sábado, 23 de outubro de 2010

MESTRES DO CAMINHO: ANTONIN ARTAUD

O Teatro Político de Antonin Artaud
                                              ISMAEL SCHEFFER
É possível falar em um teatro político de Artaud? Teatro metafísico, teatro alquímico, teatro da crueldade, são definições que o próprio autor propõe, na tentativa de definir e fazer entender suas propostas. Mas, teatro político?
Artaud quer uma revolução, quer mudanças sociais radicais. O teatro para Artaud é um meio para que estas mudanças aconteçam. Erroneamente, suas propostas são muitas vezes entendidas desconectadas  de sua visão social e política. Ele, todavia, não tem em vista fins sociológicos imediatistas, nem propostas político-partidárias. Aliás, este foi um dos principais motivos de seu rompimento com os surrealistas[1] quando estes aderiram ao comunismo (ARANTES: 1988: 75).
Artaud “tem consciência dos problemas suscitados pela reificação dos homens e da nítida situação de exploração reproduzida, dia após dia pela máquina capitalista. Tem consciência dos problemas sociais-políticos e econômicos de seu tempo” (FELÍCIO, 1996: 115). Artaud não mergulha em sua insanidade em uma busca mística desconectado da realidade que o cerca. Analisando o capitalismo, reconhece que este não consiste apenas em um modo de produção material, “mas em um modo de produzir a vida” (ARANTES, 1988: 76). Por outro lado, se posiciona também contra o comunismo e o critica por que acredita que este se ocupa das mesmas questões que o capitalismo, apenas propondo a transferência do poder da burguesia para o proletariado, atendo-se à produção material, ao desenvolvimento técnico com fins de melhoria das condições materiais da vida, atingindo assim “apenas as aparências superficiais” .
A revolução artaudiana[2] quer explodir os fundamentos do mundo moderno, subverter pela raiz os hábitos de pensamento atuais e, em suas palavras, “descentrar o fundamento atual das coisas” (ARTAUD in ARANTES, 1988: 76 e 77). Constatando a decadência da sociedade ocidental, em suas idéias, costumes e valores, propõe uma “revolução inútil”, que não atinge o imediato, mas que trabalha no âmbito virtual, questionando e minando os valores reinantes. Vera Lúcia Felício destaca isto ao afirmar que:
“Se o teatro é o meio escolhido por Artaud, é por que ele crê ser o único meio que age diretamente sobre a consciência das pessoas, portanto, um instrumento ativo e enérgico, capaz de revolucionar a ordem social existente. (...) O Teatro da Crueldade só pode crer numa revolução que atinja destrutivamente a ordem e a hierarquia dos valores tradicionalmente aceitos como absolutos” (FELÍCIO, 1996: 113).
A subversão destes valores é fundamental para Artaud. Ele reconhece que a confusão e a ruptura fragmentam o indivíduo e a sociedade. Por isto acredita que a revolução precisa ocorrer “pela cultura, na cultura”.
No prefácio de O teatro e seu duplo, ele reflete sobre a cultura contrapondo duas diferentes formas de compreendê-la. Uma, dominante na sociedade ocidental, coloca a cultura como algo separado da vida, como um sistema de conhecimentos, informações, instrução. Esta visão de cultura traz consigo uma noção elitista e dualista – o culto e o inculto – a idéia da “aquisição” de cultura que remete a uma desconexão. “Como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida” (ARTAUD, 1993: 04).
Em oposição a esta “idolatria da cultura”, ele apresenta a idéia da “cultura em ação”, que se torna no homem como que um novo órgão, uma espécie de segundo espírito e que rege as ações mais sutis, o espírito presente nas coisas. Artaud acredita na existência de forças latentes capazes de se manifestarem pelo totemismo que o Ocidente não mais considera. Esta cultura é a autêntica, segundo ele, e as relaciona com os manas (que surgem pela identificação mágica). A cultura funde-se com a vida e a vida com a cultura, promovendo a integração do ser humano. Assim, a dicotomia corpo e espírito do ocidente, presente na primeira definição de cultura, não encontra espaço porque não distingue as forças da natureza, das divindades e do ímpeto humano que dá sentido à vida. “A verdadeira cultura pressupõe uma modificação integral, mágica, do ser no homem, numa união entre corpo e espírito, em que este último é cultivado no corpo que, por sua vez, trabalha o espírito” (FELÍCIO, 1996: 121).
A revolução de Artaud passa por uma transformação na maneira da sociedade compreender a vida, de dicotômica a fusional. O idealismo artaudiano pretende transformações nas estruturas mais profundas, na forma da sociedade viver suas relações, não como indivíduos isolados, mas como um ser integrado ao social. Neste sentido quer uma recuperação das raízes pré-modernas, quando a vida não podia ser compreendida separada da religião. Desta mesma forma, não há para Artaud separação da arte e da vida, pois estas estão envolvidas pela mesma força metafísica. A arte não se encontra como algo a se apreciar, mas como algo a ser vivido.
Ele afirma que “no ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos antes de mais nada, de um teatro que nos desperte: nervos e coração.” (ARTAUD, 1993: 81). Através do teatro, Artaud pretende abalar sensorial e espiritualmente o espectador, desenvolver sua sensibilidade, colocá-lo em um estado de percepção mais apurado para transformar a consciência. Os nervos e o coração não estão dissociados, mas são veículo um para o outro. “Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência” (ARTAUD, 1993: 83). Felício, em seus estudos sobre Artaud, destaca a existência destes dois aspectos no Teatro da Crueldade: um físico, exterior (gesto, imagens, sons), que é direcionado ao impacto pela sensibilidade do público e outro religioso ou filosófico, interior, constituído pelas idéias metafísicas.
Artaud aponta várias formas objetivas para que o teatro atinja os nervos do público, mas sublinha veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral  fixa, esta arruinará o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no impedimento do movimento da cultura, do espírito. É o rompimento da linguagem que toca a vida e impede a idolatria.
O espaço é uma exigência do teatro, não apenas por que reúne todas as linguagens, mas por ser um fator que age sobre a sensibilidade nervosa. Artaud não o compreende apenas fisicamente em suas dimensões, mas pretende utilizar seus “subterrâneos” . O espaço é que permite o encontro e o acordo entre os homens. É nele que a cultura, na forma compreendida por Artaud, ocorre, sendo um impulsionador dos deslocamentos e movimentos culturais. A linguagem espacial assume a função idêntica de transgredir o mundo já estabelecido – também por isso o espaço teatral assume uma composição diferente dos espaços teatrais convencionais. Ele abandonando a literatura se propõe a mergulhar na “cultura corpórea-gestual-musical” (FELÍCIO, 1996: 121), ou seja, na cena que é realmente a atividade e acontecimento teatral – manifestação da cultura. O teatro de Artaud quer fazer o espaço e fazê-lo falar, criando poesia no espaço através de imagens materiais, simbólicas.
Embora pareçam utópicas as pretensões de Artaud de transformar a sociedade, seus escritos tiveram grande influência no trabalho e experimentações de inúmeros grupos e encenadores, muitos com desejos semelhantes de revolução social, outros mais preocupados com experimentações estéticas e formais. Fato é, que não há como pensar o teatro de Artaud, sem levar em conta a cultura e a organização da sociedade e de seus valores. Negligenciar isto, é negligenciar as motivações de imersão no universo mítico pretendida pelo teórico, de compreender a função social do teatro. Contrário a muitos encenadores e reformadores do teatro no início do século XX, que tiverem interesses mais estéticos ou ambicionavam interferências políticas mais diretas, Artaud pretendia realizar sua revolução considerando sua época e o contexto no qual está imerso, propondo uma nova ordem, ou talvez seja melhor dizer, retomando uma antiga ordem mítica, ontológica.
No início do século XXI, nos defrontamos com valores sociais e econômicas bastante complexos, que possuem muitas relações com a época de Artaud, e igualmente nos deparamos com os pensamentos deste influente teórico do teatro, permanecendo ainda o desafio, irrealizável em sua totalidade, de um teatro indissociável da vida da sociedade. Gilbert Durand, pesquisador do Círculo de Eranos[3], afirma que a apreensão da realidade é marcada pela simbolização da vivência, e que os aspectos simbólicos e míticos do homem, não são de forma alguma inferiores ao pensamento racionalizado e à linguagem, justamente por que estão na origem destas, sendo anterior a elas (SCHEFFLER, 2002: 04). Artaud, pensando o teatro e a sociedade, caminhava solitário por esta forma de compreender a arte e a vida, e pode ser melhor compreendido quando nos deparamos com outros estudiosos que partilhavam um mesmo olhar, como é o caso de Gilbert Durand e do Círculo de Eranos. Estes estudos possuem diversos pontos em comum com as propostas artaudianas, fornecendo uma interessante epistemologia para o estudo de Artaud.
 

BIBLIOGRAFIA:
ARANTES, Urias Corrêa. Artaud: teatro e cultura. Campinas, Editora da UNICAMP: 1988.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo, Martins Fontes: 1993.
FELÍCIO, Vera Lúcia. A procura da lucidez em Artaud. São Paulo, Perspectiva: 1996.
SCHEFFLER, Ismael. A hermenêutica simbólica como possibilidade epistemológica para o estudo do espaço teatral. Periscope Magazine, nº 4, ano 2, dezembro de 2002, http://www.casthalia.com.br/casthaliamagazine/ano4/ismael_scheffler/scheffler.htm

[1] “o surrealismo traiu sua vocação primeira, que era a de agente provocador de mudanças essenciais através da exploração profunda do excluído que, trazido à luz, recusa à realidade aparente. [...] a revolta surrealista, desde o início, tem a ver com o inconsciente, com sua potencialidade subversiva, e por isso mesmo foi levada a sempre recusar qualquer forma de reivindicação explícita e clara. Trata-se de explodir tudo, mas como que pelo avesso, pelo seu lado oculto e secreto.” (ARANTES, 1988: 77 e 79)
[2] É importante que se destaque que esta revolução está presente somente nos escritos de Artaud. Ela não foi mais que proclamada por ele, ou seja, sua prática e seus escritos apresentam uma contradição, na medida em que sua prática artística estava vinculada e dependente do teatro comercial.
[3] Enquanto Artaud desenvolvia seus escritos em meados da década de 30, um grupo de pesquisadores se articulava em Ascona, Suíça, assumindo uma composição interdisciplinar de caráter filosófico-científico: o Círculo de Eranos.
Este grupo foi composto por várias gerações de estudiosos de diversas áreas: antropólogos, psicólogos, fenomenólogos, mitólogos, orientalistas, entre outros, provindos de diversos países, especialmente europeus. Realizando conferências anuais, reuniu-se de 1933 a 1988.
Eranos buscava uma aproximação “cultural” do oriente, considerando-o como “um outro complementar”. Compreendendo que a razão não possibilita uma compreensão integral do ser humano, Eranos se propõe a compensar a unilateralidade da razão, confrontando-a com a questão simbólica, na tentativa de confluir o mito e a razão, para chegar a uma visão intermediária e complementar. Colocando-se em confronto com o funcionalismo instrumentalista (o corpo) e contra o estruturalismo formalista (o espírito/ a razão), propõe o simbólico (a alma) situado entre estes.
A questão do sentido ocupa lugar central em Eranos: o sentido da vida e da existência, a morte, a pergunta pelo divino, a razão em suas capacidades e limites. Para os pesquisadores eranistas, o significado simbólico surge somente a partir da experiência vivida, na relação direta, sentida, na epifania, na revelação. 


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