Dom Pedro Casaldáliga e José María Vigil
Artigo de Dom Pedro Casaldáliga e do teólogo José María Vigil, publicado no sítio Religión Digital, 19-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Já sabemos que a Solidariedade está em crise. Falar de crise de solidariedade poderá parecer um lugar comum, mas se trata de uma forte verdade que, de um lado ou de outro, afeta a todos nós: aos que deveriam dar solidariedade e aos que precisam recebê-la. Ou, melhor dito, a todos os que precisam recebê-la e dá-la, porque a solidariedade é um mistério de reciprocidade fraterna inevitável.
Dados dessa crise não faltam. Referimo-nos principalmente à solidariedade com a América Latina. Dos milhares de comitês de solidariedade que chegou a haver, em todo o mundo, com a Nicarágua, por exemplo, a maior parte deles desapareceu. E é curioso observar que, na Espanha, concretamente, desapareceram os chamados comitês "políticos" e permanecem os "cristãos". Pelo bem da verdade, é justo reconhecer que alguns dos primeiros se fundiram com outros organismos mais universais de solidariedade.
No entanto, permanece de pé a observação de Enrique Dussel: talvez, em certas horas de decepção histórica, quando a esperança "científica" foi derrotada pelos fatos, permanece, na noite da fé, além das certezas científicas, a esperança contra toda esperança dos cristãos. O que não significa que essa crise não afeta profundamente também os cristãos e cristãs, sobretudo quando eles também dão o seu devido valor à história e à ciência.
Começar por essa constatação da crise da solidariedade não é negativismo. Trata-se de uma crise de crescimento em última instância. Sempre que se lembre e se assuma responsavelmente o que, de fato, é a solidariedade à luz da fé.
A solidariedade é uma forma plena da caridade de sempre, mas com vivência crítica, histórica, política, geopolítica, de espiritualidade integrada. A solidariedade é a caridade potencializada pela opção pelos pobres. A solidariedade passa, logicamente, pela mesma crise que a opção pelos pobres está passando no coração de muitos e em muitos setores da Igreja.
A opção para os pobres entrou em sua noite escura
Muitos estão se perguntando "o que fica da opção pelos pobres". Entendida como a opção pelas Causas dos pobres, e não somente pelos seus sofrimentos ou sua marginalização.
Os motivos dessa crise maior da opção pelos pobres e, consequentemente, da solidariedade para com eles, são muitos, estrondosos, totais.
- O colapso do Leste Europeu e a queda do socialismo real. O fracasso de algumas revoluções populares. O suposto triunfo do novo império do liberalismo e da hegemonia absoluta do mercado.
- Porque não se "vê" um projeto histórico dos pobres, alternativo, que seja viável neste momento globalizado da política e da economia. Hoje, a opção pelos pobres deve ser feita mais à contramão, sem o respaldo sensível de um organograma que o respalde, sem a força manejável de uma esperança mecanicista que lhe dê credibilidade de faticidade histórica próxima. A opção pelos pobres e por suas Causas, nesta hora noturna, deve ser feita como no ar de fé, como no vento da utopia.
Falando na linguagem cristã, isso não é novidade, mas sim a verdade de sempre. Nossa "esperança contra toda esperança" é uma esperança contra toda aparência, a fé contra toda evidência, o amor contra toda impossibilidade. Ou seja: a opção pelos pobres e a solidariedade com eles deve ser hoje mais teologal do que nunca.
- A pós-modernidade, que, em certa medida, é o cansaço da modernidade ou sua autodecepção, proclama a renúncia aos "grandes relatos" e ao sonambulismo das "Grandes Causas", porque acredita que são inviáveis ou inúteis, e porque opta sistematicamente pelo pragmatismo palpável e pelo consumismo diário.
- A hora psicológica – convergência de todos esses fatores – é de um certo esgotamento ou depressão, de um cansaço de fim de dia, de alergia àquilo que tanto nos fez sofrer e pelo fato de que tantos e tantas, companheiros de caminho, deram tudo, até a vida. De decepção também, porque muitos, companheiros igualmente, falharam conosco. Passado o sopro forte das bandeiras no alto, são muitos e muitas aqueles que se acomodaram ao ritmo do oportunismo ou da segurança.
Hoje, falar de análise social, de conjuntura sócio-política, de crítica racional, de avaliação ética, de juízo teológico, além da prepotência e da evidência do sistema, é uma daquelas "linguagens duras" que aqueles que não estavam muito decididos a seguir Jesus de Nazaré atribuíam a ele (cf. Jo 6, 60).
Não é preciso comungar com rodas de moinho
Com frequência, deixamo-nos abater porque engrandecemos o negativo e comungamos gregariamente com as rodas de moinho que todo o mundo engole nesta hora de queda do "socialismo" e da euforia neoliberal. Também nós podemos acabar reconhecendo, mais ou menos irrefletidamente, que "a história já não vai além".
A fé é essa luz que brilha em um local tenebroso, como dizia o apóstolo Pedro (cf. 2Pe 1, 19). E é preciso usá-la para iluminar criticamente as trevas da história, a mentira do poder e o fascínio dos ídolos.
- Impõe-se uma melhor análise "do que aconteceu", seja no socialismo real (ou "nominal") do Leste, seja em nossas revoluções latino-americanas, seja no "triunfo" do neoliberalismo. Muitas pessoas, mesmo as que há pouco tempo eram críticas do projeto capitalista e da dominação imperialista, agora – introjetando a visão do opressor – aceita as versões que o capital e o Império dão "daquilo que aconteceu": o que aconteceu – pensam – é que o projeto dos pobres – seja qual for o seu nome ou a sua modalidade – entrou em colapso por si mesmo, internamente, porque era e é e será sempre um projeto inviável; na história só está a salvo o projeto dos ricos .
A Guerra Fria e, no nosso caso, a guerra de baixa (alta) intensidade, realizada pela potência mais agressiva da terra; as condenações internacionais, inclusive pelo Corte de Haia; a violação dos direitos dos Povos que as invasões da República Dominicana, Granada, Panamá supõem; a crescente dívida externa que nos impossibilita toda saída ao sol da normalidade, tudo isso ou não existiu, pelo que parece, ou já não existe. Tudo foi simplesmente o autocolapso interno do projeto "impossível" dos pobres.
- Impõe-se também uma rejeição crítica do suposto "triunfo" do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em nenhum lugar esse triunfo, se nos referimos à imensa maioria da humanidade. Com o acréscimo de que o próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si mesmo diante de suas contradições internas. Mas é que, mesmo que tivesse ocorrido esse triunfo do egoísmo estrutural, seria um fracasso ético da família humana, pois estaria se evidenciando, mais uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas; ter-se-ia imposto, outra vez, como única possibilidade, a "ética dos lobos".
- É preciso saber rejeitar as falsas certezas que estão sendo introjetadas quase inconscientemente em nós pela hegemonia do poder em alta. Nossa "década perdida", por exemplo, de fato tem sido para eles a década mais bem ganha. Wall Street tem os dados convincentes: essa foi a década de maiores receitas sustentadas no banco mundial.
- Não podemos acreditar no deus da guerra, aquele Deus que sempre vence, aquele que esmaga o outro, que está sempre do lado dos vencedores. Na própria Bíblia, Deus foi "corrigindo Deus". O Senhor dos exércitos, o abençoador dos grandes rebanhos e das colheitas plenas, foi se tornando cada vez mais o "go'el" dos injustiçados e a mãe das entranhas de misericórdia, até se fazer o Deus pobre, menino, marginalizado e perseguido, crucificado e derrotado em Jesus de Nazaré.
- Também não podemos perder nunca a memória histórica, fundamento da identidade de um povo e autoconsciência de sua viabilidade futura. Os triunfos e as queda dos sucessivos impérios fazem parte da roda da história da humanidade. Hoje, estamos vivendo simplesmente uma nova hora de um nobo império, uma a mais apenas. Aqui, em casa, a história dos 500 anos, sobre os povos indígenas e sobre o povo negro em particular pode nos iluminar oportunamente. Hoje, esses povos estão começando a forjar uns "outros" 500 anos, muito diferentes, do seu lado.
- Não é verdade que "qualquer tempo passado foi melhor". Nem o passado remoto nem o passado imediato. Em primeiro lugar, porque o melhor tempo para cada um de nós é o tempo que Deus nos concede para forjar a nossa vida. Os cristãos e cristãs, principalmente, devem viver sempre para o hoje de Deus em nosso hoje humano. Alguém inclusive classificou toda a Bíblia como "um tempo chamado hoje".
- A prepotência do mal aparece mais facilmente do que a força oculta das sementes do bem. Há muito mais vitalidade alternativa do que parece, na Sociedade e na Igreja, no nosso Terceiro Mundo e no Primeiro Mundo também. São muitas as vozes e as forças que estão se conjugando, em contestação, em profecia, em solidariedade. O fato de que nos sintamos sob a noite não significa que não haja muitas estrelas e que um novo sol está às portas do amanhecer. Hoje, certamente, a consciência, a autocrítica, a vontade de mudança são mais generalizados no mundo porque são mais realistas e estão mais interconectados. Além da CNN, ou da Televisa ou da Globo, há muitos outros canais, graças a Deus.
Nosso Deus é solidariedade
Sempre, mas hoje mais do que nunca, devemos fundamentar teológica e teologalmente a nossa solidariedade. Só com esta fundamentação ela poderá ser plenamente solidariedade cristã e vencer serenamente as vicissitudes da história ou do próprio coração.
Deus em si mesmo, no seu mistério original, é a plena solidariedade de três pessoas em uma mesma vida total. Como as comunidades eclesiais de base no Brasil dizem que "a Santíssima Trindade é a melhor comunidade", nós podemos dizer que "a Santíssima Trindade é a maior solidariedade".
O mistério da Encarnação é a expressão máxima, histórica, submetida a nossas vicissitudes, da solidariedade de Deus com a humanidade. Jesus é a solidariedade de Deus feita carne e sangue, vida e morte, paixão e ressurreição. Nele e por Ele, sabemos como Deus é amor solidário.
Nós não temos muitos mandamentos. Temos apenas um: "Amem-se uns aos outros como eu os amei". O mandamento novo do amor novo se traduz na prática diária e na vivência social e na organização política e econômica da sociedade, por meio da solidariedade efetiva: desinteressada e eficaz. Com todos, mas mais especificamente e acima de tudo e sempre, com esses irmãos e irmãs "menores", como o próprio Jesus nos pediu. No Antigo Testamento, Deus perguntava: onde está o teu irmão? No Novo Testamento, Deus pergunta, mais incisivo: onde está o teu irmão pequeno? Ainda mais, Deus se faz irmão dos irmãos menores.
Nossa fé passa sempre, necessariamente, pela cruz. Nossa solidariedade, também. Diante dessas decepções a que fizemos alusão antes, diante de qualquer gênero de fracasso, a solidariedade cristã apela confiadamente à esperança da ressurreição. Nenhuma vida morre para sempre. A solidariedade que se dá totalmente sempre é um gesto, uma celebração, um "sacramento pascal".
O Reino é a sociedade da solidariedade. Semente escondida, rede de arrasto, tesouro desconhecido para muitos, mas projeto de Deus: sua Causa. A Causa da Solidariedade total. No tempo e para além dele. A solidariedade já vai sendo, na esperança escatológica e na caridade política, o "para além da história".
Caminhante, sim, há caminho
Devemos ser realistas. Conhecer a realidade, responsabilizar-se dela, carregá-la. Isso é o que nos pede o teólogo mártir Ellacuría. Chamar sempre para a realidade mutante pelo seu próprio nome. Abandonar a nostalgia do passado que não vai voltar. Nós não vamos "em busca do tempo perdido." Outra é a nossa memória e a consciência responsável da luta ou do sangue que herdamos.
Pisemos o solo real do neoliberalismo, busquemos suas brechas. Temos que encontrar criativamente os estímulos de luta que pode haver, que há, na nova realidade neoliberal (com certas áreas de liberdade); só formalmente democrática (mas com alguma democracia, no final); supostamente de mercado livre (onde, de fato, como transitam as mercadorias, se transmitem também as ideias e as causas); de mundialização niveladora (mas também a mundialização de intercâmbios fraternos e de comunhão humana).
Sem ter nojo de assuntos que, há alguns anos poderiam nos parecer pequeno-burgueses, devemos entrar nesse combate. Um modo também eficaz de combater o neoliberalismo é combatê-lo – sem se contaminar – e seu próprio campo.
Esse realismo nos exige uma nova fidelidade à solidariedade, que poderia se caracterizar como a prática da solidariedade:
- de noite escura, aparentemente sem saída, no exercício tenso da fé;
- gratuita, sem "eficacionismos", sem compensações; a fidelidade dos que apontam para a marcha dos vencidos e não para o carro dos vencedores;
- sempre profética, porque continua acreditando no Deus que ouve o clamor do seu Povo e desce para libertá-lo, e consola os seus pobres e proclama como vitória a bem-aventurança dos marginalizados;
- que faz da opção pelos pobres "a" opção evangélica, "firme e irrevogável", segundo as palavras de João Paulo II em Santo Domingo;
- que não perde de vista a possibilidade das surpresas, o inesperado das conjunturas;
- que responde como um eco à fidelidade extrema dos nossos muitos mártires, eles e elas. A Igreja só é fiel quando acompanha radicalmente a Testemunha Fiel, Jesus, e suas outras muitas testemunhas fiéis testemunhas que o seguiram;
- que sabe aprender com o afinco daqueles e daquelas que mantiveram sua fidelidade ao longo dos séculos a causas derrotadas historicamente: a Causa indígena, a Causa Negra, a Causa da Mulher, a Causa Operária, a Causa dos Povos menores...
Esse realismo exige também que busquemos e encontremos novas formas de solidariedade, mais atuais e eficazes hoje, germinadoras de futuro:
- mundializemo-nos; pela comunhão universal sempre, em primeiro lugar, e pela comunicação, cada vez mais universal e mais rápida. Como existe uma guerra de morte do Norte contra o Sul, deve haver uma aliança de vida entre o Sul e o Norte. Além de que nem tudo o que existe no Norte é esse Norte de Morte.
- façamos da sociedade civil e de suas várias estruturas e mobilizações o grande espaço de solidariedade. A sociedade é hoje uma reivindicação universal. A maioria dos nossos respectivos concidadãos quer, à sua maneira, participar. Facilitemos sua participação solidária.
Ela deve continuar sendo uma "quinta coluna" dentro do âmbito capitalismo neoliberal e forçar a partir de dentro a evidência de sua perversidade, de suas contradições, de seu não-futuro para a humanidade.
No entanto, hoje e sempre, devemos cultivar a forma de solidariedade permanente, necessária, do pequeno, que se reproduz, que pode acabar fazendo com que o grande germine. Com muitas pequenas "ondas comuns" pode-se chegar a fazer uma grande mesa socializada.
Preparemos o futuro, o substituto que irá pegar a tocha. A rebeldia insatisfeita e a inesgotável generosidade da juventude nos esperam. Hoje, o mundo é mais solidário do que ontem. Amanhã vai ser mais do que hoje. O amanhã se chama solidariedade.
Às vezes teremos que saber enriquecer a nossa linguagem, para falar sem maniqueísmos de opressão-libertação; ou o tom, quando a análise pode parecer excessivamente racional ou pessimista; ou a disposição, cultivando a confiança em nós mesmos e nos demais e jogando a pimenta do bom humor sobre o mau humor da morte imposta; ou a perspectiva, sempre, porque a Humanidade não é suicida, e o Reino é maior do que a Igreja, e nosso Deus é o Deus da vida, e o nosso – como o Seu – é, decididamente, o Reino.
Vamos aprendendo. A tomada do poder será, cada vez mais, pelas armas da consciência comunitária, participante, alternativa. E, do mesmo modo, as maiores derrotas serão as derrotas éticas, da consciência, da solidariedade, do amor. A rebelião mais recentes do Continente, a dos zapatistas de Chiapas, ainda balbuciante como um grito, já está nos ensinando outro modo de se rebelar, com perspectivas maiores e penetrando nos diferentes setores da sociedade; sem canonizar as armas; canonizando só as Causas.
Detalhe: aí estão as jornadas de solidariedade; as datas memoráveis; as publicações; as visitas que vem e que vão; as outras entidades – cristãs ou não, mas comprometidas com alguma das grandes Causas –; as ajudas concretas também – campanhas, autoimposto, remessas de medicamentos ou de alimentos ou de roupa –; as vigílias; as ações artísticas; a militância diária pessoal, que conscientiza na família, no trabalho, na comunidade.
Terminamos, para não terminar e continuar caminhando juntos, com um soneto neobíblico que, no meio da noite dos pobres, pode nos ajudar a lembrar por onde o dia vem e Quem tem a última palavra. Um dos versos deste soneto diz que "a noite dos pobres está em vigília". Todos os pobres "com espírito" e todos os que querem ser solidários com os pobres, devem entrar plenamente nessa ardente vigília pascal.
Fonte: UNISINOS
Já sabemos que a Solidariedade está em crise. Falar de crise de solidariedade poderá parecer um lugar comum, mas se trata de uma forte verdade que, de um lado ou de outro, afeta a todos nós: aos que deveriam dar solidariedade e aos que precisam recebê-la. Ou, melhor dito, a todos os que precisam recebê-la e dá-la, porque a solidariedade é um mistério de reciprocidade fraterna inevitável.
Dados dessa crise não faltam. Referimo-nos principalmente à solidariedade com a América Latina. Dos milhares de comitês de solidariedade que chegou a haver, em todo o mundo, com a Nicarágua, por exemplo, a maior parte deles desapareceu. E é curioso observar que, na Espanha, concretamente, desapareceram os chamados comitês "políticos" e permanecem os "cristãos". Pelo bem da verdade, é justo reconhecer que alguns dos primeiros se fundiram com outros organismos mais universais de solidariedade.
No entanto, permanece de pé a observação de Enrique Dussel: talvez, em certas horas de decepção histórica, quando a esperança "científica" foi derrotada pelos fatos, permanece, na noite da fé, além das certezas científicas, a esperança contra toda esperança dos cristãos. O que não significa que essa crise não afeta profundamente também os cristãos e cristãs, sobretudo quando eles também dão o seu devido valor à história e à ciência.
Começar por essa constatação da crise da solidariedade não é negativismo. Trata-se de uma crise de crescimento em última instância. Sempre que se lembre e se assuma responsavelmente o que, de fato, é a solidariedade à luz da fé.
A solidariedade é uma forma plena da caridade de sempre, mas com vivência crítica, histórica, política, geopolítica, de espiritualidade integrada. A solidariedade é a caridade potencializada pela opção pelos pobres. A solidariedade passa, logicamente, pela mesma crise que a opção pelos pobres está passando no coração de muitos e em muitos setores da Igreja.
A opção para os pobres entrou em sua noite escura
Muitos estão se perguntando "o que fica da opção pelos pobres". Entendida como a opção pelas Causas dos pobres, e não somente pelos seus sofrimentos ou sua marginalização.
Os motivos dessa crise maior da opção pelos pobres e, consequentemente, da solidariedade para com eles, são muitos, estrondosos, totais.
- O colapso do Leste Europeu e a queda do socialismo real. O fracasso de algumas revoluções populares. O suposto triunfo do novo império do liberalismo e da hegemonia absoluta do mercado.
- Porque não se "vê" um projeto histórico dos pobres, alternativo, que seja viável neste momento globalizado da política e da economia. Hoje, a opção pelos pobres deve ser feita mais à contramão, sem o respaldo sensível de um organograma que o respalde, sem a força manejável de uma esperança mecanicista que lhe dê credibilidade de faticidade histórica próxima. A opção pelos pobres e por suas Causas, nesta hora noturna, deve ser feita como no ar de fé, como no vento da utopia.
Falando na linguagem cristã, isso não é novidade, mas sim a verdade de sempre. Nossa "esperança contra toda esperança" é uma esperança contra toda aparência, a fé contra toda evidência, o amor contra toda impossibilidade. Ou seja: a opção pelos pobres e a solidariedade com eles deve ser hoje mais teologal do que nunca.
- A pós-modernidade, que, em certa medida, é o cansaço da modernidade ou sua autodecepção, proclama a renúncia aos "grandes relatos" e ao sonambulismo das "Grandes Causas", porque acredita que são inviáveis ou inúteis, e porque opta sistematicamente pelo pragmatismo palpável e pelo consumismo diário.
- A hora psicológica – convergência de todos esses fatores – é de um certo esgotamento ou depressão, de um cansaço de fim de dia, de alergia àquilo que tanto nos fez sofrer e pelo fato de que tantos e tantas, companheiros de caminho, deram tudo, até a vida. De decepção também, porque muitos, companheiros igualmente, falharam conosco. Passado o sopro forte das bandeiras no alto, são muitos e muitas aqueles que se acomodaram ao ritmo do oportunismo ou da segurança.
Hoje, falar de análise social, de conjuntura sócio-política, de crítica racional, de avaliação ética, de juízo teológico, além da prepotência e da evidência do sistema, é uma daquelas "linguagens duras" que aqueles que não estavam muito decididos a seguir Jesus de Nazaré atribuíam a ele (cf. Jo 6, 60).
Não é preciso comungar com rodas de moinho
Com frequência, deixamo-nos abater porque engrandecemos o negativo e comungamos gregariamente com as rodas de moinho que todo o mundo engole nesta hora de queda do "socialismo" e da euforia neoliberal. Também nós podemos acabar reconhecendo, mais ou menos irrefletidamente, que "a história já não vai além".
A fé é essa luz que brilha em um local tenebroso, como dizia o apóstolo Pedro (cf. 2Pe 1, 19). E é preciso usá-la para iluminar criticamente as trevas da história, a mentira do poder e o fascínio dos ídolos.
- Impõe-se uma melhor análise "do que aconteceu", seja no socialismo real (ou "nominal") do Leste, seja em nossas revoluções latino-americanas, seja no "triunfo" do neoliberalismo. Muitas pessoas, mesmo as que há pouco tempo eram críticas do projeto capitalista e da dominação imperialista, agora – introjetando a visão do opressor – aceita as versões que o capital e o Império dão "daquilo que aconteceu": o que aconteceu – pensam – é que o projeto dos pobres – seja qual for o seu nome ou a sua modalidade – entrou em colapso por si mesmo, internamente, porque era e é e será sempre um projeto inviável; na história só está a salvo o projeto dos ricos .
A Guerra Fria e, no nosso caso, a guerra de baixa (alta) intensidade, realizada pela potência mais agressiva da terra; as condenações internacionais, inclusive pelo Corte de Haia; a violação dos direitos dos Povos que as invasões da República Dominicana, Granada, Panamá supõem; a crescente dívida externa que nos impossibilita toda saída ao sol da normalidade, tudo isso ou não existiu, pelo que parece, ou já não existe. Tudo foi simplesmente o autocolapso interno do projeto "impossível" dos pobres.
- Impõe-se também uma rejeição crítica do suposto "triunfo" do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em nenhum lugar esse triunfo, se nos referimos à imensa maioria da humanidade. Com o acréscimo de que o próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si mesmo diante de suas contradições internas. Mas é que, mesmo que tivesse ocorrido esse triunfo do egoísmo estrutural, seria um fracasso ético da família humana, pois estaria se evidenciando, mais uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas; ter-se-ia imposto, outra vez, como única possibilidade, a "ética dos lobos".
- É preciso saber rejeitar as falsas certezas que estão sendo introjetadas quase inconscientemente em nós pela hegemonia do poder em alta. Nossa "década perdida", por exemplo, de fato tem sido para eles a década mais bem ganha. Wall Street tem os dados convincentes: essa foi a década de maiores receitas sustentadas no banco mundial.
- Não podemos acreditar no deus da guerra, aquele Deus que sempre vence, aquele que esmaga o outro, que está sempre do lado dos vencedores. Na própria Bíblia, Deus foi "corrigindo Deus". O Senhor dos exércitos, o abençoador dos grandes rebanhos e das colheitas plenas, foi se tornando cada vez mais o "go'el" dos injustiçados e a mãe das entranhas de misericórdia, até se fazer o Deus pobre, menino, marginalizado e perseguido, crucificado e derrotado em Jesus de Nazaré.
- Também não podemos perder nunca a memória histórica, fundamento da identidade de um povo e autoconsciência de sua viabilidade futura. Os triunfos e as queda dos sucessivos impérios fazem parte da roda da história da humanidade. Hoje, estamos vivendo simplesmente uma nova hora de um nobo império, uma a mais apenas. Aqui, em casa, a história dos 500 anos, sobre os povos indígenas e sobre o povo negro em particular pode nos iluminar oportunamente. Hoje, esses povos estão começando a forjar uns "outros" 500 anos, muito diferentes, do seu lado.
- Não é verdade que "qualquer tempo passado foi melhor". Nem o passado remoto nem o passado imediato. Em primeiro lugar, porque o melhor tempo para cada um de nós é o tempo que Deus nos concede para forjar a nossa vida. Os cristãos e cristãs, principalmente, devem viver sempre para o hoje de Deus em nosso hoje humano. Alguém inclusive classificou toda a Bíblia como "um tempo chamado hoje".
- A prepotência do mal aparece mais facilmente do que a força oculta das sementes do bem. Há muito mais vitalidade alternativa do que parece, na Sociedade e na Igreja, no nosso Terceiro Mundo e no Primeiro Mundo também. São muitas as vozes e as forças que estão se conjugando, em contestação, em profecia, em solidariedade. O fato de que nos sintamos sob a noite não significa que não haja muitas estrelas e que um novo sol está às portas do amanhecer. Hoje, certamente, a consciência, a autocrítica, a vontade de mudança são mais generalizados no mundo porque são mais realistas e estão mais interconectados. Além da CNN, ou da Televisa ou da Globo, há muitos outros canais, graças a Deus.
Nosso Deus é solidariedade
Sempre, mas hoje mais do que nunca, devemos fundamentar teológica e teologalmente a nossa solidariedade. Só com esta fundamentação ela poderá ser plenamente solidariedade cristã e vencer serenamente as vicissitudes da história ou do próprio coração.
Deus em si mesmo, no seu mistério original, é a plena solidariedade de três pessoas em uma mesma vida total. Como as comunidades eclesiais de base no Brasil dizem que "a Santíssima Trindade é a melhor comunidade", nós podemos dizer que "a Santíssima Trindade é a maior solidariedade".
O mistério da Encarnação é a expressão máxima, histórica, submetida a nossas vicissitudes, da solidariedade de Deus com a humanidade. Jesus é a solidariedade de Deus feita carne e sangue, vida e morte, paixão e ressurreição. Nele e por Ele, sabemos como Deus é amor solidário.
Nós não temos muitos mandamentos. Temos apenas um: "Amem-se uns aos outros como eu os amei". O mandamento novo do amor novo se traduz na prática diária e na vivência social e na organização política e econômica da sociedade, por meio da solidariedade efetiva: desinteressada e eficaz. Com todos, mas mais especificamente e acima de tudo e sempre, com esses irmãos e irmãs "menores", como o próprio Jesus nos pediu. No Antigo Testamento, Deus perguntava: onde está o teu irmão? No Novo Testamento, Deus pergunta, mais incisivo: onde está o teu irmão pequeno? Ainda mais, Deus se faz irmão dos irmãos menores.
Nossa fé passa sempre, necessariamente, pela cruz. Nossa solidariedade, também. Diante dessas decepções a que fizemos alusão antes, diante de qualquer gênero de fracasso, a solidariedade cristã apela confiadamente à esperança da ressurreição. Nenhuma vida morre para sempre. A solidariedade que se dá totalmente sempre é um gesto, uma celebração, um "sacramento pascal".
O Reino é a sociedade da solidariedade. Semente escondida, rede de arrasto, tesouro desconhecido para muitos, mas projeto de Deus: sua Causa. A Causa da Solidariedade total. No tempo e para além dele. A solidariedade já vai sendo, na esperança escatológica e na caridade política, o "para além da história".
Caminhante, sim, há caminho
Devemos ser realistas. Conhecer a realidade, responsabilizar-se dela, carregá-la. Isso é o que nos pede o teólogo mártir Ellacuría. Chamar sempre para a realidade mutante pelo seu próprio nome. Abandonar a nostalgia do passado que não vai voltar. Nós não vamos "em busca do tempo perdido." Outra é a nossa memória e a consciência responsável da luta ou do sangue que herdamos.
Pisemos o solo real do neoliberalismo, busquemos suas brechas. Temos que encontrar criativamente os estímulos de luta que pode haver, que há, na nova realidade neoliberal (com certas áreas de liberdade); só formalmente democrática (mas com alguma democracia, no final); supostamente de mercado livre (onde, de fato, como transitam as mercadorias, se transmitem também as ideias e as causas); de mundialização niveladora (mas também a mundialização de intercâmbios fraternos e de comunhão humana).
Sem ter nojo de assuntos que, há alguns anos poderiam nos parecer pequeno-burgueses, devemos entrar nesse combate. Um modo também eficaz de combater o neoliberalismo é combatê-lo – sem se contaminar – e seu próprio campo.
Esse realismo nos exige uma nova fidelidade à solidariedade, que poderia se caracterizar como a prática da solidariedade:
- de noite escura, aparentemente sem saída, no exercício tenso da fé;
- gratuita, sem "eficacionismos", sem compensações; a fidelidade dos que apontam para a marcha dos vencidos e não para o carro dos vencedores;
- sempre profética, porque continua acreditando no Deus que ouve o clamor do seu Povo e desce para libertá-lo, e consola os seus pobres e proclama como vitória a bem-aventurança dos marginalizados;
- que faz da opção pelos pobres "a" opção evangélica, "firme e irrevogável", segundo as palavras de João Paulo II em Santo Domingo;
- que não perde de vista a possibilidade das surpresas, o inesperado das conjunturas;
- que responde como um eco à fidelidade extrema dos nossos muitos mártires, eles e elas. A Igreja só é fiel quando acompanha radicalmente a Testemunha Fiel, Jesus, e suas outras muitas testemunhas fiéis testemunhas que o seguiram;
- que sabe aprender com o afinco daqueles e daquelas que mantiveram sua fidelidade ao longo dos séculos a causas derrotadas historicamente: a Causa indígena, a Causa Negra, a Causa da Mulher, a Causa Operária, a Causa dos Povos menores...
Esse realismo exige também que busquemos e encontremos novas formas de solidariedade, mais atuais e eficazes hoje, germinadoras de futuro:
- mundializemo-nos; pela comunhão universal sempre, em primeiro lugar, e pela comunicação, cada vez mais universal e mais rápida. Como existe uma guerra de morte do Norte contra o Sul, deve haver uma aliança de vida entre o Sul e o Norte. Além de que nem tudo o que existe no Norte é esse Norte de Morte.
- façamos da sociedade civil e de suas várias estruturas e mobilizações o grande espaço de solidariedade. A sociedade é hoje uma reivindicação universal. A maioria dos nossos respectivos concidadãos quer, à sua maneira, participar. Facilitemos sua participação solidária.
Ela deve continuar sendo uma "quinta coluna" dentro do âmbito capitalismo neoliberal e forçar a partir de dentro a evidência de sua perversidade, de suas contradições, de seu não-futuro para a humanidade.
No entanto, hoje e sempre, devemos cultivar a forma de solidariedade permanente, necessária, do pequeno, que se reproduz, que pode acabar fazendo com que o grande germine. Com muitas pequenas "ondas comuns" pode-se chegar a fazer uma grande mesa socializada.
Preparemos o futuro, o substituto que irá pegar a tocha. A rebeldia insatisfeita e a inesgotável generosidade da juventude nos esperam. Hoje, o mundo é mais solidário do que ontem. Amanhã vai ser mais do que hoje. O amanhã se chama solidariedade.
Às vezes teremos que saber enriquecer a nossa linguagem, para falar sem maniqueísmos de opressão-libertação; ou o tom, quando a análise pode parecer excessivamente racional ou pessimista; ou a disposição, cultivando a confiança em nós mesmos e nos demais e jogando a pimenta do bom humor sobre o mau humor da morte imposta; ou a perspectiva, sempre, porque a Humanidade não é suicida, e o Reino é maior do que a Igreja, e nosso Deus é o Deus da vida, e o nosso – como o Seu – é, decididamente, o Reino.
Vamos aprendendo. A tomada do poder será, cada vez mais, pelas armas da consciência comunitária, participante, alternativa. E, do mesmo modo, as maiores derrotas serão as derrotas éticas, da consciência, da solidariedade, do amor. A rebelião mais recentes do Continente, a dos zapatistas de Chiapas, ainda balbuciante como um grito, já está nos ensinando outro modo de se rebelar, com perspectivas maiores e penetrando nos diferentes setores da sociedade; sem canonizar as armas; canonizando só as Causas.
Detalhe: aí estão as jornadas de solidariedade; as datas memoráveis; as publicações; as visitas que vem e que vão; as outras entidades – cristãs ou não, mas comprometidas com alguma das grandes Causas –; as ajudas concretas também – campanhas, autoimposto, remessas de medicamentos ou de alimentos ou de roupa –; as vigílias; as ações artísticas; a militância diária pessoal, que conscientiza na família, no trabalho, na comunidade.
Terminamos, para não terminar e continuar caminhando juntos, com um soneto neobíblico que, no meio da noite dos pobres, pode nos ajudar a lembrar por onde o dia vem e Quem tem a última palavra. Um dos versos deste soneto diz que "a noite dos pobres está em vigília". Todos os pobres "com espírito" e todos os que querem ser solidários com os pobres, devem entrar plenamente nessa ardente vigília pascal.
Só uma flor guarda o entorno da guarita, livres os terrenos baldios.
Tarda a chuva, mas no calor já estala a nossa sede de redimidos.
Para que Deus se veja Deus agora,
é preciso ir fazendo o Reino, a contramão
de qualquer outro reino;
e é a hora de que este mundo lobo seja humano.
Que aconteceu com o latifúndio, sentinela?
O que há de esperança, companheiros?
A noite dos pobres está em vigília,
e o Dono da terra decretou que se abram os sulcos e silos porque o eón do lucro já passou.
Tarda a chuva, mas no calor já estala a nossa sede de redimidos.
Para que Deus se veja Deus agora,
é preciso ir fazendo o Reino, a contramão
de qualquer outro reino;
e é a hora de que este mundo lobo seja humano.
Que aconteceu com o latifúndio, sentinela?
O que há de esperança, companheiros?
A noite dos pobres está em vigília,
e o Dono da terra decretou que se abram os sulcos e silos porque o eón do lucro já passou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário