O ÚLTIMO CANTO ( breve relato).
Paulo Cecílio
Desde que ficou só, meu último canário belga mergulhou num luto profundo, e nunca mais cantou. Dias houveram , porém, em que ele se permitia quebrar um pouco seu desespero e sinalizava. Por hábito, sempre que chego da rua, pratico um monólogo diante de suas grades, antes de entrar na água fria da ducha bem em frente sua gaiola.
Aquele parece ser o melhor momento de nosso dia. A cena é assim: um boi de cuecas, tomando ducha no quintal, e conversando animadamente com um canário belga mudo. Mas dava pra ver que ele quase se entregava e me premiava com seu canto surpreendentemente firme e forte diante de sua estatura.
Ficava na intenção : seu luto era inquebrável. De qualquer forma, ele também entrava em sua banheirinha, e ficávamos os dois curtindo nosso mediterranée...
Ontem, domingo à tarde, sentado ao seu lado em silêncio, fui surpreendido com um canto inesperado. Alto, belo, longo, suave, seguido de um silêncio pesado. Vendo-o numa posição incomum, ao fundo da gaiola, tome-o suavemente na palma da mão.
Daí, ele se foi, como mocinho em filme infantil: olhar fixo, lúcido, até o pender lateral de sua cabecinha. Partiu o último canário. Partiu meu penúltimo prisioneiro.
Já se tingia o céu de vermelho, e a igreja da Abadia repicou seus sinos .Hora dos anjos. Sem saber como lidar com a situação, subi no muro, e dali pude depositar seu corpinho de algumas gramas sobre as telhas do vizinho.
Sequer os gatos violaram as horas seguintes, em que uma enorme lua cheia velou por ele, impávido, sem grades, e diante de uma noite fria, e de meus olhos insones.
Seguirei só como o último prisioneiro de mim mesmo....
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