terça-feira, 16 de março de 2010

ARTE, MÚSICA E TERAPIA

                                              Da multiplicação dramática à multiplicação musical

                                                                                                          jorge bichuetti

O ofício de um terapeuta é um saber, uma arte e um existir.
Um saber- conhecer o humano, os dilemas da vida e suas relações com o outro, com o destino e com a história. Saber ler... Ler a vida se produzindo, gestando-se... A vida emergindo e a vida estropiada pelas pedras do caminho.
Uma arte- intervir, renunciando o papel de quem sabe para se colocar ao lado do acontecer; propiciando, intensificando, agenciando no outro a vida possível e (aparentemente) impossível. É a arte de criar no encontro o novo, entre... Na relação...
Um existir - experienciar com o outro novas possibilidades de vida, existir reiventando o mundo e se reconstruindo sempre, sempre...
A terapêutica, quase sempre, tem sido um instrumento de adaptação. De adaptação passiva à realidade, realidade esta que já não responde a potência do humano, do humano que se caracteriza pela capacidade de se criar transformando o mundo e de transformar o mundo, fabricando no universo do si mesmo o homem novo.
A terapêutica tradicional se restringe na crença de poder decifrar, interpretar e codificar a dor alheia, através de uma teoria universal, prévia e padronizada.
E de se alterar a história do outro, frustrando, dissecando cicatrizes; agindo como se a palavra fosse um punhal dilacerante, que altera ferindo, entristecendo, aguçando a percepção de conflitos e complexos arquivados num inconsciente fúnebre.
A vida é contagiante, é sedutora...
Ela pede audácia e invenção.
Muitos terapeutas perceberam que se faz pouco pelo outro quando se configura o ser agir num devir-urubu...
A interpretação, prevista, é um esforço de quadricular o hoje o remetendo ao passado; e é um esforço de se superar a dor, aprendendo a naturalizá-la, harmonizando-a numa história reconstruída cheia de culpa e de projeções condenatórias.
Outros terapeutas ousaram reinventar o processo de lida com o sofrimento humano.
Primeiro, trocaram o esforço de explicar o hoje pelo ontem pela possibilidade de se extrair da interação passado - presente, história vivida, novas saídas; bifurcações, uma reinvenção da própria vida e do destino.
Segundo, inventaram procedimentos terapêuticos que não se norteavam mais pelo império da dor. Buscaram na arte de brincar, na arte de experimentar novidades, na criação- criatividade uma potência de cura, de mudança que já não se restringe a uma teoria puramente concebida, mas que emerge do cliente- usuário, desfrutando de um encontro onde no entre da relação existe espaço e instrumental de construir-se uma novidade, uma novidade para além da saúde e da doença, uma saída... Uma bifurcação... O re- encontro com a vida pela vida...
Pavlovsky é um destes terapeutas.
Inventou a multiplicação dramática.
De uma cena, por ressonâncias emergem cenas. E destas... Vida, vida, vida...
Quando se trabalha com ressonância o terapeuta no ato de implicar fala do que o outro desperta nele. E dá complexidade a uma experiência, não tentando reduzir uma experiência à condição de mera reprodução de um algo passado.
A multiplicação dramática explora a potência do teatro, do teatro criativo e expontâneo.
Inspirado nele passamos a usar a música.
Alguns motivos nos inspiraram...
Nem sempre conseguimos trocar com o usuário, manuseando apenas o recurso do discurso racional-simbólico.
Percebemos que ao ouvir uma dor, uma queixa, um relato, auscutando o próprio coração, nele identificávamos ressonâncias musicais.
Uma, ou outra música emergia... E comunicando-a, percebemos também que ela motivava trocas terapêuticas.
Era um problema que se via elaborado num insight suave; doutras vezes, era um problema que se via percebido em novas dimensões...
Igualmente, notamos que uma devolução- uma fala, potencializava-se quando fugia do universo da intelectualização e se exprima no campo da estética- poética.
Tocava-se, cantando um trecho musical, o outro, e outro se permitia envolver-se com o conteúdo devolvido.
Resistências afrouxadas. Coração desnudo, propicio ao trabalho de se re- pensar o vivido e a vida a ser experienciada.
Somos hoje devedores do universo musical.
Usamos frequentemente uma ou outra canção. Ela agora compõe o arsenal das nossas intervenções terapêuticas.
É alguém desistindo da vida e se impactando ao ouvir: “E a vida, o que é minha vida. Diga lá, meu irmão... É a batida de um coração... É uma doce ilusão...”
Outro, contando o amor perdido:” Quando olhastes, bem, nos olhos meus e o teu olhar era de adeus...”

Ou, uma pessoa falando dos sonhos perdidos e se emocionando ao escutar: “Se esta rua, se esta rua fosse minha...”
É a música a serviço da cura.
Cura? Não a cura-ilusão de uma vida feliz, sem problemas...
A cura de se ver humano, experenciando a complexa caminhada de quem segue adiante, com, sem e apesar das dores.
A música, assim, é um instrumento:
• De diagnóstico. Não de um diagnóstico que codifica o sofrimento alheio, mas sim de um diagnóstico que multiplica, diz o que o outro sente, relembra e cria, deixando-se afetar pelo relato (ressonância) do problema exposto;
• De intervenção. Conquanto permite intervir na suavidade de quem não racionaliza a emoção relatada, nem se nega a trabalhar a dor exposta, mas usa de uma linguagem que toca, percute, sensibiliza com a ternura-cúmplice de uma aliança que fomenta a emergência do mais oculto, e, também, dos valores capazes de armar o trabalho terapêutico na sua complexidade: catarse, problematização, síntese, desmonte e construção de novos modos de sentir, pensar e agir na vida e pela vida.
Multiplicação musical é a terapia devindo-se no idioma do sensível, no que a sensibilidade possui de mais pleno; é uma linguagem, um modo de contactar-se e afetar, de comunicar-se diretamente inconsciente a inconsciente, coração a coração.
Inconsciente-arte: o indivíduo se refazendo, reconstruindo a partir da dor uma expressão estética que o permite se perceber, ternamente, e se modificar, na melodia de quem cantando seus males espanta.
Coração-arte- é a superação do ritornelo queixa-queixume, que se vê transformado numa obra. Obra-espelho; obra-refração... Mas também, obra que o envolve, agenciando o seu desejo de se devir-desejo, felicidade.
A força de um canto transcende...
Está nos ritos tribais, no choro dos boêmios, nos hinos sacros...
Está nas festas, e está na solidão de uma serenata...
Ela, a música, som, palavra; poema e rítimo; alma e coração - possui a magia de enfeitiçar.
Um feitiço singular...
Da lágrima ao balanço alegre do carnaval; da prece de uma orquestra ao historiador de um samba-canção, que é sentimento expresso, permite unir na terapia a emergência do coração que sente à vontade de viver de quem se deixando afetar, segue, cantando: E a alegria de ser um eterno aprendiz...

A esquizoanálize é uma corrente sui generis.
Adota a idéia de se montar, através do roubo, uma caixa de ferramentas.
Geralmente, a ciência se subdivide em correntes e estas advogam uma teoria e uma técnica. Vigora o monolítico, a verdade absoluta...
E o roubo da música é mais um, entre tantos outros...
Isto porém deve ser compreendido dentro da perspectiva deste saber; pois aqui a música não é ilustração, nem divertimento. Embora ilustre e torne a terapia divertida.
A música é usada como obra de arte, cuja potência reside na capacidade de diversificar, intensificar, bifurcar, desmontar repetições, propiciar saídas e acontecimentos.
Não é cantar, suprindo um não-entender.
Não é cantar, desviando o foco da análise.
Não é cantar, falseando as debilidades do terapeuta.
É a música instrumentalizando intervenções, que refletindo as ressonâncias do terapeuta, é exposta com a finalidade de reinventar a intervenção, modulando-a como intervenção não-interpretativa, porém uma intervenção que busca no efeito pático de uma canção desmontar os registros paralizantes e patogênicos do status quo e facilitar o despertar, o afirmar do novo.
Música, sim; mas música devir-mudança.
E a música na terapia reafirmando a vida: e aí ''eu fico com a pureza da resposta das crianças...'' E digo... Na vida, pela vida: '' É bonita, é bonita e é bonita''...
Música, sim, mas música- guerreira: solidariedade, ternura, gentiliza... O singular...
A canção da vida cura e são estas canções que devemos roubar, fazendo da terapia um palco de produção da alegria de se assumir e se encontrar, no desejo de viver, musicando o caminho com a coragem de ser.

2 comentários:

Samara Dairel Ribeiro disse...

Cantar
Beto Guedes

Se numa noite eu viesse ao clarão do luar
Cantando e aos compassos de uma canção
Te acordar
Talvez com saudade cantasses também
Relembrando aventuras passadas
Ou um passado feliz com alguém

Cantar quase sempre nos faz recordar
Sem querer
Um beijo, um sorriso, ou uma outra ventura qualquer
Cantando aos acordes do meu violão
É que mando depressa ir-se embora saudade que mora no meu coração
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Ontem, voltando de Araxá de carro, e na companhia de Beto Guedes, mais uma vez me entreguei a essa vivência que as viagens "solitárias" têm produzido em minha vida. Nada me fala tão diretamente à alma, quanto a música. Junto disso, a liberdade de ir e vir, cortar estradas, o céu azul, as paisagens, os animais, cenas inusitadas, sonhos embalados, a vida em movimento ...
Ainda me surpreendo, é instantâneo. Lágrimas, ternura, risos, arrepios, saudade, leveza, esperança, fé, se mesclam e revezam, fazendo sentir a vida. A vida à flor da pele.
Na lembrança ainda, a energia compartilhada no Ambulatório de Saúde Mental de Araxá, por meio da música, dos instrumentos musicais, do amor, da solidairedade...
Um usuário que está sempre pelas ruas, nesse dia sentado a dois quarteirões dali, pareceu ter ouvido o chamado da alegria. Surgiu como uma aparição boa, sorriso no rosto, entrou se sentindo em casa e circulou como a música, por todos os cantos daquele lugar. No fim, eles trazem um "problema": "Precisamos de uma gaita, mas tem que ser profissional." Parece que o gaiteiro havia dito, num outro momento, que a gaita atual não dava afinação.
Voltei encantada com aquelas cenas, com a vida se mostrando e fazendo potente, apesar de tudo; sem ter como expressar o que senti. A música possibilita isso. Como duvidar que é possível?
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Sol de Primavera
Beto Guedes

Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão onde a gente plantou juntos outra vez
Já sonhamos juntos semeando as canções no vento
Quero ver crescer nossa voz no que falta sonhar
Já choramos muito, muitos se perderam no caminho
Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer
Sol de primavera abre as janelas do meu peito
a lição sabemos de cor
só nos resta aprender...
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Querido Jorge,
Aproveitando essa oportunidade, gostaria de deixar a sugestão de incluir no blog, um espaço para construirmos uma caixa de ferramentas, com vídeos musicais. Não sei se é possível, mas sempre que envio uma letra de música, é porque gostaria mesmo de enviar a música cantada, tocada, interpretada ... Tomara que dê certo!

Bj, Samara.

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Samara, irei tentar ver... não sei dos procedimentos técnicos.
O mundo da música é uma viagem de afetações intensas e potentes...
Tocam, diretamente; como se penetrassem nos esninhos da alma. abraços jorge