"EU CREIO NA JUSTIÇA E NA ESPERANÇA"
O motorista do ônibus não entendeu o português enrolado do homenzinho magro, calça de brim surrada, camiseta branca e sandálias de couro. Estacionou o veículo na beira da estrada, para que o homenzinho descesse. E depois partiu. O homenzinho só havia pedido para urinar. O condutor não entendeu e o largou, tarde da noite, na escuridão da estrada.
Este foi um episódio ocorrido com Dom Pedro Casaldáliga, missionário clareteano (da Congregação fundada por Santo Antônio Maria Claret), que havia acabado de ser sagrado bispo da miserável região de São Felix do Araguaia, até hoje conturbada por sangrentas lutas pela disputa da terra. Na época, fins da década de 1970, a situação era pior ainda: os órgãos de repressão do governo militar, instalado no Brasil em 1964, descobriram que ali estava sendo articulada a luta armada para pôr fim à ditadura. Naquela noite, Pedro Casaldáliga pediu abrigo na casa de um camponês, que ainda não o conhecia. Ao dizer que era o bispo, o camponês, antes de lhe dar pousada, sorriu e disse, vendo-o naqueles trajes: "Se o senhor é bispo, eu sou o papa. Mas pode entrar."
Pedro Casaldáliga juntou-se à luta do seu povo simples e massacrado. Escondeu guerrilheiros. Teve sua extradição pedida pelos latifundiários. Recebeu advertências do Vaticano, que fingiu não entender. Foi jurado de morte diversas vezes. Hoje, aposentado, não retornou a Espanha, preferindo continuar no meio de índios e posseiros, mesmo contra a vontade dos seus superiores.
O ritual de sua sagração episcopal foi diferente dos demais. Dispensou todas as pompas.Não deitou no tapete vermelho, mas sim numa esteira de vime, às margens do rio Araguaia. Em lugar da mitra, usou um chapéu de palha de pescadores. Em lugar do cajado episcopal, um par de remos.O anel foi enviado à mãe na Espanha e trocado por uma modesta aliança de casca de coco. Palácio? Como palácio, monsenhor optou por uma choupana idêntica a do povo local. Escreveu um diário, vários poemas e é co-autor do texto da Missa do Vaqueiro, musicada pelo compositor Milton Nascimento. De sua obra como poeta, extraio este texto:
CANÇÃO DA FOICE E DO FEIXE
Com um calo por anel
monsenhor cortava arroz.
Monsenhor "martelo
e foice?"
Me chamarão subversivo.
E lhes direi: eu o sou.
Por meu povo em luta, vivo.
Com meu Povo em marcha vou.
Tenho fé de guerrilheiro
e amor de revolução.
E entre Evangelho e canção
sofro e digo o que quero.
Se escandalizo primeiro,
queimei o próprio coração
ao fogo desta Paixão,
cruz de seu mesmo Madeiro.
Incito à subversão
contra o Poder e o Dinheiro.
Quero subverter a Lei
que perverte ao Povo em grei
e ao Governo em carniceiro.
(Meu Pastor se faz Cordeiro
Servidor se fez meu Rei.)
Creio na Internacional
das frontes alevantadas
da voz de igual a igual
e das mãos enlaçadas...
E chamo a Ordem de mal
e ao Progresso de mentira.
Tenho menos paz que ira.
Tenho mais amor que paz.
...Creio na foice e no feixe
destas espigas caídas:
Creio nesta foice que avança
uma Morte em tantas vidas!
- sob este sol sem disfarce
e na comum Esperança -
tão encurvada e tenaz!
Pedro Casaldáliga
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