sexta-feira, 3 de junho de 2011

DIÁRIO DE BORDO: A CRISE E O HOMEM-TRAVESSIA

                                                          Jorge Bichuetti

Fria, barroca - a madrugada me deixou profunda mergulhada na saudade. Montevideo... Sua paisagem singular - o barroco pós-moderno. Amigos nu'a mesa, canções - milongas de resistência nas entrelinhas da paixão...
Meu quintal está sereno e quieto... Os passarinhos ainda não chegaram... A penumbra transforma minhas árvores em deuses ancestrais... O vento assobia... Cantigas de viver...
Recordo minha infância: meu pai não sabia cantigas de ninar, mas não se absteve nos ninava, cantando 
" Barracão de zinco, sem telhado, lá no morro..." Canção da boêmia que abandonou para construir um lar e cuidar de nós... Renunciou seu próprio ego para devir-se ternura e aconchego... Ficaram no caminho a poesia, os bares, as noites... Permaneceram com ele somente os passarinhos e a pescaria de fim-de-semana...
A Luínha não conheceu o carinho de um avô e de u'a avó... Ela tem minhas irmãs: anjos encantados que brincam de gente para cuidar e amar...
Sentindo tão perto do passado; forte e acolhido, penso atrevido no por que não conseguimos vivenciar com produtividade nossas crises...
Meu pai com riacho e passarinho venceu...
Minha mãe com cantoria, reza, dança e trabalho social, também, venceu...
Somos facilmente abatidos pelas crises; nelas submergimos e no fundo do poço não vemos saída...
Se a crise é produtiva, nascente de novidades... por que somos, assim, tão facilmente, nocauteados?...
No silêncio da madrugada escuto as vozes de Guimarães Rosa e Nietzsche e penso que elas chegam ressoando possíveis bifurcações, saídas, superações...
A crise é encruzilhada... No redemoinho, o diabo...
Jung já dizia que nas crises mergulhamos na profundeza rasa do nosso inferno íntimo.
Como excomungar o diabo, o diabo que não é um outro, é nós mesmos, na nossa destrutividade, no nosso medo do novo... pergunto para o ventoe  o vento ecoa: " O diabo não existe. Se existe, existe homem humano. Travessia." Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
Nos recusamos , frequentemente a condição de travessia: inacabamento, projeto, um conjunto de tarefas... um ser metamorfoseante...
Reificamos nossa identidade e nossa rotina, e a crise pede passagem, mudança, travessia... Para superá-la, criativamente, inventando o novo, a alegria e o reencantamento temos que nos permitir romper com nosso ego tirânico e devir-se andarilho. Nômade, ser de passagem, mudança: amplificação e intensificação, tecidura da nossa multiplicidade, Ser um novo na exploração experimental da multidão que povoa o nosso eu e devir-se eus... na alteridade ética de ser uno na afirmação da vida.
O vento ecoa e Nietzsche fala, dizendo que não vence o diabo com palavras, porque ele é verborrágico... vence com riso, dança e música...
Nossos demónios íntimos são bons de palavra... Nossa identidade rígida se da no que somos e no que suprimimos mediante palavras normativas, narrativas coercitivas e limitantes do que podemos ser e viver...
O riso nos traz a potência do devir criança... O brincar, a leveza, a suavidade, o outrar-se...
A dança movimenta e quebra couraças e libera o devir guerreiro, a capacidade de lutar, de ousar, de guerrear...
A música afeta e faz pulsar e nos permite acercar-nos do devir ternura, do devir anjo, do devir paixão... O coração na pele; vida de afetividade intensiva e criativa... Vida desejante.
Somos estradeiros...
A crise perde sua negatividade, sua ferocidade, sua morbidade...se no caminho a enfrentamos de outro lugar, saindo do reino da palavra da verdade e voando na ventania do devir, usamos as armas que nos permitirão a autosuperação via arte e artimanhas da vida que pulsa na alegria da festa, nos jogos das crianças, no bailar com as estrelas e no cantar com os passarinhos...
Por isso Mario Quitana, sábio e terno, disse: " a todos que atravancam o meu caminho, a minha certeza: eles passarão, eu passarinho"...



TERÇA-FEIRA - 07/06/2011 - UNIVERSIDADE POPULAR : GRUPO DE ESTUDOS, DAS 19 ÀS 21 HS... RUA CAPITÃO DOMINGOS, 1079...NO SONHAR, UM REINVENTAR-SE...

4 comentários:

M. disse...

Não vou comentar directamente este pos. Estive a cuscar o teu blog blog. Porra que cansa (no bom sentido) ler-te. Disparas em várias direcções e com várias profundidades. Quem gosto de aprender deve gostar de vir aqui.

A tua sorte lol é eu gostar de pessoas inteligentes e cultas:)

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

M: U'A ALEGRIA TÊ-LA E VOCÊ SABE DA MINHA ALEGRIA QUE PELA SUA AMIZADE E NOSSAS TROCAS... CAMINHAMOS JUNTOS COM A BUSCA DOS SONHOS; ABRAÇOS COM CARINHO; JORGE

Tânia Marques disse...

Jorge, meu querido, teu repertório é realmente fantástico. Obviamente, consequência de tua inteligência e da busca intensa por mais e mais saberes. Espalhas pelo mundo, grãos de sabedorias, preciosas palavras a encantar-me todo dia. Escrevi um post pensando nesta madrugada que teu texto inspira, para fazer um fechamento com este aqui, uma intertextualidade preciosa. Espero que gostes. Está no Palavras e Imagens Pós-Modernas. Beijos, meu poeta do devir-alegria.

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Tânia, querida: desculpe-me pelo susto: como dizem aqui, falo como se o outro já soubesse de onde estou partindo... Hospital-chope e vida... irei no palavras ver teu texto, sempre amo... Um abraço carinhoso, jorge