terça-feira, 19 de janeiro de 2010

uma clínica insurgente

UMA CLÍNICA INSURGENTE. ESQUIZOANÁLISE E PROCESSOS DE LIBERAÇÃO

      JORGE BICHUETTI – Diretor Clínico da Fundação Gregorio F Baremblitt. Uberaba, MG.








Introdução: da exclusão manicomial ao direito à diferença

“Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é o meu coração.



Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.”

( carlos drummond de andrade)



Este é um texto situado entre as ressônancias da clínica e as pulsações sonhadas da heterogênese do homem novo, aclamado por Che como mediação necessária às próprias entranhas do socialismo, isto é, à própria construção de uma sociedade justa, fraterna, solidária, plural e libertária.

A clínica do manicômio e o mundo de exploração, dominação e mistificação do capitalismo mundial integrado são lógicas e práticas normatizadoras de exclusão da diferença e que impoem a fisiologia da repetição na perpetuação do status quo. São fábricas de homens cinzentos, de cópias medíocres de sonhos anêmicos e de robôs “replicantes” individualistas, consumistas e competitivos, escravos da ditadura da força, da felicidade e da vitória.

O hospício e a globalização neoliberal efetuam uma eficiente captura: somos todos rebanhos...

Onde mora a águia?

O rebanho se reproduz hoje numa sociedade mundial de controle que gestou novos mecanismos de captura, difusos e capilares, no próprio emaranhado do cotidiano.

O manicômio captura o simulacro e o transforma em trapo autista.

A própria lógica da psiquiatria – racionalidade médica – com seu paradigma baseado na noção geográfica de doença e de cura, constitue intervenções de evitação do novo, do diferente, do inusitado, conquanto seja essencialmente uma clínica normatizadora, de acomodação da vida ao quadriculado da superfície de registro e controle.

A produção desejante com suas linhas de fuga tem, assim, na lógica manicomial um destino: supressão medicamentosa, ocultamento e inviabilização pela exclusão física e existencial, e repressão monitorada.

E se persiste, e presiste, persiste como resistência, rebeldias camufladas, quilombos no território do existir dos psicóticos.

O édipo na psicanálise desempenha similar função. È ele o guardião de uma identidade restrita, castrada e de repetições, linear e eternamente prisioneira de si mesma.

A sociedade mundial de controle supera a sociedade disciplinar, mas não rompe com a exclusão; atualiza-a como inclusão diferencial( Hard, 2000).

As grandes transformações da exclusão manicomial se efetivaram sob a égide de uma linha de fuga: o movimento de defesa dos direitos humanos e de luta por humanização da vida.

E daí, sim, nasce uma nova clínica, um novo espaço: uma clínica da diferença e um espaço de defesa do direito à diferença, visando o exercício pleno da cidadania e a inclusão social na perspectiva de uma sociedade plural.



Esquizoanálise e clínica



“ Quem faz um poema abre uma janela.

Respira, tu que estás numa cela

abafada,

esse ar que entra por ela.

Por isso é que os poemas têm ritmo

- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.”

( mario quintana)



Que clínica é essa? Para Birman(, 2000) é potentemente uma clínica que substitue a idéia de falta por excesso. Neste sentido, o inconsciente deleuzeano livra-se do pecado original de se viver sempre coagido por falta e possibilita a vida como abundância. Há, então, agora base para a incorporação de Nietzsche no cotidiano e se invetar a vida como posição de desejo e vontade de potência.

Deleuze-Guattari (, 1966) , de forma audaz, coloca a esquizoanálise no campo das experimentações inventivas: é qualquer fazer que se faça à moda do louco, da criança, do poeta e do índio

No livro Diálogos, Deleuze (, 1998) situa a função esquizoanalítica como a de se caçar obstinadamente linhas de fuga.

Talvez, agora pudéssemos ousar e problematizar o como de dá esta clínica da invenção da invenção. Isto para nós que não nascemos no sertão: “ Outra educação pela pedra: no Sertão / (de dentro para fora, e pré-didática). / No Sertão a pedra não sabe lecionar; / e se lecionasse não ensinaria nada; / lá não se aprende a pedra: lá a pedra, / uma pedra de nascença, entranha a alma.” ( joão cabral de melo neto).

Assim, fica a idéia de que a melhor resposta é aquela que cada um um de nós podemos criar spinosamente a partir do que pode um corpo.

Mas neste esforço de organizar um pensamento sobre esta clínica não só nova, mas essencialmente, uma clínica do novo, iremos aqui tentar delimitá-la numa breve viagem pela literatura.

Baremblitt define-a resgatando as duas tarefas esquizoanalíticas postuladas por Deleuze-Guattari no Antiédipo :

a.) “ Localizar y criticar lo reproductivo y anti-productivo de cualquier “especie” que transforma la producción de producción en produción de reproducción o de antiproducción. Sabemos que la antiproducción y la reproducción operan sobre el productivo bloqueándolo o coartándolo en sus inicios, acelerándolo al infinito, sepultándolo en agujeros negros, rebotándolo en paredes blancas... o capturándolo, reestratficándolo, reterritorializándolo, recodificándolo, sobrecodificándolo o axiomatizándolo, rigidificándolo en subjetividades, identidades fijas sedentarias, lineas duras, espacios estriados, tiempos cronológicos o diacrónico-sincrónicos, semiologías y cortes significantes, máquinas de estado, instituidos, organizados, establecidos, corporaciones, partidos, iglesias, lenguas mayores, organismos, sistemas etc, etc. Esas viscicitudes de captura o de recuperación se efectúan a predominio desfavorable en los ámbitos de la naturaleza, la sociedad, la subjetividad, la socialidad y el parque tecnológico industrial.”

b.) “Localizar, intensificar y/o inventar las máquinas abstratas y los dispositivoss o agenciamientos destinados a generar producciones de producción: individuaciones por hacceidad, devenires, acontecimientos, efectos, lineas de fuga y abstractas, revoluciones moleculares, nuevas composiciones transmonádicas entre caos y complexidad etc. “

Trata-se, deste modo, de se vivificar a potência de se atualizar as produçoes desejantes singularizantes e inovadoras, maquinando-lhes um plano de consistência; e, igualmente e de forma combinada, desmontar as forças de evitação do novo. E neste sentido que o próprio Baremblitt acrescenta que “ el esquizoanálisis tiene como “adversarios’ relativos más predominantes al capital, al estado, a las “mayorias” dominantes, en suma, a todo y cualquier modo y forma de dominación, explotación, mistificación, perpetuación y destrucción por la destrucción.”

De fato, a clínica manicomial cuida da norma, da regularidade e da estabilidade, é ortopédica, visa a adaptação passiva do homem à realidade. Já a clínica esquizoanálitica revela-se dispositivo transformador onde tudo se dá por mudar a vida e transformar o mundo; uma clínica de ação, militante, que implica “ linhas de ação da diferença, que são não apenas praticadas como também tematizadas. Vê-se que essas linhas, enquanto fluxos intensivos e enquanto portadoras de potências expressivas e interrogativas, vivem num constante estado de experimentação: vê-se que elas se experimentam a si mesmas nos encontros por elas provocados ou nos encontros que lhes são impostos por outras linhas de diferença em ação”. ( Orlandi, 2000, p.49).

Estes encontros ora fagocitam, fermentando capturas paralizantes e retrógradas, ora subsidiam a confluência de linhas de fuga que se articulam em processos criativos e instituintes do genuinamente novo.

Inegavelmente, é uma clínica insurgente...



Uma clínica insurgente



“ O dia ? Árido.

Venha, então, a noite,

o sono. Venha,

por isso, a flor.” ( joão cabral de melo neto)



“ Poesia é voar fora da asa.

... Em poesia que é voz de poeta, que é a

voz

de fazer nascimentos-

O verbo tem que pegar delírio.”

( manuel de barros)

Uma clínica insurgente. Poder-se-ía sem medo de incorreção dizer que a ela se aplica o conceito de implante socialista de Singer (, 2000).

Nômade. De espaço liso. De bons encontros e paixões alegres.

Materializa-se na singularidade plural de seus protagonistas como uma clínica menor: que desterritorializa continuamente o saber e as práticas dominantes, coletivizando-se e coletivizando a própria vida e se postando diante do mundo e da vida de forma militante. Radicalmente militante. Vale aqui ler e se apropriar dos textos: “ juego y compromiso político “ de Julio Cortázar e “ micropolíticas éticas” de Eduardo Pavlovsky .

Que militância é essa? É a própria ação política-revolucionária de se implicar na vida e pela vida com a mudança. E porisso se torna visceralmente a clínica de uma utopia ativa. Onde do diálogo entre “ El socialismo y el hombre en Cuba” de Che Guevara e “ Capitalismo e esquizofrenia” de Deleuze-Guattari emerge uma bricolagem entre revoluções moleculares e luta política que multiplica focos em todos os planos de processos de libertação.

Assim, esta clínica caosmótica, de invenção da invenção, de devir é um dispositivo de agenciamentos coletivos de linhas de fuga e de resistência rebelde às engenhocas dde captura.



Linhas de Fuga, Linhas de Captura



“ Ah! bendito o momento em que me revelaste

O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,

- Terra, melhor que o Céu! Homem, maior que Deus! “

( olavo bilac )



O território das linhas de fuga é o mesmo território da utopia ativa. È o territorio do sonho, do delírio e da poesia. È o nômade, o devir, a singularidade... A subjetivação e não o sujeito.

O eu-déspota, a identidade, escraviza , captura; pois prescinde da evitação de toda e qualquer metamorfose, de toda e qualquer novidade.

A subjetivação consiste numa “ busca prática de um outro modo de vida, de um novo estilo... e deve ser produzida, quando chega o momento, justamente porque não há sujeito” ( Deleuze, 1992, p. 132 e 141).

A clínica tradicionalmente se coloca como uma suave ( às vezes, brutal) captura de afirmação e consubstancialização do sujeito.

A cura, assim, sendo retorno da normalidade perdida é bloqueio, coarctação, captura de n devires latentes numa crise. E é neste sentido que é ela negada pela Reforma Psiquiátrica e substituida pela noção de emancipação.

Delirar é sair do eixo ( Deleuze, 1998), de tal forma que num delírio uma multitude de linhas de fuga se manifestam. E, portanto, a questão fundamental , não é a captura dada pela sua supressão química ou interpretativa, e sim, a possibilidade de dele derivar linhas de expressão novas e novas experimentações de vida. Vida como obra de arte e arte como obra de vida. Esta singularização disruptiva e intempestiva tensiona o socius no seu funcionamento excludente e normatizador. Surgindo, consequentemente, a necessidade de se pensar mecanismos capazes de subsidiar a sobrevivência , a vitalidade e a virulências das linhas de fuga.

A captura conta com o estado e com os microfacismos que se mantém entranhado no tecido social. O poder e o mercado, a opinião do mundo e a moral burguesa tramam uma rede de captura eficiente e onipresente.

O devir minoritário, por natureza, e diferente por emergir num espaço ainda dominado e domado pela lógica das cópias, provoca aversão, hostilidade e oposição no rebanho, é a águia.

N devires , n linhas de fuga nascem e são fagocitadas, anuladas, inutilizadas ou até mesmo destruidas.

A Saúde Mental legitima e executa , frequentemente, a função de agente de captura.

Agora, quando uma nova clínica se situa no campo de defesa do direito à diferença, à singularidade temos que dar conta da sobrevivência da diferença ante as armadilhas e artimanhas do sistema.

Inicialmente, vale detectar uma cartografia dos obstáculos que são os acimas citados por Baremblitt como os adversários da esquizoanálise. Depois, urge gestar uma rede de sustentação do devir, do novo e do diferente.

Neste processo , a clínica necessariamente se associa com os dispositivos populares de luta por um outro mundo possível, contra o neoliberalismo e em defesa da humanidade ou estaremos fadados no isolamento a uma gangrena existencial do novo que mesmo produzida, nunca encontrará campo para a consumação.

A economia solidária, os movimentos ecológicos, os gays, os índios, a juventude, os artistas, as mulheres, as crianças, os sem –terra e os sem-teto, os desempregados, os trabalhadores, enfim, todos os que lutam contra a exploração e opressão podem se articularem e numa rede de defesa da vida produzirem espaço para que as linhas de fuga sobrevivam e confluindo-se numa grande maré de invenção da invenção gere num novo socius solidário, terno e justo, libertário.



Conclusão: socialismo e clínica insurgente, um diálogo nessesário



“ Eis a voz, eis o deus, eis a fala,

eis que a luz se acendeu na casa

e não cabe mais na sala. “

( paulo leminski)





Não se conclui um debate que no fundo trata de dar conta de desafios inerentes a própria libertação da vida . Vida plena, em abundância.

A loucura excluída no manicômio empobreceu a vida.

Hoje, quando a clínica antimanicomial se abre a singularidade da loucura e nela descobre o humano para além do cinzento rebanho de cópias, podemos chamar à mesa e ouvir um diálogo necessário entre estes dois protagonistas de um mesmo sonho, o outro mundo possível.

Ouvir-se-á, então:

Projetos de serviços e de desinstitucionalização para serm operados num processo de libertação de transição para o socialismo.

E , também, poder-se-á sonhar com novo socialismo que supere a exploração e a opressão, incluindo na sua agenda o direito à diferença, a autogestão, o fomento à singularidade e organização rizomática da vida. O direito ao sonho, ao delírio e à poesia..

Auscultando o Guerreiro que dizia ser o amor a maior e mais definidora característica do revolucionário, aprenderemos nós a fabricar uma clínica que pipocando suas linhas de fuga nas montanhas de ousadia do devir haverá de se construir foco, coluna, rede... Um exército à serviço da vida. Uma clínica insurgente que por nada abrirá mão da luta... e da ternura.



Bibliografia

1. Alliez, E (org). Giles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo, Ed. 34, 2000.

2. Deleuze, G. & Parnet, C. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998.

3. Deleuze, G. Conversações. São Paulo, Ed.34, 1992.

4. Moriconi, I. Os cem melhores poemas brasileiros do século.Rio de Janeiro, Obejetiva, 2001.

5. Singer, P & Machado, j. Economia socialista. São Paulo Ed. Perseu Abramo, 2000.

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