domingo, 23 de janeiro de 2011

SOCIEDADE DE AMIGOS: ECOS DO AMOR

                                                    MÃE       
                                                         Lincoln Almeida

            O ciclo escarlate da preparação já havia cessado quando passaste a guardar-me na morada bendita de teu ventre. Sou ainda larva no casulo, anfíbio submerso em águas turvas, só um projeto de vida. A plenitude é oceânica, o alimento abundante, não há pensamentos, enfrentamentos, perdas ou separações, logo, nenhuma dor. Sou princípio latente e frágil que pulsa ligado à origem mais primeva da existência. Indiferenciado e tenro como semente boa, colocada em terra fértil que espera pela chuva criadeira, pelos brotos, pela planta e a colheita sadia.  Alimentado com fartura pelo sangue do cordão central que invade minhas entranhas e também pelos teus afetos, dores, sonhos e fantasias, minha mãe. Estes seguramente me nortearão o rumo da existência e definirão se terei direito a algum território na estrada perigosa da vida, ou se serei um Quixote errante que se arremeterá furioso contra moinhos de vento crendo-os monstros terríveis.
           Queria subexistir nesse estado eternamente, nesse calor, nesse aconchego, mas quanta utopia a minha! Conforme as coisas são desde o princípio dos tempos, muito em breve essa quietude profunda e abismal, só comparada ao fundo dos oceanos gélidos e escuros, desaparecerá para sempre. Em tempo certo tua bolsa rota irá ejetar-me num espaço confuso e sem fim por onde passarei a vagar errante, faminto, a procura de sentido e razão, sempre ávido, buscando o portal mágico que me leve de volta à escuridão perdida de teu ventre bendito, lar de todas as vidas, princípio de todos os mistérios da natureza humana.
        Atordoado, sem saber bem o porquê, nem eu nem você detemos o processo, disso eu sei, pois do contrário não estaria aqui lamentando meu paraíso há muito perdido. Permitimos as divisões celulares, a criação esplendorosa dos sistemas e a metamorfose milagrosa que por fim se completa.
        Num momento de protesto e dor, irrompe o primeiro choro que também sinaliza o sopro de uma vida que naquele instante se separa da outra: o ser que já foi uno se parte em dois universos solitários, paralelos e independentes, por mais acorrentados que permaneçam à falácia do entranhamento. A esses, os que não toleram a separação, um dia chamaremos de psicóticos ou loucos, na realidade, apenas irmãos de luta aprisionados pra sempre na fantasia da fusão mágica com a matriz.
        Talvez, ao milagre da vida, sobreponha-se a dúvida se uma gratidão impagável ou um ódio sem perdão de ti, rainha mater, simplesmente por permitir que tuas crias nasçam e percam a plenitude do jardim das delícias de teu útero divino.
      Sinceramente jamais teremos uma resposta para a jornada solitária e insana que é a vida, sinto apenas, nos momentos de trevas, que ela seja uma grande tortura onde, exilados do planeta natal, choramos de banzo à medida que definhamos um pouco a cada dia; porém, nos momentos em que meu espírito se carrega de poesia, ternura e paz, sinto profundamente nas veias que a vida é uma grande orquestra que executa com magistral esplendor uma harmoniosa sinfonia do mais puro amor...




















DOMINGO DE SOL
                 Paulo Cecílio
Houve um sushi nos gatos da vizinhança, e meus canários foram os principais convidados. Sobrou um , que pareceu não despertar a atenção nem dos gatos,nem  dos desconhecidos que invadiram minha casa na noite de quinta feira. Fico pensando que este canário é um abençoado ou um maldito.
Então tava lá aquele canário amarelo, engaiolado, e só,sozinho, num domingo de céu muito azul.
Daí pensei :  nem vou ter pena deste canário, porque ele tem asas, comida, e céu azul. E ainda é domingo...AH! me ocorreu uma terceira hipótese, ninguém quis o canário porque ele é um bobão. Deve ter a carne amarga...daí me lembrei que ele tava preso. Fui tão injusto que o arrependimento apertou meu coração.
Então fui lá, e abri a gaiola : vai canário, não preciso mais do seu canto! Voe livre, curta o mundo, encontre uma nova companhia...
Ele não voou, mas ficou me olhando com olhinhos tristes. Juro! De tanto olhar esse canário sei que seus olhinhos estavam tristes.
Então fiquei pensando numa quarta hipótese. Aquele passarinho cantara pra mim e pra sua companheira, a vida inteira, e ainda preso. Agora, ao abrir a porta de sua cela, eu não o estava libertando, eu o estava expulsando.
Voltei a fechar a porta, e num domingo de manhã, eu também só, por um momento não saberia dizer qual era o lado de fora, e qual era o lado de dentro.
Cantemos ao domingo...


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