Jorge Bichuetti
O cheiro do ralo. Um filme instigante... provocante, um espelho descarado e sem maquiagem do mundo que vivemos. Dos dias de hoje... e dos dias do ontem. Dirigido por Dahita , com roteiro de Marçal Aquino e estrelado por Selton Melo... Um filme sobre mercadorias e fetiches realizado na carência e no sonho utópico de quem na arte supera o fetichismo das mercadorias para apropriar-se da magia, fetiche ancestral, anímico e sagrado...
O consumismo é uma atualização do fetichismo, agora, midiático e globalizado?
Somos coisificados, mercadorias, adoradores de outras... divindades, coisas, também, porém, coisas que retém o poder, a magia, o fascínio e transformam quem as possuem em alguém, nomeado pelo valor simbólico da mercadoria divinizada pela depositações que ali projetam o próprio deus encarnado numa coisa qualquer, num totem-mercadoria.
Libidinizamos este mundo de idolatria?... Fazemos amor com as sagradas e sacramentadas mercadorias?...
Da cinta-liga ao carro importado, quanta fantasia!...
No princípio, nas sociedades tribais, era o sagrado... Poderes mágicos e divinos, entes sobrenaturais e potências do infinito, encarnadas nos objetos, pela tribo idolatrados, entes do destino.
Depois, o capitalismo, idolatrizou as mercadorias... Coisificou as relações e o ser humano passou a ser valorizado pelos bens possuídos, bens que o definiam...
Já não somos o que somos; somos as coisas que possuímos e que dissem por nós o que somos na vida.
Era do mercado...
Freud revelou nossos outros fetichismos. Assim, como o capitalismo nega a vida como ética e estética, nós, sexualidades reprimidas, castradas, envergonhadas, inibidas, fixamos num objetoe nele projetamos todo o desejo contido.
O "Cheiro do ralo", fétido e nauseante, embaralha as cartas da vida: o fetichismo da mercadoria se mescla com os fetiches sexuais e desvela a magia travestida, simulacro-dissimulação, que nos mantém prisioneiros do desejo na contramão.
O objeto do desejo não existe, é fabricado como evitação do desejo que revoluciona a vida.
O fetiche é a evitação do objeto de desejo, substituído por um outro objeto...
É encruzilhada. Terra de Exu... Ali, substituímos o objeto que nos suprimia de uma sexualidade de potência, onde se deseja a vida no conjunto e de conjunções, por um objeto investido do desejo e da magia. Assim, este objeto nos inibe e nos libera... Nos inibe , fazendo-nos sexualidade focada; e como o foco é uma simulação-simulacro, nos coloca abertos a insatisfação e a frustração, que se enfrentada há de nos colocar nos planos e linhas, fluxos do desejo que flui, inventa-se e se compõe nos encontros.
O filme intriga... Pergunta, subterraneamente, se podemos desejar no império das mercadorias?
O reino das mercadorias coisifica o ser humano e assim o desejo se vê prisioneiro das metáforas. Desejo subtraído, renegado e confinado nos estratos das trocas onde o valor de uso ( prazer e vida) são insignificantes ante o valor de troca ( poder e subtração)...
Ama-se a humilhação e a degradação do objeto proibido na interdição imanente à vida de valorização do socius em detrimento do novo, do inusitado, do devir que emerge no desejo libertário...
Ama-se uma bunda sem rosto, despersonalizada; e assim, acaba-se subsumido pelo cheiro do ralo que devora quem o alimentou... Cheira-se mal, cheira o mal... Cheiro anestesiante e paralisante dos movimentos que eclodem quando a vida pulsa desejante...
Um susto: os objetos acumulados possuem valor em si mesmos. Não se troca, não se realizam; se acumulam...
Ah! que saudade dos fetiches mágicos dos nossos ancestrais, onde fetichismo gerava potência e agregava coletividades.
Agora, eu e o objeto... Eu e o meu consumo resultam numa podre solidão.
O inevitável, a falência de todo fetichismo: atrás de uma bunda há uma vida e a vida provoca ,excita, afeta... Há uma geografia e uma história...
O amor rompe os fetichismos... Pede mais. Quer vínculo, relação, cumplicidade, afetividade, ternura, con-vivência e doação.
Todavia, fica algumas questões...
O pé, a cinta, a roupa de pocial ou enfeimeira etc... persistem, contudo, não podemos deixar de questionar se não alimentamos hoje outros fetiches: o corpo moldado, magro e musculoso; os padrões... a moda... tudo isso não pentrou o universo do fetichismo?
A posibilidade de felicidade amorosa-sexual quando o valor máximo permanece nas trocas, no Capital... O que pode um corpo, e amamos e fazemos sexo com o corpo, quando ele persiste valendo o que possui e não que é... e que poderia devir na magia do encontro?
O mundo efetua uma ode ao fetiche... e nós consumismos os fetiches no mercado, longe dos desvãos da alegria.
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2 comentários:
Excelente a tua análise. Depois eu a levarei para o meu blog, afim de divulgá-la. Parabéns, Jorge, pela tua visão de mundo, pelo teu senso crítico, pela propriedade com que empregas cada uma das palavras no texto. Beijos
Tânia, fico feliz, esperava a primeira reação.O tema é oportuno; porém, eu não gosto muito do filme e os estudantes me convidaram para pensar o assunto mediado pelo filme.
Abraços com carinho e gratidão pela beleza da sua amizade; Jorge
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