Tânia Marques
Bauman, um dos maiores pensadores e sociólogos da atualidade, vem por meio de seus estudos situar tão bem a humanidade nos seus referenciais de Modernidade e Pós-Modernidade, respectivamente atribuindo a elas as metáforas “modernidade sólida” e “modernidade líquida”. A primeira estava ligada à ordem, e a segunda, ao caos. A partir dele, não dá mais para se pensar o mundo contemporâneo sem o entendimento do que essa oposição significa e das suas consequências que passam a operar “ingenuamente” em nossa sociedade.
O mundo moderno ou modernidade sólida se legitimava pela imposição da ordem, pela limpeza e pela beleza. Havia uma intensa correspondência discursiva entre a semântica das palavras e a contextualização da prática de vida. Era preciso nomear, classificar, ordenar, dar sentido a tudo, e aquilo que não passasse por essa lógica era considerado “estranho”, “diferente”, “estrangeiro”, e precisava ser eliminado ou segregado do convívio social. Esse período, por assim dizer, ostentava uma única verdade, que gerava monotonia, regularidade e era absolutamente previsível. Racionalmente, isso significava encaixar a humanidade num projeto de mundo civilizado moderno paradigmático, pleno de certezas finitas e de “total” segurança. A ordem estava instaurada e o Estado “jardineiro” (conforme afirma Bauman) tinha de encarregar-se de mantê-la sempre presente, reconhecendo apenas esse tipo de organização de vida. Um mundo com fronteiras, que necessitava de vigilância constante (aquele momento do panóptico, que Michel Foucault explica em sua obra Vigiar e Punir). Obviamente, o mundo da modernidade sólida enfrentava embates infindáveis pela manutenção dessa ordem, engendrando, segundo nos revela Bauman, ambivalências que seriam incapazes de serem resolvidas, pois não existia a possibilidade de relativização da verdade. Portanto, a modernidade sólida foi um contexto de exclusões, de totalitarismos, de barbaridades, onde muitas vidas foram ceifadas por se constituírem um imenso refugo, um “lixo humano”, as “ervas daninhas” que teriam de ser retiradas a fim de não proliferarem e destruírem o “jardim”, quebrando o seu equilíbrio ético e estético.
Por outro lado, com as evoluções econômica, científica, tecnológica, em face à globalização, ao enfraquecimento político do Estado, à exaltação do consumo e à incapacidade histórica de dar conta dos paradoxos originados pelas verdades solidificadas e cimentadas nas instituições sociais e nas formas de viver da modernidade sólida, uma outra ordem social se instaurou como uma nova condição existencial humana, sendo o reverso da ordem normatizada, produzindo o mundo das dúvidas e incertezas, quebrando a perspectiva de linearidade e originando a imprevisibilidade em todos os setores da vida pós-moderna ou da modernidade líquida. A modernidade líquida insere-se no atual contexto como surgida da conseqüência de forças ambivalentes da modernidade sólida. Forças ambivalentes são forças contraditórias e contingentes. Forças que se contrapõem à perfeição, à segurança alcançada anteriormente pela previsibilidade e ao domínio sobre o tempo, o espaço e os padrões de comportamento. Segundo Bauman, a ambivalência tanto pode ser uma luta autodestrutiva quanto autopropulsora, porque, no último caso, operando em vários movimentos e em vários espaços, ela põe fim à mesmice e possibilita ao homem vivenciar um diferente sentido para a sua existência, sendo ele obrigado, com isso, a superar atitudes pacíficas de dominação e abandonar convicções cristalizadas, para entender a efemeridade das coisas, a fragilidade das relações interpessoais e a liquidez da vida.
Segundo Bauman, “as certezas da modernidade sólida se foram, e agora a única certeza são as incertezas”. Na modernidade líquida, tudo passa, se dissolve, se desmaterializa, pois vivemos a era do instantâneo, da rapidez tecnológica, da efemeridade, do líquido que escorre pelos dedos. Não estamos mais ligados e nem queremos estar ligados à rotina, não conseguimos nos manter da mesma forma por muito tempo, é um interminável constante – inconstante. Do panóptico passamos ao sinóptico. Antes poucos vigiavam muitos, e hoje muitos vigiam poucos. É o caso das celebridades (que na modernidade líquida substituem os “heróis” da modernidade sólida), do Big Brother, pois a pós-modernidade é também a Sociedade do Espetáculo. Guy Debord foi um visionário para sua época, quando explicava o funcionamento da espetacularização da vida. Na Sociedade do Espetáculo, o homem é monitorado por algo que ele mesmo criou. O espetáculo tornou-se uma ‘religião’, pois ele tem a autoridade de uma instituição, exercendo poder e domínio sobre os homens. Com o Estado em descrédito e submisso ao poder econômico, quem rege as nossas vidas na modernidade líquida é o consumo. Temos uma existência massificada e manipulada pela mídia, que impõe ao ser humano cada vez mais o desejo infinito de “ter”, uma perversão econômica que classifica a importância das pessoas pelo que elas carregam no carrinho do supermercado, pela grife que usam, pelo bairro onde moram, etc. Quem está destituído desse valor é descartado de poder (ele se vê destituído de poder, porque desconhece o poder que tem), assim como as mercadorias são, formando verdadeiros “lixões humanos” nas periferias das grandes cidades. Esses despossuídos de si, também as pessoas em geral que vivem uma vida líquida numa época líquida, não têm o mínimo de segurança, projetam-se através do espetáculo, vivem o espetáculo a ponto de não mais saber a diferença entre o que é real e virtual. Tudo é extremamente instantâneo e instável, manipulado e manipulável.
Bauman é fascinante, pois ele pensa a sociedade como um todo, preocupa-se com a conservação ambiental, com a energia nuclear, com a manutenção da vida no planeta. Mas, em meio às moléculas frouxas da modernidade líquida e a falsificação da vida comum da sociedade do espetáculo, não adianta mais insistir nos padrões e regras da modernidade sólida. É utopia insistir na construção de uma família linear, na idéia distante de um “casamento para sempre”, de uma “educação para sempre”, com seus conceitos engessados, pois nada mais dura "para sempre", as incertezas estão potencializadas. A sociedade espetáculo-líquida é a sociedade do movimento em ritmo frenético, do inconstante infindável, afinal já não conseguimos mais tolerar o que dura, não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos. Cabe a nós, que vivemos na modernidade líquida, tentarmos achar saídas para essa realidade que se apresenta imperativa em nossas vidas e à sobrevivência humana na Terra.
DO BLOG: wwwestudosculturaisemeducacao.blogspot.com
4 comentários:
Muito bom artigo. Gostei de como a Tania escreve: claro, forte e simples. Quem lê esse artigo nem mesmo preciso ler os livros do Bauman. Entendo que ele deu grande contribuição ao estudo da modernidade atual.
Mas tem uma coisa que me pergunto sempre. Não seria sólida demais a desgraça do mundo? Essa não se liquidifica. Resiste firme e se amplia. A pobreza, a miséria, a concentração de renda e riquezas são de pedra. E das duras. Por isso, penso que alguém vá escrever um livro com o nome " A modernidade de pedras duras" .
Parabéns Tânia por esse artigo, aliás por todos os seus belos artigos, poemas etc. Olhando seu blog ontem, senti um bocado de alegria. Ventos do sul.
Jorge querido, obrigada pelo poema dedicado a mim. Mais: obrigada por existir e dar existências às utopias ativas.
abraços
Marta
Marta, creio que pensamos parecido: cada autor acrescentou algo valioso para que púdessemos entender a contemporaneidade. Liquidez, simulação/simulacro,espetáculo e , poder capilarizado num controle global, um império e uma multidão...
O texto da Tânia nos clarifica a contribuição de Bauman, mas mesmo ele dizia preocupado com a quietude da pós-modernidade.
Não se move, não se luta, não se movimenta e se rebela, sem dissecar a miséria da modernidade das pedras duras.
Temos que retomar uma leitura da solidez da exploração-dominação-mistificação. E agragá-los num diálogo pela mudança.
Marta, meu carinho abraço, do cerrado rebelado, com a ternura dos ipêse a meiguice das gabirobas, Jorge
Gracias Jorge. Vc é suave. Uma escola para mim pois sou também meio pedra, pedrada. "uma pedra de nascença, entranha a alma". bj M
Marta, somos pedras onde medram a relva; há pedras duras que impedem a vida. Aí, a luta é por uma nova suavidade insurgente; Abraços, Jorge.
Jorge
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