Autora: Maria Rita Kehl
Resenhado por Marion Minerbo
Este é mais um livro de Maria Rita Kehl em que reconheço, além de um estilo pessoal, a Psicanálise usada como instrumento de luta política pautada por uma ética – a da desalienação do sujeito; e isso em dois níveis que se imbricam mutuamente: o social e o individual. Nesse sentido, sua produção caracteriza uma obra. Esta obra, cujo leitor não é apenas o psicanalista, mas todos aqueles que se interessam pelas humanidades, marca, de maneira singular, sua inserção no campo da Psicanálise.
Isso não chega a surpreender, se consideramos sua biografia. Maria Rita não estudou psicanálise como alguém estuda para ser dentista, isto é, preparando-se para exercer um oficio como forma de ganhar a vida. Ela chega ao exercício clínico da psicanálise como consequência de, e em coerência com, seu engajamento ético/político como a intelectual que é. Nesse sentido, encontra em Lacan os instrumentos teóricos que lhe permitem lutar pela desalienação do sujeito – social e individual – com relação ao Outro. Em minha interpretação, a pulsão que move a obra de Maria Rita é a necessidade de oferecer ao leitor instrumentos para cair dessa posição subjetiva, abrindo mão da proteção imaginária oferecida pelo Outro.
Esses elementos podem ser reconhecidos, por exemplo, em seu estudo sobre o ressentimento. (Ressentimento, Casa do Psicólogo, 2004). O sujeito individual ou social atribuiu ao Outro o direito e a obrigação de zelar por sua felicidade, em lugar de assumir a responsabilidade por seu destino; em seguida, sentindo-se prejudicado, se ressente por esta não lhe ter sido dada. O ressentido se mantém ativamente nesta posição porque o ganho subjetivo é considerável: salva seu narcisismo, que poderia sair arranhado caso percebesse a covardia moral e a submissão que o levaram a ceder de seu desejo e de seu bem, sem ao menos lutar. Em lugar de se arrepender, acusa. Prefere ficar numa posição de dependência, porém protegida (ainda que prejudicado), a ser livre, mas desamparado.
Vejo o mesmo movimento pulsional subtendendo seu brilhante estudo sobre o feminino (Deslocamentos do Feminino, Imago, 2007). Resgata, no plano da história, da literatura e da teoria psicanalítica, indicadores da crise entre a mulher e as representações do feminino excessivamente restritivas que originaram o sofrimento histérico. Termina seu livro denunciando a tendência da teoria psicanalítica, ou de certo modo de conduzir as análises ainda hoje, de voltar a naturalizar o lugar do feminino, equiparando histeria e feminilidade – os recursos fálicos ainda são vistos como sintomas a serem curados. Mostra a ambivalência de Freud com relação às mulheres e ao feminino: “Freud ouviu a crise entre as mulheres e a feminilidade, e entendeu que a cura de suas histéricas equivalia a remetê-las de volta a esta mesma feminilidade da qual elas já se desajustavam, em função da multiplicidade de discursos e possibilidades de escolha surgidas na modernidade” (p. 265). Demonstra a impossibilidade teórica e prática da mulher renunciar às identificações com o pai, para ser apenas “feminina”. “Se existe uma cura para as mulheres, isto é, para o penisneid, ela passa pela (re)conquista daquilo que, sendo dos homens, não tem porque não ser das mulheres também. Não um pênis, mas uma ou algumas das infinitas faces do falo” (p. 267). Percebe-se o engajamento da psicanalista na luta para ampliar as possibilidades de cura para o sofrimento feminino.
No livro Sobre Ética e Psicanálise (Companhia das Letras, 2002), embora não seja o tema central, encontramos o embrião de seu livro mais recente, O Tempo e o cão, a atualidade das depressões. Citando Roudinesco, diz que “o depressivo sofre de uma liberdade conquistada, porque não sabe desfrutá-la” (p. 80). Além disso, afirma que a liberdade traz consigo um tanto de sofrimento, que, na atualidade, tende a ser patologizado. A angústia não é vista como parte da condição humana e da luta para afirmação de um projeto próprio; o medo de sofrer e a recusa do conflito acabam por fechar as portas que o advento da modernidade lhe abre. “A depressão, sintoma do mal-estar neste começo de milênio, como a histeria, no final da era vitoriana, é ao mesmo tempo condição e conseqüência da recusa do sujeito em assumir a dimensão de conflito que lhe é própria” (p. 80). Entende-se: para ser autor de um discurso próprio não há como escapar do “encontro com os dispositivos capilares do poder” (p. 134). Como veremos em seguida, o depressivo é aquele que se esquivou desse encontro sem ao menos tentar lutar. Percebem-se as ressonâncias com o tema do ressentimento.
Em O Tempo e o Cão Maria Rita Kehl aprofunda o estudo da atualidade das depressões. Resgatando, inicialmente, a idéia pré-freudiana de melancolia, a autora mostra que esta figura dava um sentido e um lugar social reconhecido a certa dor de ser em culturas cujo ideal era vivido como impossível por certos sujeitos. O melancólico era um marginal, alguém que não se encaixava perfeitamente nos ideais da época, e que se recriminava por isso, sentindo-se indigno do amor do outro e de si mesmo. Mas ele era também alguém que resistia e que, a partir de um saber inconsciente, fazia a crítica dos ideais daquela cultura.
Depois de Freud, a melancolia se individualiza, passando a ser analisada apenas dentro da dinâmica dos investimentos objetais nas relações edipianas. Ela passa a designar o luto impossível pela perda de um objeto com o qual o ego mantém uma relação ambivalente e eminentemente narcísica. Mas não é esse o objeto de Maria Rita; tampouco o neurótico que se deprime. É a depressão enquanto posição subjetiva.
Assim, sem desconhecer a importância dos aportes freudianos, Kehl busca recuperar a melancolia pré-freudiana, agora com o nome de depressão, como expressão de um mal-estar existencial e como analisador da cultura. O sofrimento decorrente deste mal-estar, originalmente existencial, pode se cristalizar, fixando o sujeito numa posição patológica a partir da qual vai “ler” o mundo e reagir a essa leitura. A psiquiatria propõe a medicalização indiscriminada da depressão, entendendo-a como entidade nosológica. Em que pese a importância do tratamento medicamentoso para certos casos, Maria Rita sustenta que calar sistematicamente o sintoma equivale a enterrar, uma segunda vez, a possibilidade de o sujeito ter algum acesso às determinações inconscientes da posição que ocupa; ele perde a oportunidade de desalienar-se das injunções identificatórias do Outro.
Como se constrói a depressão enquanto posição subjetiva? A autora vê no excesso de presença do Outro, seja o materno, seja o social-cultural (o capitalismo global e a sociedade de consumo), um dos fatores que produz a demissão subjetiva. Por um lado, o Outro é intrusivo, oferece “coisas” ininterruptamente, impedindo/ocluindo o espaço/tempo em que o sujeito poderia construir fantasias, desejos, sonhos, capazes de preencher a falta. “A depressão decorre de um excesso de presença do Outro que torna claudicante a simbolização da ausência” (p. 223). Por outro lado, o Outro também faz demandas excessivas; capturado no projeto impossível de fazê-lo gozar, o sujeito acaba por desesperar – ele deixa de esperar, não tem mais esperança de vir, um dia, a realizar, ainda que parcialmente, o desejo próprio. Porém, ao contrário do que se observa em outras neuroses, em que o sujeito vive a castração como derrota, o depressivo a vive como vergonha, pois “sabe” que se esquivou da rivalidade fálica com o pai por covardia moral. “[...] ele se retirou do jogo sem nem ao menos tentar” (p. 201). Por isso, “não consegue fazer da castração condição do desejo” (p. 233).
Essas idéias me remeteram a uma paciente que, até se deprimir e buscar análise, seguira um roteiro predeterminado de estudos, no que se saíra brilhantemente. Terminada esta etapa, quando poderia colher os frutos de sua dedicação, ela se deprime. Nada mais fazia sentido; depois de tanto tempo, já não sabia o que queria. Deitada no quarto escuro, recusava-se a entrar na corrida em busca de títulos acadêmicos – tudo era vão – e pensava em suicídio. Em análise “aprende a falar” com um Outro que a escuta, que tolera e dá um sentido ao seu sofrimento. Na tentativa de abreviar o tempo da depressão, de modo a continuar se adequando ao tempo social – “preciso voltar logo para o trabalho” – faz tentativas frustras de “criar projetos” de “fora para dentro”. Naturalmente, não consegue sustentá-los. O que poderia ser um saber sobre a castração “passa do ponto”: “é tudo ilusão, nada vale a pena”. Sai da depressão apaixonando-se pela literatura, o que escuto como representação da transferência (na análise, como na literatura, há lugar para a subjetividade). Em uma sessão, cria a seguinte imagem: “eu queria estar presa na cadeia, assim ninguém poderia me pedir nada; eu ficaria com o tempo todo só para mim; poderia ler o dia inteiro”. Diante do Outro voraz, só mesmo as grades da prisão para se sentir livre.
Passando do plano individual para o social-cultural, a autora analisa as condições de subjetivação na modernidade e traz à luz injunções contraditórias do discurso do Outro que produzem a fadiga de viver. De um lado, o sujeito deve gozar sempre para fazer gozar o Outro. De outro, os discursos sobre o que faria o Outro gozar – os ideais a serem atingidos – estão de tal modo pulverizados que se torna complicado saber em que direção persegui-los. Nesse contexto, construir uma existência singular, a partir de um desejo próprio, se torna uma tarefa hercúlea. O fracasso se manifesta pelo colapso da capacidade imaginativa: no limite, nada mais é investido imaginariamente de valor fálico. “Uma pedra é apenas uma pedra”, como diria a poeta.
A idéia de fatalismo (“não adianta, não vou conseguir mudar nada”) noção desenvolvida por Benjamin, funciona, para Maria Rita, como articulador entre o plano social e individual no estudo da posição do depressivo. “O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação entre a melancolia (pré-freudiana) e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política” (p. 100). Com esse conceito, a autora sustenta sua hipótese da relação entre depressão e demissão do sujeito.
Outro conceito articulador entre o plano social e individual da depressão é a temporalidade. O título O Tempo e o cão alude à velocidade da vida no capitalismo avançado e aos valores que são atropelados – representados pela figura do cão que atravessa, desavisado, a estrada em que trafegamos em alta velocidade. No evento real, não foi possível a Maria Rita parar o carro. O livro representa a pausa necessária para pensar este acontecimento: o tempo para a experiência.
O contraste entre a lentidão do depressivo e a velocidade da vida chama a atenção da psicanalista. A vida limitada ao fazer, à necessidade de administrar os estímulos presentes, priva o sujeito do tempo da experiência – tempo em que ele poderia se apropriar, pela via das narrativas, do tempo passado, de modo a projetar um tempo futuro. O predomínio da vivência sobre a experiência produz o sentimento de vazio. A autora constata que se perdeu o tempo “para o devaneio e outras atividades psíquicas ‘improdutivas’ que provêem um sentido (imaginário) para a vida” (p. 161). Dessa perspectiva, entende a lentidão do depressivo como uma resistência inconsciente ao tempo do Outro. É possível, embora a paciente citada acima tivesse plena consciência de sua recusa em entrar na corrida da vida acadêmica. De todo modo, se o depressivo não consegue fazer algum investimento pulsional que torne os objetos significativos, a lentidão pode ter mais a ver com o fatalismo do que com um saber inconsciente. Afinal, o tempo vazio do depressivo não é vivido por ele como tempo para o ócio criativo, mas como tédio angustiante e como fadiga de viver.
A depressão como expressão do mal-estar contemporâneo decorre do recorte efetuado pela autora a partir de Lacan. Como todo recorte, tem seu alcance – amplo, como o leitor de O tempo e o cão poderá constatar – e seus limites. Outros referenciais teóricos permitiriam fazer outras relações. Os pós-freudianos franceses que incorporaram em seu pensamento a obra de Klein, Winnicott e Bion, entendem que o mundo contemporâneo produziu um sofrimento do tipo narcísico-identitário, que corresponde aos estados-limite. Maria Rita cita rapidamente Bergeret (p. 232), autor que faz parte deste grupo.
Nessas estruturas – denominadas por Andre Green (2002) de não-neuróticas – o sofrimento psíquico está relacionado aos distúrbios na constituição do eu, especialmente da função (egoica) simbolizante, e em particular à ausência do símbolo para a ausência. Em O trabalho do negativo, (“Le clivage: du désaveu au désengagement, Le moi haïssable”) Green (1999), que se diz um ex-lacaniano, faz uma crítica feroz a Lacan. “Na França, no fim dos anos cinqüenta, qualquer reflexão sobre o moi se expunha a ataques destinados a denegrir o discurso sobre este assunto, considerado apressadamente como portador de uma ideologia normativa suspeita de conluio político com o poder. [...] A denúncia de uma ideologia [a psicanálise americana de Hartmann], cuja culpa era sobretudo a indigência teórica, havia conseguido fazer o papel da defesa ao proclamar uma verdadeira interdição de pensar a problemática do moi fora das diretrizes dadas por Lacan. Mesmo nessas condições, isso deixou de ser possível. A intimidação havia sido bem sucedida. Na verdade, se a empreitada foi desencorajada, é porque ela ameaçava o conjunto da teoria lacaniana, como o futuro demonstraria através dos trabalhos dos ex-lacanianos” (p. 166-7, tradução livre da autora). Green precisa reabilitar o moi para se dedicar a seu tema, o borderline.
No referencial teórico a que me refiro, enquanto o neurótico se debate com questões ligadas libido objetal e ao desejo, o não-neurótico está às voltas com a libido narcísica e à sobrevivência. O eu mal constituído, com falhas importantes na função simbolizante em função do trauma precoce, está constantemente ameaçado, tanto por angústias de morte, quanto em sua autoestima. O investimento pela libido narcísica é insuficiente para garantir um narcisismo de vida. A partir disso, pode-se pensar a depressão enquanto posição tanto do lado da neurose, quando o sujeito desistiu de tentar afirmar um desejo próprio; como do lado da não-neurose, na forma melancólica (no sentido pós-freudiano), se o sujeito desespera de ser digno de amor, por si mesmo ou pelo objeto.
Quando Maria Rita fala na “fadiga decorrente da árdua tarefa de être soi-même exigida do indivíduo contemporâneo” (p. 160), penso numa condição psíquica a que denominei “depleção simbólica” (Minerbo, 2009), uma modalidade de não-neurose. É a condição psíquica daqueles que, diferentemente de Baudelaire, não conseguiram “transformar os choques da vida moderna em matéria simbólica, e, com isso, “dar forma” ao monstro disforme da modernidade” (p. 177).
Diante do “monstro sem forma”, o sujeito tem a experiência de vazio existencial, de dor de viver e de tédio. Ou ele sucumbe, e vai para “baixo das cobertas”, como diz Maria Rita, e temos a depressão. Ou, para não sucumbir, ele se defende do sofrimento por meio das mais diversas atuações. Temos as adições no sentido amplo do termo: a drogas do narcotráfico/indústria farmacêutica; a drogas naturais, como a endorfina e adrenalina (adição a esportes e a esportes radicais). Testemunhamos a proliferação de comportamentos compulsivos tais como: compulsão por sexo, por sexo virtual, consumo compulsivo, o cortar-se compulsivo, malhar, navegar na internet, além de outros comportamentos destinados à “construção da identidade” – uma identidade reificada, bem entendido. Observamos também a incidência crescente de distúrbios alimentares, de certas formas de violência adolescente, etc.
Dessa perspectiva, ampliam-se as formas do mal-estar contemporâneo, incluindo, além das depressões, as formas de subjetividade aditivo/compulsivas. À diferença da depressão, estas formas do mal-estar nem sempre são percebidas como tal, – nem pelo sujeito, nem pelos outros – pois ficam camufladas, já que parecem adequadas aos ideais vigentes. Metapsicologicamente percebe-se que não estão. Quando procuram análise, escutamos sujeitos, não propriamente “pobres de espírito”, mas de espírito pobre, em estado de depleção simbólica, que sofrem porque não conseguem viver criativamente.
Finalizo voltando à pulsão que move a obra de Maria Rita. Ela insiste nos efeitos da modernidade sobre os modos de subjetivação, e nas vantagens e desvantagens do ocaso do discurso único do Outro. A boa notícia é que ele pode ser aproveitado de forma criativa, para construir novas formas de existência. A má notícia – relativa – é que muitos sucumbem e se fixam numa posição depressiva. Eu incluiria, como reações subjetivas ao mal-estar, as adições e compulsões. Em todos esses casos, a análise oferece a possibilidade de criação de uma rede de representações capaz de conter a pulsionalidade, bem como da ampliação da capacidade de simbolização, essencial para um viver criativo.
Referências bibliográficas
GREEN, A. (1993) Le travail du négatif, Les éditions de minuit, Paris. Referências bibliográficas
GREEN, A. (2002) Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine, PUF, Paris.
MINERBO, M. (2009) Depleção simbólica e sofrimento narcísico contemporâneo, in Contemporânea - Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre, n.07, Jan/Fev/Mar 2009. Disponível www.contemporaneo.org.br/contemporanea.php
universidade popular: caminhos de vida-arte-sonhos de libertação: 14/05/2011...
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