárias quando de fato gostaria de ser múltiplo.
No conjunto dessas considerações fatuais é importante destacar uma referência feita por Maturana ao processo de construção do sujeito social. Para ele, a infância e a juventude são “períodos cruciais na história de toda pessoa”. “Na infância, a criança vive o mundo em que se funda sua possibilidade de converter-se num ser capaz de aceitar e respeitar o outro a partir da aceitação e do respeito de si mesma”. Na juventude experimentamos a validade desse mundo (experiência de respeito e aceitação) o que permite a constituição de um padrão de vida adulta social e individualmente responsável. A auto-estima proveniente da aceitação e respeito por si próprio, se desdobra num estilo de viver capaz de aceitar e respeitar o outro. É claro que o respeito por si e a auto-estima daí proveniente, emanam da convivência com os adultos – pais, familiares, professores. “Se dizemos que uma criança é de certa forma boa, má, inteligente ou boba, estabilizamos nossa relação com ela de acordo com o que dizemos”. Uma criança que vive a experiência da constante acusação, do erro, da suspeita e da depreciação por parte dos adultos, tem sua auto-referência minada pela negatividade, pelo descrédito de si. Como então olhar para si, aceitar-se, se ao que tudo indica, “algo está errado com ela?” “Se a criança não pode aceitar-se e respeitar-se, não pode aceitar e respeitar o outro”. Ela tenderá sempre a temer, invejar, depreciar e suspeitar do outro quando adulta. Ela estará mobilizada para querer sobretudo competir e tirar proveito em relação aos outros, ao invés de colaborar e partilhar.
É com base nesses argumentos que Maturana discutirá o que é educação, e, mais amplamente, o que são relações sociais. Para ele, nem todas as relações humanas são relações sociais. Há vários domínios das relações humanas, mas somente aquelas que fluem na aceitação mútua e “têm a ver com nossa história biológica”, com o amor, são relações sociais. As relações de trabalho que se fundam no “compromisso de cumprir uma tarefa”, assim como as relações hierárquicas de poder que se fundam na “negação mútua implícita e na exigência da obediência”, não são relações sociais. O social se dá na aceitação do outro e no amor. O social é da ordem da biologia, daí porque a “aceitação do outro não é um fenômeno cultural”. O cultural é mais propriamente uma segunda ordem que diz respeito às regras de delimitação ou restrição da aceitação do outro. Em outras palavras, o cultural seria o controle racional para gerir o social que é da ordem do biológico.
Segundo Maturana, “na espontaneidade de nossa biologia estamos basicamente abertos à aceitação do outro como legítimo outro na convivência. Essa disposição básica, é básica em nós, porque é o fundamento de nossa história hominídea”.
Render-se ou recusar a biologia do amor é, pois, definir-se diante de um processo civilizatório que requer outra concepção de social.FONTE: http://www4.uninove.br/grupec/Biologia_social_das_emocoes_Ceica.htm
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