segunda-feira, 29 de março de 2010

AINDA SOBRE A LOUCURA

                                                          OUTRAS PALAVRAS

                                                                        Jorge Bichuetti

Diante do psicótico, a terapia exige-nos criatividade e vida.
Depauperado pelas misérias de um calvário de dor e marginalização, nele encontra-se inscritas as chagas da institucionalização manicomial.
Exige-nos, assim, empréstimo de vida. E um árduo trabalho, intervindo na direção de que eles conquistem graus crescentes de autonomia e, principalmente, a alteridade de se realizarem na sua história singular.
Austeros súditos da ideologia da vitória, quase sempre, depreciamos, na dor e na crise, a queda. Fatalistas e escravos da ideologia médica, quase sempre, nada fazemos carimbando no diagnóstico de psicótico a idéia de um futuro sombrio, irreversível.
Ainda bem que podemos ler e escutar Nietzsche: “o homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem uma corda sobre o abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar... O que é grande no homem, é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem, é que ele é um passar e um sucumbir”.
Terapeuta-ponte e não fim... Psicótico-ponte e não fim... Terapeuta: um passar e um sucumbir... Psicótico: um passar e um sucumbir...
Superada a interpretação, o fatalismo organicista e o medo do caos, da crise, da queda, fica ainda uma pergunta: o que fazer?
Apoio? Companhia? Cumplicidade? Sim... Maternar? Sim... Mas também parir, numa terna e cúmplice parceria, numa corajosa e solidária luta, o novo.
Os agenciamentos necessários exigem ética, bom caráter, excelente coração, mas também exigem conhecimento, ferramentas; técnica e capacitação.
Analisar, se não é interpretar, esquizoanaliticamente falando; igualmente, não é nada ver, nada entender, nada escutar e nada fazer.
A leitura cartográfica de um psicótico exige também competência:
... Desmontar atravessamentos, nós, ritornelos cristalizados, repetições;
... Dar expressão ao delírio, delírio-romance inacabado;
... Resgatar a história, corroendo lendas e potencializando os sonhos não- realizados;
... Intensificar o que funciona, confeccionando uma ética, uma estética, um produzir emergente na singularidade manifesta;
... Bifurcar saídas; implicar-se, expondo-se nas ressonâncias pertinentes;
... Construir a vida, a vida coletivizada, em múltiplas grupalidades, vida sentida e com sentido no desejo assumido e buscado através de uma máquina de guerra que ousa enfrentar o instituído, o organizado, na reinvenção da história de vida, agora, história-luta, história de experimentos e empreendimentos energizados, e estratégicos de uma viva e autêntica utopia ativa.
Uma intervenção, assim, faz do terapeuta algo que segue adiante. Passa, sucumbe, mas caminha.
E caminhando alia-se e já não é o autor de uma história.
Nem passivo. Co-autor da vida, de vidas, da vida remoçada. Da vida-mudança.
Um terapeuta, assim, jamais temerá os rumos da história, conquanto suportará a sua própria história.
E retomando Nietzsche, todos “precisamos de história, pois o passado continua a correr em nós em cem ondas: nós próprios nada somos senão aquilo que sentimos dessa correnteza a cada instante”.
Por isso, surfando nas lembranças do CAPS - Maria Boneca não poderia deixar de gritar: Ave! Ave, Clínica que é vida, pois contigo me fiz mais feliz na coragem de uma vida que é clínica.

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