sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

BONS ENCONTROS:AS VÍTIMAS DO TERROR

LIBERDADE
 Carlos Marighella
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome”
 



Terra de Santa Cruz
Poesia da Adélia Prado, escrita em memória de Frei Tito

Nas minhas bodas de ouro, esganada como os netos,
 
vou comer os doces.
Não terei a serenidade dos retratos
 de mulheres que pouco falaram ou comeram.

Porque o frade se matou
no pequeno bosque fora de seu convento.
De outras vezes já disse: não haverá consolo. E houve:
música, poema, passeatas.
O amor tem ritmos que não são de tristeza:
forma de ondas, ímpeto, água corrente.
E agora? Que digo ao homem, ao trem, ao menino
[que me espera,
à jabuticabeira em flores, temporã?
Contemplar o impossível enlouquece.
Sou uma tênia no epigastro de Deus:
E agora? E agora? E agora?
Onde estavam o guardião, o ecônomo, o porteiro,
a fraternidade onde estava quando saíste,
o desgraçado moço da minha pátria,
ao encontro desta árvore?
Meu inimigo sou eu. Os torturadores todos enlouquecem
[ao fim,
comem excrementos, odeiam seus próprios gestos obscenos,
os regimes iníquos apodrecem.
Quando andavas em círculos, a alma dividida,
o que fazia, santa e pecadora, a nossa Mãe Igreja?
Promovia tômbolas, é certo, benzia edifícios novos,
mas também te gerava, quem ousará negar, a ti
e a outros santos que deixam as bíblias marcadas:
"Na verdade carregamos em nós mesmos nossa sentença
[de morte."
"Amai vossos inimigos."
O que disse: "Quem crer viverá para sempre",
[este também
balouçou do madeiro como fruto de escárnio.
Nada, nada que é humano é grandioso.
Me interrompe da porta a mocinha boçal. Quer mudas
[de trepadeira.
Meus cabelos levantam. Como um torturador eu piso
[e arranco
a muda, os olhos, as entranhas da intrusa
e não sendo melhor que Jó choro meus desatinos.
Sempre há quem pergunte a Judas qual a melhor árvore:
os loucos lúcidos, os santos loucos,
aqueles a quem mais foi dado, os quase sublimes.
Minha maior grandeza é perguntar: haverá consolo?
Num dedal cabem minha fé, minha vida e meu
[medo maior que é viajar de ônibus.
A tentação me tenta e eu fico quase alegre.
É bom pedir socorro ao Senhor Deus dos Exércitos,
ao nosso Deus que é uma galinha grande.
Nos põe debaixo da asa e nos esquenta.
Antes, nos deixa desvalidos na chuva,
pra que aprendamos a ter confiança n'Ele
e não em nós.


Ao meu irmão Frei Tito
Colaboração de amigos

DEPOIMENTOS
Frei Betto

Frei Betto, frade dominicano e escritor. Viveu junto com Tito no convento dos frades dominicanos em São Paulo. A luta política e o sofrimento vivido por Frei Tito nos porões da ditadura são relatados no livro ‘Batismo de Sangue’.

Conheci Frei Tito em 1962, quando me tornei dirigente nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica) e ele, dirigente regional do Nordeste. Tinha se deslocado de Fortaleza, onde nasceu, para o Recife, sede dos movimentos de Ação Católica daquela região do país. Tito me chamou a atenção pela simplicidade e obstinação. A timidez não dificultava sua determinação de caráter. E era um jovem, aos 16 ou 17 anos, especialmente alegre, afeito à música.
A fé cristã, o idealismo apostólico, a sede de justiça que a JEC imprimia a seus militantes fez com que se criasse entre nós certa empatia. Estreitada por nossa decisão comum de ingressar na Ordem dos Dominicanos, eu em 1965, ele no ano seguinte.
Em 1967, Frei Tito e eu passamos a conviver no mesmo convento de São Paulo, no bairro das Perdizes, onde cursávamos Filosofia. Fazíamos parte de um grupo de seminaristas politizados e identificados com o agitado movimento estudantil da época, principal trincheira de resistência frente à ditadura militar. Tito e eu, como outros, fazíamos cursos complementares na USP, o que nos aproximou das lideranças estudantis. Como o demonstram o livro e o filme “Batismo de Sangue”, foi Frei Tito quem conseguiu o sítio no qual se realizou o célebre congresso clandestino da UNE, em Ibiúna, 1968, no qual foram presos mais de 700 estudantes.
Tito tinha o dom de fazer amigos, especialmente com pessoas mais velhas. O doutor Samuel Pessoa, o mais renomado parasitologista do Brasil, e sua mulher, dona Jovina, o tratavam como filho. O fato de eles serem um casal comunista e ateu não dificultava o diálogo. E na medida em que vários militantes comunistas se afastaram do Partido Comunista Brasileiro, que repudiava a luta armada, e se aproximaram de Carlos Marighella, fundador da ALN (Ação Libertadora Nacional), que a apoiava, isso fez com que Tito e o grupo de estudantes dominicanos atuassem como base de apoio aos guerrilheiros urbanos.
Tito tinha alma de poeta, sensibilidade de artista, vocação de monge recluso e um irradiante amor à vida. Esse engajamento na luta contra a ditadura nos levou, em 1969, à prisão. Frei Tito passou pelas torturas em novembro daquele ano e, de modo especial, em fevereiro de 1970, por ocasião da prisão do proprietário do sítio de Ibiúna. Queriam que Tito assinasse comprovando que, nós dominicanos, havíamos pegado em armas. Tito não cedeu. Porém, próximo ao limite de suas forças, preferiu morrer que prejudicar seus irmãos. Com uma gilete, cortou a artéria do braço esquerdo. Socorrido no Hospital Militar, ficou com sérias seqüelas psíquicas.
No Presídio Tiradentes, tomei-lhe o depoimento. Divulgado no exterior, mereceu o prêmio de Reportagem do Ano (1970) da revista Look, dos EUA. Seqüestrado o embaixador suíço, Tito foi incluído na lista dos presos que deveriam ser soltos em troca da vida do diplomata. A última vez que nos vimos foi em janeiro de 1971, quando deixou o Tiradentes a caminho do exílio, condenado pela ditadura ao banimento do país. Ele estava triste. Teria preferido não viajar, mas não havia alternativa, pois se não saísse os militares certamente explorariam a sua recusa a favor do regime.
Depois, recebi notícias freqüentes e esparsas de Tito: sua chegada em Santiago do Chile, a viagem para Roma, a rejeição sofrida num seminário que funciona à sombra do Vaticano, a transferência para Paris, os fantasmas que o assaltavam, a onipresença dos torturadores em sua mente... Por recomendação médica, Tito mudou-se para nosso convento próximo a Lyon, cujas cercanias rurais lhe fariam bem, supunham os médicos. Foi ali, a 10 de agosto de 1974, que Frei Tito, aos 28 anos, preferiu – como escreveu em sua Bíblia – “morrer do que perder a vida”. Para buscar a unidade que havia perdido deste lado da vida, enforcou-se sob a copa de um álamo.
Hoje, o túmulo de Frei Tito é o mais visitado no cemitério de Fortaleza. E inúmeras obras de arte já foram inspiradas por sua trajetória, por seu testemunho, por seu exemplo.
Natal de 2007
Quando secar o rio da minha infância.
                                          FREI TITO
Quando secar o rio da minha infância
secará toda dor.Quando os regatos límpidos de meu ser secarem
minh'alma perderá sua força.
Buscarei, então,
pastagens distantes- lá onde o ódio não tem teto para repousar.
Ali erguerei uma tenda junto aos bosques.
Todas as tardes me deitarei na relvae nos dias silenciosos,
farei minha oração.
Meu eterno canto de amor:
expressão pura da minha mais profunda angústia.
Nos dias primaverís, colherei flores para meu jardim da saudade.
Assim, externarei a lembrança de um passado sombrio.


Paris, 12 de outubro de 1972
Frei Tito












tortura nunca mais...
                   pela comissão da verdade...
           direitos humanos é vida!... 

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