terça-feira, 1 de novembro de 2011

BONS ENCONTROS: UMA ANÁLISE DE FREI BETO SOBRE A PROBLEMÁTICA DAS DROGAS...

Vida sim, drogas não!

Frei Betto



Todos os anos, desde 1964, a Igreja católica, através da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil), promove a Campanha da Fraternidade. A cada
ano um novo tema. A campanha dura todo o período da Quaresma ? da Quarta-
Feira de Cinzas ao domingo de Páscoa.

Este ano o enfoque recai sobre as drogas e o lema é o título acima. Segundo
o bispo Raymundo Damasceno Assis, secretário-geral da CNBB, "a escolha do
tema relacionado com drogas parte da realidade de um sistema de morte,
alimentado por um estilo de vida materialista, que vem se alastrando como um
furacão, a partir do seu cultivo, comercialização e consumo, que ceifa
milhares de vidas e afeta profundamente famílias e amplos setores sociais.
Junto com as trágicas conseqüências do uso de drogas, crescem a violência
social, a prostituição, os roubos, os assaltos e seqüestros, a corrupção
política, a corrosão da dimensão ética do trabalho e a guerra entre
traficantes, que mantêm exércitos bem armados e bairros dominados."

Os objetivos da Campanha da Fraternidade visam tornar a Igreja e a sociedade
mais sensíveis ao problema das drogas, sobretudo às suas vítimas; anunciar
para o novo milênio uma sociedade sem exclusões; denunciar "com coragem e
força o hedonismo, o materialismo e aqueles estilos de vida que facilmente
induzem à droga" (João Paulo II), bem como os mecanismos sociais do mercado
neoliberal que, com seu padrão de consumo insaciável, aumenta a competição e
o individualismo.

Drogas não são apenas cocaína, ecstasy, crack ou maconha. São também o fumo,
as bebidas alcóolicas e os medicamentos tomados em excesso ou equivocamente,
como o caso daqueles oito rapazes que, em São Paulo, ficaram estéreis para o
resto da vida por ingerirem anabolizantes destinados a cavalos de corrida.

Muitos consumidores de drogas "socialmente corretos", capazes de ingeri-las
sem cair em tendências anti-sociais, tentam convencer a si mesmos que não são
dependentes. Mas não podem negar que ajudam a mover a roda mortífera do
narcotráfico, que induz milhares de pessoas, sobretudo jovens das camadas
pobres, à marginalidade e ao crime.

A mídia, como sempre, dá uma no prego e outra na ferradura. Alerta para o
perigo das drogas e, por outro lado, exibe clipes publicitários e filmes que
fazem a apologia dos usuários de drogas.

O narcotráfico movimenta por ano, no mundo, cerca de US$ 400 bilhões ? pouco
menos que o PIB brasileiro. Os cabeças escapam através da lavagem de
dinheiro, do tráfico de influências, da compra de policiais, militares e
juízes. Os pés-de-chinelo são caçados nas favelas, morrem crivados de balas
ou padecem nas prisões.

De 1980 a 1996, os assassinatos, no Brasil, dobraram de 13 para 25 por cada
grupo de 100 mil habitantes. Entre jovens de 15 a 19 anos, o índice subiu
para 44,8/100 mil. A maioria em decorrência do uso e do tráfico de drogas.


Causas e efeitos

Quem são os culpados? Todos nós somos responsáveis, até mesmo por omissão
frente ao problema, e somos também vítimas (assaltos por drogados, acidentes
de trânsito em conseqüência de bebidas, disseminação da Aids, políticos
eleitos com o dinheiro do narcotráfico etc.). Inútil pensar que a questão da
droga é um problema individual. É, sim, uma grave questão social.

A droga não é causa, é efeito. Se quisermos erradicá-la, teremos de encarar
de frente um desafio: a mudança da sociedade em que vivemos. Não se trata de
ceder ao maniqueísmo ideológico e acreditar que o advento do socialismo porá
fim ao problema. Também nas sociedades socialistas da Europa do Leste o
narcotráfico atuava, como hoje opera em Cuba.

Essa "civilização química" na qual vivemos resulta do nosso desencanto
subjetivo. Uma pessoa destituída de valores espirituais ? religião, utopia,
ideologia etc. ? tende a buscar sucedâneos que preencham o seu vazio
interior. No fundo, recorre-se à droga para alterar o estado de consciência.
Eis uma necessidade da qual nenhum ser pode prescindir. Ninguém agüenta ser
"normal" o tempo todo.

É uma exigência de nossa saúde espiritual cultivar a subjetividade, como o
artista esteticamente febril diante de sua obra, o profissional encantado com
o seu projeto, o militante guevarianamente empenhado em sua luta, a jovem
apaixonada, o místico tocado pelo amor divino. São estados de plenitude e
felicidade.

Porém, não se encontram à venda na farmácia da esquina, nem merecem
publicidade na mídia. Até porque são valores anticonsumistas. Quanto mais
realizada uma pessoa, graças ao sentido que imprime à sua vida, menos ela
sente necessidade de recursos artificiais que alteram momentaneamente o
estado de consciência para, em seguida, passado o efeito, desabar no vazio de
si mesmo, no abismo da própria frustração.

Mudar a sociedade não é só transformar as suas estruturas. Isso é o
prioritário: assegurar a todos alimentação, moradia, saúde e educação,
trabalho, lazer e cultura, o que supõe distribuição de riqueza, partilha dos
frutos dos trabalho humano, soberania nacional, reforma agrária etc. Mudar a
sociedade é modificar também os valores que regem a vida social. Essa
revolução cultural certamente é mais difícil que a primeira, a social.
Talvez por isso o socialismo tenha desabado como um castelo de cartas no
Leste europeu. Saciou a fome de pão, mas não a de beleza. Erradicou-se a
miséria, mas não se logrou que as pessoas cultivassem sentimentos altruístas,
valores éticos, atitudes de compaixão e solidaridade. O resultado é
assombroso: após 70 anos de socialismo, a Rússia hoje destaca-se pelas máfias
de prostituição infantil e pela corrupção crônica em todos os escalões da
sociedade.

O ser humano é um animal amoroso. Um bebê desprovido de amor não sorri. A
falta de afeto é, com certeza, um fator que induz um jovem a buscar nas
drogas o preenchimento que só as relações pessoais são capazes de fornecer.
Porém, nas classes populares, o desemprego engendra o desespero, que leva à
bebida, provoca agressões etc., de modo que, desamparado social e
afetivamente, muitos jovens, e até crianças, só no uso de drogas experimentam
um estado de "felicidade" que a vida lhes nega.

Nas demais classes sociais, as causas são conhecidas: o império doméstico da
TV, reduzindo o diálogo familiar; os pais sempre ocupados com negócios e vida
social; a competição profissional, coibindo pais de "perderem" tempo com seus
filhos. Provedores da educação de seus filhos, não sabem ser amigos,
companheiros, num diálogo olho no olho. Acreditam que os bens finitos têm o
poder de tapar a carência de bens infinitos.

Contudo, as influências dos "valores" sociais pesam muito mais na indução à
droga. O que esperar de um jovem sem recursos para estudar, obrigado ao
trabalho precoce mal remunerado, bombardeado pela publicidade que exalta,
como vencedores, os ricos e famosos que não trazem em seu currículo nenhum
benefício à humanidade, exceto seu alpinismo rumo ao dinheiro e ao sucesso a
qualquer custo?

Quem almeja ser um novo são Francisco de Assis numa sociedade que idolatra
pilotos de Fórmula 1 e modelos anoréxicas? Quem sonha em libertar os povos,
como Che Guevara, se o paradigma é Bill Gates com seus US$ 83 bilhões na
conta pessoal?

Quanto mais inacessíveis os "valores" de uma sociedade ? critérios de beleza,
lugar de fama, possibilidade de riqueza ? maior a angústia daqueles que ficam
ligados nesses referenciais. É essa angústia que provoca insegurança e,
portanto, ansiedade que, na falta de conquistas objetivas, induz ao sonho
químico, ao reino do faz-de-conta, cujas fadas são as drogas e as varinhas de
condão os efeitos que produzem na alteração do estado de consciência.

Se quisermos erradicar as drogas e salvar as gerações futuras, comecemos pela
participação nos movimentos sociais que atuam transformadoramente na
realidade brasileira. Cruzar os braços, ficar na janela vendo a banda
passar, é favorecer os traficantes.

Apaixonar-se por uma causa ? social, política, estética, religiosa ? é o
melhor antídoto contra as drogas. Pois nos mantêm permanentemente com o
estado de consciência alterado para melhor. É o sentido que imprimimos à
nossa existência que nos faz conhecer ou não a felicidade como valor
subjetivo e espiritual. 

2 comentários:

DINIZ disse...

Perfeita colocação a respeito desse universo tão pouco tolerado.
Mudanças de paradigmas, garantias de direitos e liberdade da alma!

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Diniz: uma proposição de olhar e agir pela vida, com acolhimento, cuidado e liberdade... um novo paradigma... abs ternos, jorge