domingo, 18 de dezembro de 2011

BONS ENCONTROS: RETRATANDO A VIDA; DRUMMOND

Depois do jantar
  • Carlos Drummond de Andrade



Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.

O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.


— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?


— Não fumo, respondeu o outro.


Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:


— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.


— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.


— Como?


— Já disse. Vai passando o relógio.


— Mas ...


— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.


— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.


O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.


— Agora posso continuar?


— Continuar o quê?


— O passeio. Eu estava passeando, não viu?


— Vi, sim. Espera um pouco.


— Esperar o quê?


— Passa a carteira.


— Mas...


— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?


— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...


— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?


— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.


— Diga.


— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.


— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?


— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?


— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?


— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.


— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.


— Não precisa, não precisa.


— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.


— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.


— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?


— Claro.


— Você, o assaltado. Certo?


— Confere.


— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.


— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.


— Tá bom, não se discute.


— Vamos, procure nos... nos escaninhos.


— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.


— Deixe ao menos tirar os documentos?


— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.


—  Nem uma de quinhentos? Uma só.


—  Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.


—  Nem eu ia aceitar dinheiro de você.


— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.


Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.


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