quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Devir criança

Devir Criança: lições dos Erês
Jorge Bichuetti
Diretor clínico da Fundação Gregório F. Baremblitt .
Analista Institucional e Esquizoanálista








Introdução

O ser é devir e devém como diferença, singularidade e multiplicidade (Baremblitt,1998). Assim, o essencial na individualização é poder se subjetivar rizomaticamente, superando a pessoalidade restritiva de uma identidade fixa e imutável.

A impessoalidade emerge na transversalidade dos n devires que ocorrem no homem e no mundo.

A identidade é entidade molar, castrada e castradora; um instituído que reprime as forças instituintes. A vida reprimida torna-se cinzenta e o homem enfrenta o cotidiano empobrecido. Passa, então, a existir com um repertório pouco flexível e pouco hábil diante da complexidade e diversidade das exigências, internas e externas, da própria existência.

O homem- cópia: ser de repetições, é o normal, a ''mediocridade institucionalizada'' (Miziara, l990); e evita situações de mudança.

Guattari (2000), no caosmose, reconhece na infância, na loucura, na arte e na paixão situações potencialmente disruptivas no sentido de criaçãodo novo.

Assim, pensamos a importãncia do devir criança, cuja potência analisaremos aqui a partir de lições da mitologia dos erês.

Devir Criança

O devir criança não equivale à idéia de infantilização do jovem, do adulto e do velho.

Trata-se do resgate das potências da infância que são reprimidas no processo de amadurecimento do socius atual onde se gesta uma identidade única, rígida, racional e estável.

Para Gil (2000), o devir criança é imprescindível a todos os devires do adulto.

O devir criança envolve a capacidade de:

• outrar-se (devir outros);

• fantasiar, fabular (visão criativa de multiplicidades virtuais);

• brincar, brincar sem perigo;

• sonhar;

• estar fora do tempo cronológico;

• dar às coisas e espaços uma topologia própria, mágica;

• e de outros n devires (mineral, vegetal, animal etc ).

Outrar-se depende de agenciamentos que con-forme ''blocos de infância'', plano de encontro de dois devires de vetor contrário: '' do passado para o futuro, do presente para o passado'' (Gil, 2000, pg 93).

A brincadeira é essencial nos agenciamentos do devir criança.

Na terapia temos necessidade/possibilidade de desaparecimento do sintoma incrustado na identidade, e, portanto, a de se devir outro, um devir inerente à infância, ao devir criança.

Devir Criança e os Erês

O universo da magia afrobrasileira se dá numa encruzilhada entre o sagrado e o profano, o divino e o humano.Nela, os erês desnuda e materializa a infância enquanto uma potência da vida imanente ao jogo alegre do brincar como fonte de um devir suavidade.

Nascem de uma mãe guerreira e são cuidados por uma mãe terna, meiga e faceira.

Suas lendas revelam sentidos do próprio devir criança:

• brincando, eternamente, eles superam a morte, a tristeza, a anedonia e a solidão.

• são arteiros, mas já não brincam com fogo (perigo), brincam sem perigo; por isso suas artes provocam emoções fortes;

• só se devém num passar, passear alegre, após serem resgatadas da criança morta;

• definham se perseguimos o devir animal, a libertação do macaco fortalece o vigor da criança;

• no brincar afugenta da vida os miasmas da morte: a) brincando descobrem fonte subterrânea que mata a sede e afasta a morte b) e o toque dos seus tambores, encanta a morte.

Em síntese, eles gostam mesmo é de brincar (Prandi, 2001).

Festa e oferendas: em jardims, praças; debaixo de roseiras. Com doces, pirulitos, balas, bolos...

Provocam afectos alegres:

Vendo estas lendas e com eles estando no en(canto) dos terreiros, notamos que eles afetam, colorindo a vida cinzenta do cismar humano de alegria, leveza, suavidade... Leva- nos a cirandar e na ciranda, bifurcar descobrindo no brincar e na travessura novos modos de desconstruir nossa amargura, nossa rigidez, nossa existência desbotada.

Conclusão

Devir criança- brincar, outrar- se...

Superar-se no instituído da identidade: adulto, sério, sisudo, rabugento.

Re- descobrir o riso, o canto... A Fábula.

Uma fábula de sonhos encantados.

Os erês parecem um exercício catártico.

... Mas são pura provocação.

Podemos. Um corpo pode devir...

Devir- se alegria.

Contudo, urge deixar fissurar sua rostridade de adulto. Do adulto com seu trono, um trono de verdades absolutas, de racionalidade matematicamente cifradas e sentir, viver as potentes desterritorializações do brincar.





Referências Bibliográficas


1. Baremblitt, G. Introdução à Esquizoanálise. Belo Horizonte, Inst. Felix Guattari, 1998.


2. Gil, J. Diferença e negação em Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, Relume - Dumará, 2000.


3. Guattari, F. Caosmose. Rio de Janeiro, Ed 34, 2000.


4. Miziara, L. A Salamandra. São Paulo, João Scordecci Ed, 1990.


5. Prandi, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Cia das Letras, 2001.

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