NOVAS FORMAS DE AMAR NA CONTEMPORANEIDADE
Odila Braga
O amor como um percurso de muitas descobertas, ao longo de
uma historia concreta, a minha, como um processo particular de libertação, pode
não ter tanto interesse para vocês, mas resolvi ir por ai, e tentar resumi-lo
ao máximo, para passar um pouco da ideia de amor e de como esta foi adquirindo
seus contornos através de minha própria busca e de meus encontros com tantas
inspirações e desafios. Tentei passar alguns fios dessa tal historia, a minha,
e de minhas relações com “O amor” e suas múltiplas formas.
Para tanto, foi preciso fazer uma digressão, uma espécie de
cronologia, com o objetivo de chegar até ao que nos foi solicitado nesta mesa,
mas que começa muito antes do que entendo por contemporaneidade, considerando a
linha do tempo de minha própria vida, sem conseguir nem pretender esgotar a
historia dessas referências, encontros e ideias, o que não conseguiria em tão
pouco tempo (2 dias), quando decidi conversar com vocês sobre o amor na
contemporaneidade, a partir de minha própria experiência. Então, vamos lá.
No começo, que vou chamar de Fase 1, o amor era ser cuidada, ouvir
estórias e musicas infantis trazidas por meu pai, viajar com os pais e
encontrar longe outras referências familiares diferentes das minhas (Ufa!). Mas
era também especialmente associado à obediência, ao bom comportamento, à
responsabilidade e especialmente à verdade, entendida como “não mentir”. Era
muito bom o amor nas férias, quando se podia passa-las lendo coleções inteiras
de estórias e dar asas à imaginação, o que certamente aliviava o peso da
imposição de obediência e o aprendizado de valores como a verdade, o respeito
aos mais velhos. O amor também necessitava de brincar por muitas horas e quando
possível o dia inteiro, desde cedinho nas manhãs de minha infância, quando
acordava antes que todo mundo e ia viver o amor na “minha casinha”, que podia
tomar espaços grandes da casa de minha avó onde vivíamos, e que não era
desmanchada todos os dias, mas me esperava todas as manhãs para recomeçar a
descoberta do amor. O amor imitava o que via, a rotina dos dias na casa maior
onde se instalava. Casinha e leitura, galinhas e pé de jaboticaba. O amor era
também tomar licor de genipapo, feito por minha avó, quando chegava ensopada da
escola, nas enchentes do canal. Era estudar taboada e aprender matemática com
vovó (ex professora). Milagre! Era possível aprender matemática! O amor era
este mundo rico e espetacular. Era ao mesmo tempo, sério e mágico.
O amor na sua Fase 2, pôde encontrar-se com a música e com a dança. Que maravilha
dançar e tocar um instrumento! Uniu-se ao grupo de jovens que se reunia num
salão da Igreja e ia todos os domingos à favela, onde conhecia pessoas muito
carentes. Tinhamos alguma liberdade de criar nas relações com as pessoas que
ali moravam, mas éramos basicamente ainda, conduzidos pelos adultos
responsáveis por estas atividades. A diferença social e a carência, a pobreza,
existiam e exigiam ações de nossa parte, que não tínhamos muitos recursos para
fazer, o que gerava certa angustia e impotência. Mas nascia a consciência de que tínhamos a
ver todos com todos. O amor era sair do
meu mundo e conhecer este outro mundo, cheio de pessoas que não tinham
acesso a nada do que eu tinha. O amor era também amizade, cumplicidade e
companheirismo. Era solidariedade e grupo, era conhecer os espaços da noite, e
não mais só os espaços dos dias, curti-lo e recurti-lo. Era transgressão
também.
Mas nesta fase, aconteceu o golpe de
64, que trouxe à luz o monstro do desamor: a falta de liberdade, a injustiça
social, a morte, ameaça à integridade de meu pai amado, o ódio à “polícia”, que
tão bem representava os valores do Estado. O amor era então, comunista, com
certeza, era russo, cubano. Não era brasileiro porque o amor era vermelho e
vermelho foi proibido nesta ocasião. O amor exigia o aprendizado da coragem e
desejava ir até a morte para não morrer, porque o desamor matava e ameaçava a
vida. O amor também estava na Igreja católica, nos padres que se alinharam à
luta contra a ditadura e a compartilhavam conosco em muitos grupos de juventude
cristã. O amor era comunista e cristão
ao mesmo tempo, era Che Guevara e comunhão. Tinha que se arriscar, tinha que
falar, tinha que se expor e influenciar, tinha que discordar.
Ah, o amor desta fase também era
desenhado com margaridas, fumado com cigarros e bebido com álcool e adorava
Johnny Rivers. Era hippie e não se
contentava mais em repetir ou imitar. Tinha que criar. Porque o amor de então,
era buscar uma forma de expressão onde ele pudesse ser brasileiro e meu. Era
preciso traze-lo para um modo de vida que tivesse uma radicalidade não só nas
questões sociais, mas também uma radicalidade intima e pessoal. O amor tentava
se expressar de forma criativa, original. As margaridas hippies, a sempre
presente companhia da música, com certeza trouxeram alento para as feridas
provocadas pela imensa repressão do Estado. O amor era questionar os modelos...
todos eles: os políticos, os modelos de relações de amizade e das relações
amorosas. O amor conheceu a Yoga que também deu um pouco de leveza e oxigênio
àqueles anos de chumbo deste Brasil estranho, pesado, capaz de matar os
brasileiros para se afirmar enquanto nação, capaz de mentir e insuflar o povo
contra o povo, de secretar seu veneno em medos estéreis e de usurpar de nós os
mais fundamentais direitos, a cada dia destes longos e intermináveis anos. Tão
intermináveis que quase me esquecia de quão insuportáveis eles eram e mesmo
assim ainda podia rir com o genial e irreverente jornal “O Pasquim”. O amor era
tudo, ao mesmo tempo, agora.
Meu amor, na sua Fase 3 deixa de ser cristão, namora com os agnósticos, apaixona-se
pelos anarquistas, conhece a psicanálise, a busca da espontaneidade perdida do
Psicodrama de Moreno, mas também a mística de Castaneda, a física quântica e
suas descobertas fantásticas e plenas de Tao,
estudar ludicamente Roberto Freire que dizia: ame e dê vexame, enfim,
uma nova forma de amar mais abstrata, mais imaterial, que vem aos pouco
substituir a crueza e materialidade do meu antigo amor. E veio então a
psicologia enquanto profissão e... a maternidade... ah! A maternidade. Agora
não é mais tempo de me preocupar se me expresso de forma original ou repetida. O amor é trabalho, serviço profissional
de cuidado e cuidado de outro ser que inicia a vida. Era preciso transmitir o
que tivesse acumulado de melhor, e não tinha rascunho. Tudo era “ao vivo”, como
se diz na tradição da mídia. O amor tinha a radicalidade das coisas sem volta,
uma espécie de praticidade, de pressa e de nova economia do tempo. E uma característica marcante deste amor
de então, era a busca incessante de sentido e o cuidado em preservar a alegria
para ter coragem de seguir adiante. O correr do meu tempo teve um espelho
amigo nas instituições onde investi amorosamente, nas pessoas que atendi e em
minha filha, onde me encontrava com os lugares de investimento de meus melhores
esforços daqueles anos. Esta busca de sentido e de preservação do direito à
alegria, nesta fase, vai me trazer novos encontros muito importantes. O amor
desta fase respira aliviado quando encontra alguns caminhos e uma bússola
fundamental para prosseguir a viagem. Assim foi meu encontro com Baremblitt,
onde um novo rumo se inicia. Ufa! Tanta procura e finalmente encontrar um chão
para pisar minhas novas angustias, uma luz no fim do túnel, outro longo caminho
a percorrer, a gostosa sensação de “eureca”, a sensação física, mental,
espiritual, (coisa de corpo inteiro), de que é por ai que devo ir. O amor desta
fase trabalha feito louco e como tem pouco tempo, precisa ser pragmático, ou não acharia tempo pra
pensar. E enquanto isto vai delineando, engendrando outras identidades para
mim, enquanto vou perdendo os contornos que tinha, me perdendo. Portanto, nesta
fase, meu amor tinha que lutar muito para buscar novos sentidos, para que o
amor não matasse o amor, não ultrapassasse os limites das bordas e sucumbisse.
A ameaça de extinção estava sempre presente, parte porque as bordas estavam ao
alcance da vista, parte porque era preciso continuar navegando, mesmo por mares
nunca dantes navegados, e encontrar alguma medida para meu desterritorializar.
É contraditório, eu sei. Mas a força destas contradições foi o inicio do
aprendizado de que o sentido não estava dado. O amor, eu tinha que cria-lo e
alimenta-lo muito bem, sob pena de sucumbir. Olhar para as muitas referências,
faróis que tinha para orientar meu percurso, as bússolas vivas com quem cruzei,
e saltar sobre os montes e reinventar o
meu próprio amor. Foi lindo! E como foi excitante... e questionador. Eu vivia
bem cansada, mas me sentia muito bem, até um pouco poderosa... imaginem...
Mas há ainda mais uma fase, Fase 4 desta especie de cronologia que
resolvi compartilhar com voces e que a todo o momento não me satisfaz. Mas
vamos la, porque o tempo urge nesta mesa e finalmente consigo chegar ao amor da
minha contemporaneidade. Nesta fase,
além de todos os outros nomes, o amor chama-se agora Esquizoanálise, Deleuze e
Guattari. Cito-os, porque estas referências todos aqui conhecem e também por
ter aprendido com esses autores, que os livros são máquinas que funcionam ou
não funcionam para cada um que os le, numa relação de intensidade e amor nunca
reproduzível, ou repetível. Que se usa
os livros para nossos próprios fins. Mas claro! Só que ninguém o havia dito. Na
verdade pensei e até iniciei uma tentativa de nominar pra vocês muitos deles,
mas conclui que assim esta historia os cansaria mais e talvez trouxesse pouca
claridade ao desafio desta mesa. E quanto aos incontáveis “livros/faróis” com
os quais me relacionei, posso dizer que a bibliografia está à disposição de todos caso se interessem por ela,
para compor com suas intensidades e
invenções. Para mim, são lanternas, que ora iluminam uma área ora outra,
enquanto vamos escolhendo os caminhos a percorrer, ou sendo escolhidos por
eles. Deleuze escrevia para libertar a vida das suas prisões, para provocar
linhas de fuga, não para ter domínio sobre o código de funcionamento das
coisas. Ao contrário, escrevia para criar e fazer criar. O amor desta fase luta
para “resistir” e “se reinventar”, para usar palavras bem esquizoanalistas. Ou
ele sempre foi assim? Sim, acho que sempre foi assim. Porém, se podemos reagir
a alguns dos sinistros mecanismos que nos impedem de nos criarmos, de darmos
vida aos nossos próprios projetos, de pensarmos a respeito e compartilhamos
sobre isto com outros interessados, potencializando-nos mutuamente, então
melhoramos nossa chance de sair do lugar da tristeza e da impotência, lugar das
cópias. Não mais daquelas cópias que aspiram à perfeição, como em Platão, mas
das capturadas, prisioneiras do mesmo, daquelas que aniquilam nossos desejos de
alegria, de ousadia, de criação de novas soluções. Por isto, o amor hoje
chama-se também Universidade Popular Juvenal Arduini, porque aquilo lá não é
espaço de frustração e ressentimento, mas de traição. No texto Ano Zero –
Rostidade de Deleuze e Guattari que estamos estudando no momento, para
compartilhar na UPOP, encontramos este conceito, que nos remete à criação e à
invenção de nossos próprios rostos. Para tanto é preciso resistir à pressão da
mesmificação (trair a nós mesmos enquanto pobres repetidores) e criar e recriar
a própria vida, como obra de arte. Ah, a arte! Novamente a arte e a criação.
Não tem problema se já não danço mais, se já não canto como cantava, se não
toco meu violão. Mesmo assim, a arte é possível. Vamos todos pagar o preço,
para conseguir preservar nosso direito à alegria de viver, porque a alegria tem
muitas caras. E hoje, finalmente mas não definitivamente, amar é conseguir ser
alegre, no sentido preciso que a esquizoanálise dá ao termo – ser alegre é
poder criar e criar é resistir - é perder-me de minhas cansativas repetições
tristes e achar-me e perder-me nos bons encontros, que são aqueles que nos
desterritorializam, nos desinstalam, nos provocam. Neste sentido, só tenho a
agradecer a todos por estar aqui. Muito obrigada.
CONFERÊNCIA APRESENTADO NO ENCONTRO DE PRÁTICA SOCIAIS E CIDADANIA; FRUTAL... ( ORGANIZAÇÃO INSTITUTO GREGORIO BAREMBLITT - COLETIVO INSURGENTE DAS UTOPIAS GERAES)...
UM AMOR DEVIR- NOVA SUAVIDADE...
MILITAR É AGIR...
AGIR TRANSFORMADOR É SEMPRE UMA REINVENÇÃO DO AMOR...
"QUALQUER AMOR É UM CADINHO DE SAÚDE,
UM DESCANSO NA LOUCURA." GUIMARÃES ROSA
...O QUE MOVE...É SAGRADO...ABELHAS FAZENDO O MEL..
Um comentário:
Muito tocante o seu texto. Dá uma vontade de vida, de invenção, de fazer de si esse campo de confecção de existência, misturar as linhas de desejos, pensamentos, abandono de tecidos antigos e pouco vivos, garimpo de novas cores texturas... Vontade de finalmente corpo e veste amalgamados. Abcs.
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