Fui assassinado.Morri cem vezese cem vezes renascisob os golpes do açoite.Meus olhos em sanguetestemunharama dança dos algozesem torno do meu cadáver.[...]Fui poetado povo da noitecomo um grito de metal fundido.Fui poetacomo uma armapara sobrevivere sobrevivi.[...]Porque sou o poetados mortos assassinados,dos eletrocutados, dos “suicidas”,dos “enforcados” e “atropelados”,dos que “tentaram fugir”,dos enlouquecidos.Sou o poetados torturados,dos “desaparecidos”,dos atirados ao mar,sou os olhos atentossobre o crime.[...]meu ofício sobre a terraé ressuscitar os mortose apontar a cara dos assassinos.[...]Venho falarpela boca de meus mortos.Sou poeta-testemunha,poeta da geração de sonhoe sanguesobre as ruas de meu país.
Seleção de alguns poemas de Poemas do Povo da Noite - PEDRO TIERRA
Sobreviveremos
Perdemos a noção do tempo.
A luz nos vem da última lâmpada,
coada pela multidão de sombras.
A própria voz dos companheiros tarda,
como se viesse de muito longe,
como se a sombra lhe roubasse o corte.
Nessa noite parada sobrevivemos.
Ficou-nos a palavra, embora reprimida.
Mas o murmúrio denuncia que a vitória
não foi completa. Dobra o silêncio
e envia o abraço de alguém
cujo rosto nunca vimos e, todavia, amamos.
Nessa noite parada sobrevivemos.
Sobreviveremos.
Ficou-nos a crença, de resto, inestinguível,
na manhã proibida.
A palavra sepultada
Hoje eu queria dizer-lhe muitas coisas,
de resto, ninguém mais poderia ouvir-me.
Seu coração receba o vento de minha dor.
A porta do calabouço cerrou os dentes
sobre meus ossos.
A morte visita minha boca
num murmúrio sepultado e inútil.
Sinto enorme o peso das palavras.
É quando a mudez se tornou vício.
É quando o muro não cercou o corpo apenas
e há coisas necessitando explodir.
É quando a palavra dita não vem do cerne
e se perde na cinza.
Eu queria dizer-lhe muitas coisas,
Não há como fazê-lo.
Na cela ao lado, um companheiro morto.
Algo a dizer sobre isso?
O que pode o grito se não se perpetua?
As palavras estão gastas, mortas por dentro.
Meu corpo será meu grito,
embora hoje permaneça mudo
e sem esperança de compor um canto urgente.
Hoje eu queria dizer-lhe muitas coisas...
Companheira
Senti teus olhos na sombra
como diamantes mudos,
teus olhos aprisionados
como passarinhos.
Guardei no peito teus olhos
de madrugada rebelde,
rompendo a noite
dos corredores.
Tomei na sombra tuas mãos feridas
como terra semeada
e aprendi o ódio dos escravos
no instante que precede a revolta.
Perguntaram-me muitas coisas...
Perguntaram-me muitas coisas
mas eu estive calado, porque
é inútil falar aos inimigos
quando os inimigos são fortes.
Porque é inútil repetir
ao assassino de meu irmão
as cores da manhã
reconstruída sobre sua morte.
Eu lhes narrei apenas, nos intervalos da dor,
as promessas de incêndio,
o povo na casa dos opressores,
o muro dos justiçados.
Perguntaram-me muitas coisas
mas eu estive calado, porque
é inútil falar aos inimigos
quando os inimigos são fortes.
As mãos limpas
Ao companheiro Alexandre Vannucchi Leme,
Assassinado em 17 de março de 1973
Sobre a mesa as mãos de um homem:
Brancas, limpas, tranqüilas.
Mãos de um habitante das cidades.
Por si mesmas não dizem nada.
Acariciam os cabelos dos filhos,
o rosto da mulher, compram os jornais,
dirigem o automóvel,
estarão suadas ao meio-dia.
Esses, afinal, são gestos universais.
Contudo, neste fim de tarde, eu as vejo
Exaustas, vazias, manchadas de sangue.
O corpo de Alexandre repousa sem algemas,
(é pouco mais que um adolescente)
Da boca obstinada não fugiu palavra
e, na morte, seu rosto resplandece.
Daquelas mãos não se dirá:
“Estão marcadas com o sangue dos inocentes”.
Ei-las: lavadas, neutras, polidas cuidadosamente,
prontas a repetir gestos universais.
Acariciar os cabelos do filho,
o rosto da mulher,
passear pela cidade, insuspeitadas.
Ir ao cinema. Levar o cigarro à boca.
Confundir-se entre mãos comuns
dos homens comuns, dessa cidade comum.
O capuz
Cá está o capuz sobre a grade.
Traz consigo uma segura
promessa de dor. Na boca
do sentinela um meio riso.
Cá está uma parcela da noite
cobrindo meu rosto.
A mão de meu inimigo
determina o caminho.
Pelos corredores aprendi
o jeito inseguro dos cegos.
As mãos tateando a parede.
Sob os pés a escada imprevista,
o degrau a mais, a queda,
o riso dos soldados,
o gesto perdido buscando
uma porta que não houve.
O passar dos dias
e as cicatrizes no corpo
ensinaram-me esse caminho.
Nos dedos guardei as arestas,
o ferro das portas,
o fio dos dínamos.
No dorso a marca
desses dias de sombra.
O capuz repete a dor
no corpo de cada combatente,
uma dor mercenária
recrutada a serviço da noite.
As mãos atadas
No hora do grito
é difícil perceber algo
no rosto dos perseguidos.
Alguns ganham a cor dos homens aflitos,
Outros, um cansaço de mil anos, ou ainda,
a maneira triste dos homens capazes de morte.
Taciturnos depois da noite de suplício.
Era voz de mulher
mas nenhum de nós lhe viu o rosto.
Não é preciso dizer nada
e guardo meus pensamentos:
(contra os golpes do carrasco
restou apenas
a força de minha crença.
Essa foi minha arma,
essa terá sido a sua.
Será a do último
torturado desta guerra.)
.....................................
Se algum dia tiveres
de enfrentar essa batalha
não contes com a morte rápida.
Não te espantes de estar vivo
depois do primeiro dia.
Foi apenas o primeiro dia.
Sobretudo não contes
com o gesto humano,
nas mãos de teu carrasco.
Não procures aqui
um gesto que se perdeu
na rua dos oprimidos.
Entre as mãos caladas do torneiro
regressando ao subúrbio,
talvez encontres um gesto humano.
tortura nunca mais...
pela aprovação da Comissão da Verdade / PNDH-3...
direitos humanos é vida...
Diga não ao silêncio: exija a aprovação da comissão da verdade!...
2 comentários:
Gostei das postagens de seu blog. Pedro Tierra é um grande poeta do povo brasileiro.
Parabéns!
amigo, pedro Tierra é um poeta que canta nossas dores e sonhos, com cheiro de mato e com a maciez terna do orvalho.
Ele escrevendo, floresce...
Abraços Jorge
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