sábado, 6 de agosto de 2011

BONS ENCONTROS: D'AMBROSIO ENTREVISTA PAULO FREIRE

PAULO FREIRE, ETERNO MESTRE DA LIBERTAÇÃO

U - Para levar adiante essa nova postura pedagógica é necessário mudar o professor. A maneira como o professor tem sido formado tem sido fundamental, e eu sei que um dos seus projetos atuais é escrever um livro sobre formação de professores. Daria para falar um pouco sobre isso, de uma forma mais dirigida à nossa preocupação, como educadores matemáticos? Como a formação de professores deve ser revitalizada nesse seu pensamento?

P - Eu estou realmente escrevendo um livro agora, que eu espero não seja nem um caderno nem um compêndio, um livro à minha maneira. O título provisório do livro vai ser formação docente e saberes necessários fundamentais à prática educativa crítica. A minha preocupação ao estar escrevendo esse livro é mostrar, às vezes até mais do que saberes, mostrar certas sabedorias indispensáveis a um professor, ou à formação do educador. Por exemplo, talvez o primeiro saber que deve virar uma sabedoria e que exatamente a gente incorpora é o seguinte: a prática educativa se funda não apenas na inconclusão ontológica do ser humano, mas na consciência da inconclusão. É em cima desses dois pés, de um lado a minha inconclusão, do outro a minha consciência da inconclusão, é aí que se funda a educação. A educabilidade humana não tem outra explicação senão nesta assunção de minha inconclusão consciente. Como também é ai que se fundamenta a minha esperança. Você imagine que incongruência seria que ser inconclusos como somos e conscientes da inconclusão, não nos lançássemos num permanente movimento de procura, de busca. O ser que não procura é aquele que sendo inconcluso não se sabe inconcluso. Exemplo: a jaboticabeira que eu tenho no quintal da casa é inconclusa também, porque o fenômeno da inconclusão é um fenômeno vital, não é exclusivo do ser humano. Mas o nível de inconclusão da jaboticabeira não tem nada a ver com meu nível de inconclusão. Ela é inconclusa, como é inconcluso meu pastor alemão no quintal, mas eles não se sabem inconclusos. No caso da gente, a gente assumiu a inconclusão e ao assumir a inconclusão, a gente é levada à busca. Seria um absurdo buscar sem esperança. Eu posso até ao buscar não encontrar, mas a minha esperança faz parte do processo de buscar. Não há busca desesperançada. É um contra-senso. Esse saber ... nem sempre os educadores foram um dia desafiados para saber-se interminados. Eu estou escrevendo sobre isso. Um outro saber, que eu acho que é uma sabedoria já, sem a qual não dá para ir para uma escola, é o saber de que mudar é difícil mas é possível. Como é, Ubiratan, que tu poderias andarilhar pelo mundo como tu andas, na África, na Europa, nos Estados Unidos, discutindo o que é a matemática e discutindo como propor a matemática, se tu não estivesses convencido que um dia pode mudar. É o impulso. Esse saber precisa ser discutido, não imposto, mas tem que ser posto em cima da mesa, para que o jovem que está se formando para ser professor amanhã, repouse nesta verdade: eu me movo como professor porque apesar de saber quão difícil é mudar, eu sei que é possível mudar. Pode ser até que o agente da mudança mais radical não seja nem sequer minha geração, mas sem a minha geração a outra não vai mudar.

U - Nós trabalhamos para um outro futuro, no qual nós acreditamos.

P - Exato. Um outro saber que eu preciso saber é que ensinar não é transferir conhecimento, transferir conteúdo. É lutar para com os alunos, criar as condições para que o conhecimento seja construído, seja reconstruído. Isso para mim é que é ensinar. Enquanto eu não estiver convencido disso, enquanto eu estiver pelo contrário convencido que ensinar é chegar às nove horas da manhã e despejar um discurso transferidor de objetos, e que são apenas perfis de objetos, que são os conteúdos, então eu não sei o que é ensinar, eu não sei o que é aprender. É preciso que eu, como professor, saiba que do ponto de vista histórico, o homem e a mulher primeiro aprenderam, para depois ensinar. O aprender precedeu sempre o ensinar. O que é que está acontecendo na sistemática da escola? O ensinar virou o mais importante, e o aprender foi burocratizado com a burocratização do ensinar. Na verdade, o que eu não posso é deixar de conhecer os dois em processo contraditório dialético, em que quanto melhor eu aprendo tanto melhor eu posso ensinar e quanto mais eu ensinar tanto melhor se pode aprender. Mas foi aprendendo socialmente que historicamente as mulheres e os homens descobriram no ato de aprender diluída a prática de ensinar. Um dia na história dos homens e das mulheres, um dia mais ou menos recente, é que descobriram que porque aprendiam era possível ensinar, e aí se sistematizou o trabalho de ensino. A gente perdeu essa noção da história e inverteu os papéis. Eu também estou escrevendo sobre isso. Eu acho que às vezes é preciso recuperar historicamente o grande papel de aprender, sem que isso signifique nenhuma diminuição do ensinar.

U - A escola deve ser um ambiente, ser tornado um ambiente mais para compartilhar esse processo de busca, e não um ambiente onde se passa conhecimento.

P - Claro. Poderia se pensar que eu estou defendendo aqui um papel subalterno para o professor. De jeito nenhum. Indiscutivelmente o papel do professor, o papel do ensinante, é um grande papel. Ele/ela tem uma grande responsabilidade de ensinar. E professor que não ensina não se justifica, ele não se explica a si mesmo. Agora, é preciso clarear e esclarecer o que significa mesmo ensinar. E quando a gente busca compreender na própria prática o que é ensinar, a gente tem que concluir que o próprio esforço do processo social da produção do conhecimento põe de lado qualquer possibilidade de transferir conhecimento. Eu produzo, eu crio, eu recrio o conhecimento, eu não engulo conhecimento. Eu me lembro de uma expressão irônica de Sartre, quando ele criticava o que ele chamava de concepção nutricionista do saber. Ele diz: trágica e dolorosa a concepção nutricionista do saber, em que o professor alimenta, e você vê as metáforas todas que a gente vê na linguagem comum para nos referir ao problema do conhecimento. Tem muito a ver com alimento. Você fala de fome de saber, sede de saber. Você não fala na curiosidade de saber. Você fala na sede do saber. Eu não tenho que beber saber, nem tenho que comer saber. Eu como uma feijoada, não conhecimento. Conhecimento eu produzo socialmente.


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