sábado, 23 de janeiro de 2010

identidade e devir

Identidade e devir: análise da desinstitucionalização da identidade egóica e dos processos instituintes da crise num esquizodrama de psicóticos, NAPS – Uberaba, 2003.


Jorge Bichuetti

Maria de Fátima Oliveira


                  Introdução:


O homem tem sido um escravo de si mesmo. De um si mesmo produzido socialmente.

Somos (estamos) seres de identidade. Identidade rígida, permanente. Inflexível.

Somos (estamos) cópias ... Somos (estamos) seres de repetição; que tendemos a reprimir, amordaçar, marginalizar a emergência do simulacro, do diferente: do singular, da multiplicidade e da impessoalidade.

Temos identidade: com nome, identidade e CPF...

Temos identidade: um jeito de ser, sentir e agir previsível. Corretamente, levamos a vida com uma pauta-de-conduta, um repertório, já previamente definido. A priori, somos (estamos) no mundo cerceados pela nossa identidade restritiva e repetitiva, nela carregamos pré-delimitado o prescrito, o proscrito e o indiferente.

E temos uma identidade marcada pelo socius, pela rede de instituições, instituições que geram, o eu, como um instituto, uma entidade molar.

O eu - indivíduo, pessoa ou sujeito- é ser de repetições. (Baremblitt, 1998). Que se reproduz delimitado pela construção edípica , baseada na triangulação, no desejo de posse e exclusão e na função da identificação como mecanismo de perpetuação de eu-mesmisse.

Somos (estamos) repetindo o mesmo. A nossa identidade que se institue evitando o pulsar instituinte do devir.

O homem egóico evita-se novo...Desconhe-se a potência produtiva, inventiva e rizomática do inconsciente. Evita-se devir criança, animal, mineral... Evita-se devir imperceptível.

Somos (estamos) visíveis, com rosto, adereços, gestos e reações, e, também, vínculos e experiências próprias.

Paralisados, carregamos nosso ego, e ainda infelizes dizemos: mas, afinal eu sou assim...

Desconhecemos os outros mumificados, esquecidos ou ainda não inventados que dormitam em nós.

Ah! Como nos falta a coragem de Maria de Andrade (2000,pg 99):

“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,

As sensações renascem de si mesmas sem repouso,

Ôh espelhos, ôh Pirineus! ôh caiçaras!

Si um Deus morrer, irei no Piauí buscar outro.



Abraço no meu leito as melhores palavras,

E os suspiros que dou são violinos alheios;

Eu piso a terra como quem descobre a furto;

Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos.



Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,

Mas um dia afinal eu toparei comigo...

Tenhamos paciência, andorinhas curtas.

Só o esquecimento é que condensa,

E então minha alma servirá de abrigo”.



                          2. A crise e o ego:


O mundo do instituído, do organizado se mantém no espectro da estabilidade e da regularidade, embora abrigue em si forças instituintes que são cerceadas e negadas, às vezes, destruídas, doutras apenas amortizadas, controladas, ou ainda capturadas, isto é, postas à serviço da reprodução do status quo.

Contudo, a crise representa momento de desterritorialização do ordenado e a emergência disruptiva do instituinte, potencialmente criadora do novo.

A crise é uma potência instituinte (Baremblitt, 1994 e Bichuetti, 2000).

Negamos a crise. Idolatramos o normal.

“A normalidade é a mediocridade institucionalizada“ (Miziara)

A crise questiona a nossa situação de espíritos acorrentados e dela podemos nos devir espíritos

livres, nas expressões de Nietszche (Bichuetti,2000)

A desordem o caos de uma crise-pode ser agenciado na sua potência instituinte, isto é caosmótica das situações de loucura, paixão, arte e infância onde do desordenado, caótico se maquinam focos produtivos de alta complexidade, originárias do inédito, do inesperado e da inusitado

(Guatarri).

A crise – teria assim um pé na realteridade ( conceito de Gregorio F. Baremblitt), e na sua trajetória esquizoonte (conceito, também de Baremblitt) gerando acontecimentos, o diferente, o novo radical.

Porém, nem sempre, uma crise fecunda a existência com a produção de vida, vida nova. Ela pode ser vitimizada pelos mecanismos de exploração, dominação e mistificação do sistema, da ordem instituída e retrair-se via captura adaptativa ou perder-se, sem conseguir, reterritorializar-se, passando a existir no buraco negro (girando em falso), farrapo humano produzido pela antiprodução cronificante.



                 3. O Naps – Maria Boneca e Crise


O Naps é uma clínica intensiva de cuidado aos portadores de sofrimento mental grave.

Atende 125 usuários – em regime intensivo, de segunda a sextas, das 8às 15hrs (25); em regime semi-intensivo, três vezes na semana (50); e o restante, não-intensivo (50), três vezes ao mês.

Nega-se a centralidade da doença e tem por objeto “ a existência – sofrimento na sua conexão com o social “ ( Rotelli, 2001).

Norteia-se pela esquizoanálise de Deleuze – Guatarri e Baremblitt

O projeto terapêutico positiva a crise.Tal qual é definido, no texto Krisis:

Para pensar esta questão julgamos indispensável refletir filosoficamente sobre dois modos de conceituar o ser, ou seja, duas ontologias. Uma é, a tradição filosófica da positividade. Recorrendo a Nietzche:

“O verdadeiro afirmador, diz ele, não é aquele que pronuncia um sim a qualquer que seja a realidade, dispondo-se carregá-la sem ao menos selecioná-la ou avaliar seu peso. Não, este só pode ser o sim do asno, um sim indiferente e resignado. O sim dionisíaco, ao contrário traz consigo um não destruidor, um não capaz de anular o poder de uma realidade que é simples produto do negativo e obstáculo à criação, e abrir caminho para que a realidade positiva se produza, dando lugar aos devires ativos”. (1)

Outra tradição filosófica é a da negatividade, preponderante, que remonta à tradição Socrático-Platônica, Cartesiana, marcada pelo ser de falta. É a tradição que opera uma divisão do mundo em dois planos: O Plano das idéias puras, dos modelos superiores e o plano dos corpos sensíveis, das aparências e das cópias imperfeitas, que aspira assemelhar-se a nada. E, portanto, resto, a pura diferencial.

KRISIS é uma tentativa de se inspirar na ótica da positividade e se inscreve numa rede significativamente mais ampla, que afeta o pensamento atual. Isto implica num novo reenquadramento de valores éticos, em que os segundos vem dar um novo tom aos primeiros, gerando uma profunda mudança no olhar e no fazer.

Essa postura tem seu norte na diversidade; é o fruto de uma complexidade teórico-prática. Nesse sentido, entendemos como uma necessidade abrir-nos a produção cultural contemporânea, não nos limitando aos discursos específicos, o que significa que outros saberes podem e devem concorrer para gestar nossa singularidade. Interessa-nos conviver e oxigenar-nos, por exemplo, com uma corrente de produção filosófica, hoje resgatada - Epicúrio, Heráclito, Nietzche, Deleuze e Guattari; o Movimento Institucionalista, cuja maior contribuição advém de diversas práticas terapêuticas e pedagógicas: contribuições literárias, entre muitas outras.

É dentro dessa ótica que queremos pensar esse acontecimento a que chamamos “crise”. O termo crise, no seu sentido mais amplo, significa ruptura, conflito, luta. Em suas raízes gregas, KRISIS exprime “uma desconformidade estrutural entre um processo e o seu princípio regulador, podendo tratar-se desde um fenômeno físico até implicações das relações éticas” (cf. Prof. Hélio Jaguaribe). Chamaremos também de crise os estados de desrraigamento provenientes da desterritorialização, seja nos meridianos espaciais, seja nos sócio-emocionais.

“Toda crise será a maneira de viver o período de trânsito entre um território já impossível e outro ainda inviável de ser habitado. Como a vida do sujeito continua transcorrendo em algum lugar, chamaremos “Terra de Ninguém” a essa residência fora do tempo e espaço consensual, residência na qual a existência do sujeito já não se enquadra no lugar em que coincida e ainda não, coincide com o lugar em que está”.



A medida em que nos descentramos, em que transitamos por esta “terra de ninguém”, numa tentativa de nada exclui, portanto, de nos deixarmos afetar por tudo o que é problemático e estranho na existência, assim transmutamos nosso fazer. Assim nos pensamos, provisoriamente ...
Manifesto da clínica da Fundação Gregório F. Baremblitt, apresentado em 17/julho – 9(1) Assim falava Zaratustra, Nietzsche, in SaúdeLoucura, Luiz Antônio Fuganti
(2) CRISE – Drª Carmem Lent¨

As atividades envolve oficinas terapêuticas, convivência, assembléia geral auto-gestiva, psicoterapia grupal, grupo de medicação, atividades de arte e lazer, e esquizodrama.

O esquizodrama – realiza-se semanalmente, com 2 horas de duração .

E deles participam terapeutas e usuários.


              4. Esquizodrama: Um Experimento Esquizoanalista


Os experimentos esquizoanalíticos não se restringem a um setting específico, a procedimentos e técnicas pré-fixadas, nem a um campo específico do agir/fazer humano.

Talvez, pudéssemos delimitá-los pelos seus efeitos

Efeitos da análise institucional, (Baremblitt,1994)

Efeito – produto emaranhado no seu contexto produtor.

Verificamos, assim, uma série de efeitos pertinentes à prática esquizoanálitica:

- efeito instituinte;

- efeito desterritorializante;

- efeito disparador;

- efeito caosmótico;

- efeito esquizoonte;

- efeito singularizante;

- efeito acontecimento;

- efeito desmontes molares, e raspagem de repetições;

- efeito devir;

- efeito multiplicidades;

- e efeito linhas de ação da diferença.

O esquizodrama – drama do devir- é um experimento esquizoanálitico.

Perfomático e baseado na vitalidade dos efeitos práticos supera o agir terapêutico interpretativo e verbal das terapias tradicionais.

Ele intensifica e cria na velocidade dos processos esquizos um jeito de funcionar, - na segurança dos experimentos laboratoriais – desterritorializado, maquínico e caosmótico.

Nele, experiencia-se um estar e um se dar virtual do novo.

Bifurca-se novas saídas e novos sentidos... Raspa-se os registros e controles... e abre-se à produção desejante.

É composto por uma caixa – de – ferramentas.

E é norteado pela superação do instituído, das identidades e pela instalação de um espaço de realteridade, um lugar aonde novos problemas são tematizados na descoberta do que pode o corpo (conceito spinoziano) e não mais pela sua redução representativa de um complexo do passado.

Afetar e ser afetado... Ressonâncias...

Abertura: multiplicidades...

O esquizodrama é uma ferramenta Klínica, pedagógica e de investigação da produção de saberes que por estatuto a invenção, desde que em consonância com o paradigma ético – estética, de re-afirmação de estar na vida, com a vida e pela vida.


             5. O Experimento – Devir Criança

Esquizodrama – no dia-a-dia – da clínica tem funcionado no sentido de “dramatizar para desdramatizar o cotidiano“ ( Oliveira, 2003).

O Experimento Esquizodramático, aqui relatado, se processou em duas sessões, de 2 horas cada, coordenadas pela terapeuta Oliveira, em co-coordenação com os terapeutas Bichuetti, Nery, Lélis Ferreira, Montandom, Milani, Crosara, de Paula, e quatro estagiárias do curso de fisioterapia.

Participaram 40 usuários

Ambos, tiveram por tema - a infância, o devir criança; sendo este um dentre outros esquizodramas temáticos em que temos trabalhado blocos de infância e o devir criança .

Aquecimento – Exercícios bioenergéticos e alongamentos. Duração de 15 minutos.

E brincadeiras de infância – ciranda em roda – canto, dança e jogos – duração de 25 minutos.

Na primeira sessão, montou-se uma brincadeira com a seguinte insigna-recordar apelidos da infância e criar novos e interpretá-los, dramatizando-os.

No encerramento - trocou-se sobre o sentimento vivido e cirandou-se, novamente, com a música “Se esta rua” ...

Na segunda sessão, após exercícios e brincar, em grupos cada pessoa, escolheu ser um outro nome/pessoa, ou outro ser.

Os apelidos recordados e criados estavam grudados num sentimento de desvalia = Siriema, tanajura, pé grande, cri-cri, ...

Vividos com dor, estima rebaixada.

Criando-se novos apelidos, estes fantasmas foram exorcizados.

De um lado, por exemplo, na suavidade de J.H., autista, paralisado que alegre e diáfano, quis chamar-se passarinho para voar...

Por outro, descontraem-se rindo, criando apelidos possíveis para os terapeutas.

Ao se experimentar, intensificados na dramatização, ser um outro nome/pessoa ou ser, emergiu devires possíveis, para além da própria identidade rústica e restrita.

Emergiram –

- Um devir criança - ser outro, brincar de animal, mineral e vegetal; novas pessoas, outras pessoas: (Gil, 2000).

O devir animal-

Um usuário frágil, retrato descobriu-se se forte e guerreiro no vôo de um falcão; uma de fala tímida e poliqueixosa, expressiva nos sons guturais de uma pombinha.

Liberdade, singeleza, leveza – no pingüim, bem-te-vi, na garça, na cachorrinha peludinha

O devir vegetal-

Uma usuária em crise, devém-se cedro e sente capaz de não se vergar nas ventanias do delírio, das lágrimas e do terror.

O devir outro –

O eu – esquecido (?) permite então emergir os outros que se mantém adormecidos em linhas rizomáticas da nossa produção inconsciente que a identidade instituída reprime.

Doentes estereotipados, gordos e embotas, tornam-se Raquel, Magrelo, Fagundes e desfilam elegantes e sedutores.

A abúlica, do lar vira Estelamar – biólogo, estrela do mar, junto de Luana que ama a lua e não se envergonha de viver no mundo da lua, e de Luna que tem na pele a magia do céu.

Outros outros...

O português negocia, a Italianinha faz massas, Robert joga bola, Yuri gestila um zen Japonês

Apragmáticos: estudam, dançam...

E num acontecimento, uma usuária com funcionamento rabujento, querelante e epleptóide se deviu Xuxa e diz querer alegrar, brincar...

Brinca e gesta uma festa...

Todos cantam... Dançam

No fundo, a imagem de um outro devir, alguém se deviu fogo, uma chama.

Uma vela na escuridão .

Que velemos, então, pelo devir

Pelos não devires que jazem inibidos pelo império da identidade, um instituído que afugenta o homem de se devir Super-Homem ... Deuses da imensidão.


               6. Conclusão

Concluir é fechar... Mas “ Nenhuma viagem é definitiva” (Saramago).

Aqui, reabriremos.

O Esquizodrama, aqui analisado, não pode captar as lutas onde o instituído numa polarização paranóica emergiu em defesa de um ego impermeável, imutável, inalterável...

Olhares, fugas... Risos críticos

“ Eu sou eu”... “Não sei fingir”

Fingir ? Não sei, talvez, brincar.

Brincar com a vida à moda da criança.

Que sabe se devir outros.

Pudemos ver, sentir e viver o instituinte na superfície da pele. Pele com poros abertos.

E desfrutar da potência do devir

Eis um efeito do esquizodrama.

E é porisso que adotamos no nosso cotidiano clínico.

Para lidar com crise ... Cuidar, sem fazer da terapia uma oficina de remendos da identidade egóico .

Afirmando-a sempre: clínica do devir





Referências Bibliográficas



1. Andrade, M Os Melhores Poemas. São Paulo, Global, 2000.

2. Baremblitt, G. Compêndio de Análise Institucional. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1994.

3. Baremblitt, G. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte, Inst. Felix Guatarri, 1998.

4. Bichuetti,J. Crise Vida. Belo Horizonte, Inst. Felix Guatarri, 1998.

5. Gil, J. Diferença e negação em Fernando Pessoa. Rio de Janeiro, Relume – Dumará, 2000

6. Guatarri, F. Caosme. Rio de Janeiro, Ed. 34,2000

7. Miziara, L. A salamandra. São Paulo, João Scortecci Ed, 1990

8. Oliveira, M F. Esquizodrama – notas provisórias. Uberaba, Inst. Felix Guatarri, 2002 (mimeo)

9. Rotelli, F. Desinstitucionalização. São Paulo, Huccitec, 2001.

Um comentário:

Alex F Correa disse...

Parabéns! Concordo com essa perspectiva. Trabalho com estudos culturais e vejo muitos pontos em comum, na sua análise do processo identitário. Creio que vivemos devires e não temos identidades fixas, a não ser como miragem egóica, neurótica. Todavia, na ação cultural contemporânea percebemos a força reacionária que o conceito de identidade (cartesiano) possui. Todo artista e agente cultural age em nome da "identidade cultural". Aliás, como disse uma vez Guattari, o próprio conceito de cultura é reacionário... Saudações!