segunda-feira, 31 de maio de 2010

MESTRES DO CAMINHO: UMA ENTREVISTA COM BAREMBLITT



    Entrevista: Gregório Baremblitt
    Ecletismo, sim, banalidade, não!
    Trabalhando na linha do que denomina “ecletismo superior”, ele defende a densidade teórica como base para o conhecimento de novas técnicas e explica por que considera que o psicólogo tem que ser constantemente curioso, pesquisador, inventor e nômade
    O argentino Gregório Baremblitt tornou-se conhecido por sua participação no Movimento Institucionalista, orientado para apoiar os processos auto-analíticos e autogestivos dos coletivos sociais. Sua trajetória, porém, teve início em Buenos Aires, onde formou-se em 1961 em psiquiatria. Após o curso regular e a especialização, formou-se como docente autorizado, título que equivale, no Brasil, ao doutoramento. Freqüentou, também, a Escola de Psicologia Social de Pichon-Riviére. É, ainda, pós-graduado em sociologia. Freqüentou durante quatro anos a formação na Associação Psicanalítica da Argentina, tendo saído à época da criação do Grupo Plataforma, o primeiro, no mundo, a romper com uma Associação Psicanalítica filiada à Internacional por motivos políticos.
    Durante o período de atividades do Grupo Plataforma, foi diretor da Área de Docência e Pesquisa. Nessa mesma época participou, também como membro do Grupo Plataforma, da Coordenadoria de Trabalhadores de Saúde Mental, que reunia os sindicatos dos Psiquiatras, Assistentes Sociais e Psicólogos.
    Entre todas essas atividades, era ainda militante político e teve que abandonar seu país quando o golpe militar deu início ao período da ditadura argentina. Chegou ao Brasil em 1978, por não ter sido aceito em Caracas, na Venezuela, por motivos políticos.
    No Rio fundou, com um grupo de outros profissionais, o Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (Ibrapsi), que desenvolveu experiências mesclando os princípios da prática privada pura com os da prática comunitária, institucional. Durante os seis anos de atividades do Ibrapsi, participou da organização de seis congressos internacionais, da publicação de cinco livros e da formação das cinco turmas de profissionais psi que saíram da instituição.
    Em 1982 um grupo de profissionais fundou em Uberaba, a Fundação Gregório Baremblitt, uma organização de saúde mental. Baremblitt, então, fundou posteriormente em Belo Horizonte, o Instituto Félix Guattari, que funciona integrado à Fundação de Uberaba. Foi também professor da Santa Casa de São Paulo, da PUC do Rio de Janeiro, da Uerj, da Universidade Federal, da PUC de Belo Horizonte e da Universidade La Plata, em Buenos Aires. Publicou 17 livros sobre sua experiência com a análise institucional, da qual é um dos maiores expoentes no Brasil. Em sua clínica, em Belo Horizonte, ele recebeu o Jornal do CRP para esta entrevista.
    CRP - O senhor poderia fazer um paralelo entre a situação que as práticas psi enfrentaram nas ditaduras na Argentina e no Brasil?
    Baremblitt - Cheguei ao Brasil em 1978, um período interessante. Estava no auge a luta de diversos grupos, como o que lutava pela anistia. No Ibrapsi, chegamos a trabalhar com o alto comissariado das Nações Unidas, em colaboração com a anistia.
    A Argentina é uma encruzilhada cultural, sempre teve uma enorme influência européia, mas também teve influência americana. E tinha a primeira Associação Psicanalítica da América Latina. De outro lado, tinha uma forte vocação marxista. Mais tarde surgiram outras tendências de esquerda, como a peronista, os montoneros, o trotskismo, a esquerda maoísta etc.
    É um país, portanto, de longa tradição psicanalítica, onde surgiram muitos profissionais nessa área. Mas o começo mesmo foi com Pichon-Riviére. Depois Bleger, Mari Langer e, a partir daí, já começam umas duas ou três gerações da mesma linha, mais ou menos freudo-marxistas. Reich foi uma grande influência para nós, assim como Althusser. Houve também uma geração muito ativa, em que estavam Pavlovski, Miguel Matrar, do México, Luiz Horstem, Rafael Paz, Kuesselmamn. Na Argentina sempre houve muito interesse por grupos e pela abordagem psicanalítica do grupo, ou psicodramática do grupo. Da mesma forma, havia um setor, que também era grupalista, mas não tinha compromisso político.
    Já no Brasil, o matiz político desencadeou-se a partir de algumas figuras, de psicanalistas combativos e comprometidos com partidos políticos. Desde a época em que cheguei, eu sabia que há muito tempo havia um forte movimento grupalista, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, em São Paulo etc. Mas me parece que tinha menos dimensão, menos matiz político.
    A expulsão de Hélio Pelegrino e Eduardo Mascarenhas da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro foi devido à militância que eles já tinham anteriormente. Esse foi um marco importante aqui, fundamentalmente em torno do conflito de Amilcar Lobo e Leão Cabernite. Houve muitas reviravoltas em torno desses casos. Eles foram expulsos, depois aceitos novamente.
    CRP - O episódio Amilcar Lobo acirrou as discussões sobre a orientação política da prática psi. Há uma tradição da psicologia como instrumento de seleção e exclusão. Mas existe um movimento, político, que tenta colocar a psicologia como instrumento de promoção da vida, da não exclusão. Surgem movimentos importantes na saúde mental, como o da Luta Antimanicomial. Como é que o senhor vê a evolução, no Brasil, dessa questão?
    Baremblitt - Gostaria de poder ser preciso no desenvolvimento dessa etapa da psicologia politizada antes de eu chegar ao Brasil, mas não sou capaz de fazê-lo. Sei que houve muitas tentativas. Houve gente da psicologia ligada às ligas agrárias etc., houve manifestações de psicologia política no campo cultural, na frente escolar, universitária etc. Quando cheguei aqui havia pessoas com longa militância nesse sentido. Algumas delas muito duras, extremas, outras mais suaves, mais democráticas, mas com inquietação política.
    No momento da minha chegada, há uma questão delicada frente à qual eu me sinto um pouco ambivalente. Acredito que o Ibrapsi foi um ponto forte dessa repolitização. Mas, como fui um dos protagonistas disso, tenho pruridos para falar a respeito. Mas, modéstia à parte, o Ibrapsi organizou em 1978 um congresso em que conseguiu trazer aqui as 14 figuras mais importantes do mundo, representantes da politização no campo da saúde mental. Vieram, entre outros, Guattari, Basaglia, Casttel, Gofmam, Tomas Szass e muitos outros. Esse congresso foi um momento muito importante. Embora o Ibrapsi não possa se atribuir tudo o que aconteceu depois, o fato é que a partir desse momento todos esses profissionais voltaram ao Brasil reiteradamente.
    Então, eu diria que aí se iniciou um movimento de características um pouco diferentes das que já existiam. Foi um momento politizado, mas com inspirações múltiplas e diversas. Já não era apenas democrático, liberal ou freudo-marxista, embora tivesse todo um espectro dessas posições. O institucionalismo propriamente dito tinha entrado no Brasil por meio de Lapassade, nos anos 70.
    A luta antimanicomial, me parece, começou com a vinda de Basaglia ao Brasil. Eu acho que esse foi um momento muito transcendental. E a partir daí começou uma série de movimentos. Diferentes vertentes do institucionalismo, todos eles grupalistas e organizacionalistas e institucionalistas e movimentistas. Começou a análise institucional propriamente dita, porque em 1982 fizemos outro congresso em que convidamos os que haviam faltado ao primeiro, que eram Lourau, Mendell, Pavlovski etc. Então, com esses dois congressos completamos o panorama.
    Nessa época também começou a se fortalecer o grupo Tortura Nunca Mais, o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, a partir de São Paulo. E começaram a surgir figuras pró-prias aqui, com orientação combativa. Surgiu uma série de sociedades de grupo; por exemplo, as Clínicas Sociais de Catarina Kempler trabalhavam em grupo muito solidamente. Surgiram as sociedades de grupos do Rio de Janeiro.
    CRP - Como o senhor avalia o desenvolvimento da luta antimanicomial ao longo do tempo e a etapa em que o movimento se encontra hoje?
    Baremblitt - O que nós chamaríamos de Movimento Antimanicomial tem as seguintes inspirações: a psiquiatria democrática italiana, a psiquiatria comunitária inglesa, a antipsiquiatria, a psiquiatria libertária americana e, se podemos dizer, o institucionalismo, num sentido amplo, particularmente Foucault, Deleuze e Guattari.
    Esse negócio vai fazer 50 anos. Na minha opinião a proposta já deveria estar plenamente realizada em todos os países. Acontece que houve refluxos, que têm a ver com os interesses econômicos e políticos das corporações que participam nesse campo, mas também com o contexto macropolítico. Houve refluxo nos EUA. O mesmo aconteceu na Itália. A psiquiatria comunitária inglesa é fraca. A francesa também é fraca. Na Espanha está meio tecnologizada. Tem bons princípios, mas é mais tradicional. Na Suíça é como um templo de Brauer. E na Argentina houve uma forte regressão. É importante destacar também que apareceram outras tendências que têm seu lado progressista, mas que são bastante reacionárias em outro sentido.
    E depois apareceu o que eu chamo de terceira ou quarta onda em psicologia, que é essa quantidade de propostas. Desde que surgiu a psicologia experimental, para separar-se da filosofia, a filha do século passado, veio aquela grande revolução, como disse Politzer, de quatro tendências: o comportamentalismo, a reflexologia, a teoria da gestalt e a psicanálise. A partir disso começou um florescimento e proliferação. Até que chegamos a essa etapa em que o poliverso psi tem 500 extremos e isso vai se multiplicando ao infinito.
    O que acontece nessa evolução? Acredito que a tendência, mesmo que não exclusiva, é uma despolitização e o que Casttel chama de transformação da psicologia, ou da psicoterapia, ou da psicopatologia, em sistemas de potencial humano, de cultivo da convivencialidade. Não se nega que isso tem muitos aspectos interessantes. Sobretudo técnicos. Porque eu acho que teoricamente são cada vez mais fracos. Mas tecnicamente têm sido muito inventivos. Mas são despolitizados ou são politizados no sentido de uma democracia e de um humanismo vago. Sem falar em algumas práticas chamadas alternativas, que são perigosíssimas. Porque são mágicas, místicas, bastante alienadas. A enorme maioria dessas tendências da terceira onda são grupalistas, mas num sentido inespecífico.
    CRP - O que motivou a ruptura do Grupo Plataforma com a Associação de Psicanálise da Argentina?
    Baremblitt - A ruptura foi o efeito da dissidência em muitos níveis diferentes. É importante destacar que esse foi o primeiro grupo, no mundo, que se separou de uma Associação Psicanalítica oficial, filiada à Internacional, devido a motivos políticos. Não estou me referindo a questões de política institucional, e sim de macropolítica. Era uma decisão muito transcendental, porque a Associação Psicanalítica da Argentina era a segunda do mundo. Quem entrava lá não saía nunca mais. Naquela época iniciava-se na Argentina a repressão pesada. A atitude do Plataforma perante essa repressão foi completamente diferente da atitude da instituição psicanalítica.
    Mas também havia uma diferença teórica. O Grupo Plataforma era predominantemente freudo-marxista e a Associação Psicanalítica era freudo-kleiniana. Havia também diferenças técnicas e quanto à vocação da aplicação da psicanálise a âmbitos sociais. A Associação Psicanalítica não era favorável a isso. Havia, ainda, diferenças quanto à política institucional de forma mais restrita, forma da pedagogia, custos da formação e maneira de seleção, maneira de promoção e conteúdos da formação, enfim havia uma grande discordância.
    O Grupo Plataforma funcionou muito tempo dentro da Associação Psicanalítica até que, em 1971, porque se agudizava um pouco o panorama político, saímos de lá. Depois disso, continuamos nossas atividades por mais um ano, quando o grupo se dissolveu, entre outras coisas, porque boa parte dos participantes já estava se exilando e outra parte foi morta.
    CRP - O senhor discorre, em vários dos seus trabalhos, sobre os grupos como estratégia de intervenção. Hoje, há várias tentativas de colocar os grupos como recurso técnico voltado para a maximização do atendimento, já que permitem atender a um maior número de pessoas de cada vez. Como o senhor avalia essa tendência?
    Baremblitt - Vamos avaliar um aspecto, porque todo esse panorama é muito complicado. De um lado, há uma ortodoxia psicanalítica de diversas origens, como o lacanismo, o kleinianismo etc., que são fanaticamente individualistas, contrários ao grupo e que afirmam que o grupo é um lugar de produzir enfermos, uma montagem do imaginário.
    E há um enorme número de tendências que são grupalistas, mas que fazem um uso muito discutível do grupo. Alguns fazem um uso irreprovável, com uma boa teorização. Mas outras fazem uso de forma pragmática e inspirada mais pelo poder multiplicador econômico do mecanismo, com fins mercadológicos. Mas não sabem nada de grupo e o fazem mal. E aí no meio há algumas organizações de orientação grupalista teoricamente primária, mas que, socialmente, são muito respeitáveis, como por exemplo os Alcoólicos Anônimos. É complicado. O grupo, por si, como dispositivo técnico não define nada. A não ser por oposição a esses que deliram com o individualismo.
    CRP - Mas, para o senhor, como deveria ser o grupo?
    Baremblitt - A minha trajetória pes- soal vai, desde o início, de uma concepção psicanalítica de grupo e passa por uma concepção psicossociológica do grupo, que fui mudando à medida que ia me formando. Primeiro eu era pichoniano, depois blegeriano, depois era meio althusseriano e acabei plenamente no institucionalismo, particularmente em Deleuze e Guattari.
    Entendo o grupo como um dispositivo produtivo-desejante e revolucionário dentro da linha de Deleuze e Guattari. Essa é a minha atual atitude. E cada vez mais eu penso o grupo como um dos recursos de intervenção institucional não desvinculada dos espaços sociais onde atuam. Sou cada vez menos a favor do grupo de consultório, embora não tenha nada contra. Mas me parece melhor trabalhá-los em seu estado natural.
    CRP - Há pouco tempo houve o episódio de um índio pataxó queimado vivo enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília. Quando situações como essa acontecem a imprensa sempre busca explicações na psicologia. Como o senhor vê a expansão das práticas psi como instrumento de intervenção na realidade brasileira?
    Baremblitt - Eu tentaria dar um enfoque que não fosse habitual. Há pouco tempo uma menina da classe média argentina foi raptada. A imprensa armou um escândalo, o país inteiro mobilizou-se devido a esse rapto. Não podemos rejeitar essa reação popular, porque ela é eticamente correta. Mas o que significa uma reação dessas em um país em que se calcula que houve 5.000 crianças raptadas durante o regime militar? E durante muito tempo, na repressão, eram minorias que protestavam.
    Realmente a memória de países como a Argentina é paupérrima. O que significa o escândalo pelo rapto de uma menina de classe média, e como é que esse país não está parado, tratando de recapitular e reparar os danos anteriormente causados? Eu invoco isso, com uma estrutura, com uma lógica que se pode aplicar para o caso do índio.
    O Brasil é um país que eu amo, senão não estaria aqui. Mas é campeão mundial de muitas coisas terríveis. É quase o campeão mundial de distribuição injusta de renda, de distribuição injusta da terra, de acidentes de trânsito. Portanto, armar um escândalo em torno dessa expressão bárbara, de meninos da pequena burguesia de Brasília, só se justifica como um disparador para um amplo debate e reformulação da atuação interna. Agora, se isso vai ser utilizado para vender jornais.... é absurdo.
    CRP - Ou seja, o senhor acredita que, embora a condenação do grupo seja necessária, o caso não pode se encerrar aí.
    Baremblitt - Há o problema das interpretações psicológicas, cujo paradigma talvez seja de alguns psicanalistas. Começam a falar em pulsão de vida, pulsão de morte e não sei o que e com isso não chegamos a esclarecimento nenhum. Porque dizem que todo mundo é assim. E que em determinadas circunstâncias todo mundo pode cair nisso. Isso não aclara nada no que diz respeito a quais são as condições históricas, políticas, sociais e econômicas que são capazes de deflagrar fatos assim. Fatos que têm um peso terrível, porque um ser humano é um ser humano. Não interessa particularmente se é índio ou não.
    Mas, ao mesmo tempo, se isso é anedotizado e transformado em especulações acerca de uma suposta natureza humana, eterna, universal e invariável, não serve para nada. A não ser que seja utilizado como um analisador que permite compreender a situação complexa que é transdisciplinar, nacional e mundial. Que é a do capitalismo mundial integrado. Eu vou participar agora do Fórum Paralelo das Américas. Vamos tratar de entender o assassinato desse índio dentro de uma situação das Américas em que os índios são um dos tantos explorados, dominados, eliminados, mistificados. Mas 50% a 60% da população está na mesma situação. Então, ocupar-se disso? Claro, mas para quê?
    CRP - Na realidade, a partir do momento em que adentramos o modelo neoliberal, quanto mais se prioriza o mercado, a vida humana passa a ser banal. Mas aí é que fica a questão sobre o que a psicologia tem a dizer sobre isso.
    Baremblitt - A primeira coisa que a psicologia tem que fazer para que possa ser útil é falar da necessidade de uma “fala em coro” com outros estudiosos. Sozinha ela não pode dizer nada. E o que diz sozinha é ruim, porque é utilizado para hipertrofiar suas possibilidades e ignorar as outras e propor soluções assistenciais ou terapêuticas. Simplificar.
    CRP - O senhor está levantando uma questão que vem sendo muito discutida hoje, que é a da multidisciplinariedade, interdisciplinariedade ou transdisciplinariedade. Muitos dizem que com isso a psicologia vem perdendo seu objeto de estudo. O que o senhor pensa a respeito?
    Baremblitt - Há toda uma tendência mundial que pode ser interpretada de diversas maneiras e que fala de um novo paradigma. Cada um recebe a sua maneira. O holismo recebe a sua maneira, a esquizoanálise recebe a sua maneira e assim por diante. Mas a questão é que os objetos circunscritos, específicos e tradicionais, não podem mais ser objetos de conhecimento. A questão é que a relação sujeito-objeto está questionada e relativizada. Isso é um fato histórico irreversível. Então a psicologia ou a psicanálise estão perdendo seu objeto? Que elaborem o luto. Porque era um objeto imaginário. Foi um momento de uma metodologia analítica especificista que deu o que tinha para dar.
    Mas agora tem que ficar claro que a realidade vem toda junta e não por objetos e que essa leitura epistemológica de que cada disciplina tem seu objeto é indissoluvelmente separada do profissionalismo, no sentido de corporativismo. Cada um tem seu negócio, cada um tem seu terreno. Isso não funciona mais. Até porque todas as conquistas tecnológicas do nosso século, desde as viagens interplanetárias até a informática, a telemática, a robótica, tudo isso é feito em conjunto. Nenhum especialista consegue fazer isso por conta própria.
    CRP - Em alguns de seus textos teóricos, o senhor fala na construção de seu referencial e defende o ecletismo. Como ser eclético sem ser superficial, frágil teoricamente ou simplista?
    Baremblitt - Deleuze, em seu livro sobre Hume, “Empirismo e Subjetividade”, diz que o que esse autor fazia não era empirismo. Era empirismo superior. Minha proposta é uma paráfrase de Deleuze. O que proponho é um ecletismo superior. Se estudarmos bem a história da escola eclética em filosofia vemos que sua orientação era sumamente rigorosa. Porque ela se obrigava a conhecer uma grande quantidade de correntes filosóficas e tendências. Se autorizava a pegar de cada uma delas o que considerava como melhor, depois de analisar cuidadosamente o sistema do qual esse elemento fazia parte, e se permitia incorporá-lo a uma teoria que não era uma colcha de retalhos. Mas era uma nova invenção feita a partir desses elementos altamente selecionados, tomados de cada orientação. Era uma corrente dificílima de assumir, porque significava um compromisso teórico e uma abertura incondicional, mas crítica.
    Esse ecletismo superior é o que postulo, tanto para as teorias quanto para os procedimentos, as técnicas. Isso não quer dizer que eu não tenha uma na qual eu me sinta mais instalado. Mas eu me proponho a continuar estudando até o último dia da minha vida todas as teorias para ver o que posso tirar de cada uma delas com esse critério.
    Existem 500 psicologias, as invenções técnicas são interessantíssimas, geralmente com bases teóricas fraquíssimas. Mas o paradoxo é que os movimentos ou correntes com bases teóricas fraquíssimas têm uma inventividade técnica assombrosa. Então, por que não tomar emprestados os elementos técnicos, lidos a partir dos referenciais de uma teoria bem consolidada, para ter uma parafernália, um arsenal que permita atuar em qualquer situação? Não se trata de propor a idéia do psicólogo pé descalço. Embora não seja má idéia.
    Na minha opinião, o psicólogo tem que ser polivalente e servir para qualquer momento, qualquer situação, em grupo, em casal, em multidão, em organização, com uma plataforma teórica que tenha valores indiscutíveis contra a exploração, contra a dominação, contra a mistificação.
    CRP - E que rompa com a especialização?
    Baremblitt - Que rompa com a especificidade e com a profissionalidade sobretudo dentro de moldes exclusivistas. Se dividíssemos o número de psis em termos numéricos, o resultado seria não sei quantas divisões de exército. Sempre vivi sonhando e atuando no sentido de transformar o universo psi em um campo de militância, porque seu potencial transformador é imenso. Só que, como vocês bem sabem, as coisas estão sendo ensinadas de tal maneira que, em geral, têm um destino reprodutivo ou antiprodutivo.
    Os jovens psis não encontram trabalho nenhum pelas condições injustas de trabalho, mas também porque não se lhes ensina a produzir seu campo de trabalho. A inventar seu trabalho onde não há demanda habitual de seu serviço. Resultado: ou não trabalham, como acontece com uma enorme quantidade de profissionais, ou abrem um consultório e não trabalham também, ou trabalham pouco, ou fazem um trabalho com um vínculo empregatício que lhes força a obedecer incondicionalmente as condições patronais. Não se agrupam sindicalmente, como deviam, para defender seus direitos. E, no pior dos casos, se alienam em doutrinas ou práticas aristocratizantes, individualistas, reacionárias. Inclusive vemos, não com a freqüência que deveria, alguns fazendo uma política tipo Robin Hood, em que têm o consultório e trabalham em outras coisas em outros lados.
    Muito respeitável, têm que viver de algo. Há psicólogos ou psiquiatras que têm consultórios abertos, mas trabalham uma hora durante dia. Então, esse é um potencial imenso para ser explorado socialmente. Mas para isso tem que mudar o critério de formação, o critério de agrupação, o critério de prestação de serviço.
    Isso foi o que tentamos fazer no Centro de Docência e Investigação do trabalhador de saúde mental, no Grupo Plataforma, no Ibrapsi, foi o que tentamos fazer aqui no Instituto e é o que muitos outros tentam fazer: formar um trabalhador de saúde mental capaz de atuar de forma transdisciplinar e capaz de fazer uma leitura complexa, política, social, histórica e psíquica de sua prática. Isso significa uma mudança radical do sistema de formação que está em vigência e que está feito para formar especialistas e profissionais no sentido restrito da palavra profissional. Isso, inclusive, vai contra a tendência histórica que é o desaparecimento do profissional liberal em todo o mundo. E essa transformação passa pela sala de aula.
    Formar um agente para fazer o que em que panorama histórico? Para aceitá-lo, para adaptá-lo ou para revolucioná-lo, transformá-lo, criticá-lo? E isso precisa de um movimento ativo. Ninguém produz efeito só por exercitar uma prática psicológica. Não acredito que porque a gente faz consciente e inconsciente já cumpre um papel histórico. Tem que ver como define consciente, como define inconsciente e para quê.
    CRP - O senhor se referiu à multiplicidade de técnicas e à fragilidade teórica de algumas delas. Os psicólogos estão numa situação paradoxal. De um lado há uma ampliação dos campos e setores de ação do psicólogo e, de outro, há uma condição de trabalho e um nível de remuneração massacrantes. Nessa conjuntura, essas técnicas exercem uma atração muito grande. Um bom exemplo, além das práticas que seguem preceitos místicos ou mágicos, é a neurolingüística, que acena com a possibilidade de resultados rápidos, o que é muito atraente nesse contexto. O senhor poderia comentar essa realidade?
    Baremblitt - Em um dos livros básicos da esquizoanálise, “O Anti-Édipo”, há um relato de um cerimonial terapêutico, de uma tribo primitiva, os nhembu. Esse dispositivo trata de um sujeito que tinha um problema que nós chamaríamos de neurótico, ou psicótico, como um dente incisivo de uma avó que o estava prejudicando. Como é o cerimonial montado para “curá-lo”? Toda a comunidade se reúne, dialoga, participa, opina e critica, dirigida pelo cacique e pelo bruxo. Tem música, tem festa, tem drogas (da maneira ritual que é consumida por eles), tem competições esportivas. E o afetado acaba curado.
    De certo ponto de vista, veríamos isso como uma regressão em relação à racionalidade científica da modernidade. De outro ponto de vista é interessante ver que esse dispositivo primitivo transforma esse enfermo claramente num emergente comunitário e que tem uma dimensão biológica de seu problema, tem uma dimensão artística, tem uma dimensão cultural, tem uma dimensão mística, mágica. Mas se trata de tudo ao mesmo tempo, com a lógica que eles têm.
    Então, eu acho que essa proliferação atual de propostas não pode ser desqualificada de entrada. Temos que ver o que se pode tomar de cada uma delas para construir um dispositivo que recupere esse senso de totalidade provisória que tinha a cerimônia primitiva, de multi e transdeterminação e de polimorfismo técnico. Esse é o lado positivo dessa proliferação que fundamenta minha proposta de conhecer cada proposta.
    O problema é que cada uma dessas tendências, que tem sua leitura teórica em geral, específica e sua parafernália técnica, interpreta o mundo inteiro a partir de seu prisma. E exclui as outras. Então comete grossos erros, entre eles o reducionismo.
    Quanto à neurolingüística é, basicamente, uma concepção biologista do funcionamento humano. A partir dessa base, eles fazem alguns acréscimos filosóficos, semióticos e dizem que resolve tudo. Não deve ser assim. Mas também não deve carecer de valores e temos que conhecê-los. Quando alguém diz que a neurolingüística, em seus cerimoniais coletivos, é capaz de curar uma fobia severa em cinco minutos, eu só posso ter a esse respeito um benévolo ceticismo. Ceticismo sim, porque eu sei como se constitui uma fobia e o que custa curá-la. Mas ao mesmo tempo benévolo porque quero ver como é que faz. Não basta dizer, como diz Lévi Strauss, que isso é eficácia simbólica, uma neurose substitutiva. Eu quero ver o que eles fazem, o que pensam. E algo parecido acontece, por exemplo, com a linha de Maturana. É biologista, reducionista e extrapola a linha filosófica e ética etc., questões cujo ponto de partida é biológico. Eu teria mil críticas a fazer, mas tem que entender bem para separar o joio do trigo.
    Ou seja, temos que ser constantemente estudiosos, curiosos, pesquisadores, inventores e nômades. Porque, quando sentamos na cadeira e ficamos parados, já não avançamos mais.
    CRP - A pesquisa nesse campo exige densidade teórica. Mas o mundo vem sofrendo um empobrecimento teórico muito grande e, muitas vezes, quando se vai buscar a densidade por trás dessas práticas não se acha. O próprio Conselho abriu essa discussão, mas não conseguiu interlocutores.
    Baremblitt - Estou de acordo com essa crítica porque, quem quer legalidade e legitimação, autorização, tem que colaborar na tarefa de tornar esse saber inteligível, criticável. Caso contrário, temos que suspeitar. Também há casos em que a orientação é no sentido de que se trabalha no campo do indizível, do inefável e que não dá para trocar a respeito. Não importa, pelo menos que se preste para dialogar.
    CRP - A posição do CRP-06 em relação a essa questão é que qualquer cidadão pode praticar a técnica que lhe convém, desde que não parta do princípio que toda prática voltada para ajudar o ser humano é psicológica. Mas a questão é por que tais práticas, hoje, precisam se justificar pela via da ciência?
    Baremblitt - Esse é o grave problema do aspecto ético-jurídico e profissional. É muito delicado esse assunto. De um lado, não se pode abrir a prática autorizada e legalizada para todo mundo que acha que tem algo para fazer. Mas, por outro lado, se observarmos a evolução desse campo, tudo o que em algum momento foi alternativo, marginal, acabou sendo oficializado. Então a questão é de bom senso. É de criar um espaço onde isso possa ser socializado, trocado. Porque eu acho que uma das coisas que a ciência e a modernidade trouxeram e da qual não podemos prescindir é a socialização do conhecimento.
    CRP - Como o senhor pensa na atuação dos conselhos profissionais?
Baremblitt - Considero que são absolutamente necessários e que cumprem uma função ética, científica e profissional fundamental. Por outro lado, tenho uma convicção extraída de muitas idéias, das quais mencionarei apenas uma, que é a de Reich. Ele dizia que a única greve que se justifica é a geral. Eu acho que o mesmo critério de ecletismo superior que proponho aplicar às teorias e às técnicas tem que ser aplicado aos organismos de classe, profissionais etc. Eles têm que trabalhar conjuntamente e com um objetivo muito amplo, relacionado aos problemas essenciais que vive a sociedade em que atuam. Nenhum critério de especificidade e de profissionalidade justifica a alienação dos problemas da cidadania, dos problemas da vida humana. A atuação tem que ser sempre por grandes alianças. 

3 comentários:

ZHE disse...

Jorge, Baremblitt é ciência viva em ação, essa entrevista retrata a grandeza de sua alma, que por meio vivências e lutas empreendidas, busca e acredita num mundo mais solidário. Abraço do amigo José Caui

José Caui disse...

Jorge, Baremblitt é ciência viva ou melhor, está sempre à frente das ciências. Ele sempre dá notícia das suas lutas, das vivências que empreendeu, desejante por mais liberdade, solidadriedade. Abraço do amigo José Caui

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Baremblitt - mestre e guerreiro tem sido fonte de grandes lições.
E mais, fonte e ponte das grandes generosidades.
Um sábio...
Um farol...
abraços jorge