CAETANEAR: UM REPERTÓRIO DE VIDA
jorge bichuetti
De Santo? Amaro... Amá- lo... Amparo... da purificação.
Puro ar... figa... ação...
Caetano: veludo, mel mel - osso... vitalizante...
Caetano, cantor e poeta, na terapia?
Ter ar pia: pia de batismo, ave pia...
Tear pira: criar loucura, sonho, imaginação... Atuar... Virtual.
Nasci caetaneando o que há de bom.
Assim, ele se apresentou, emergiu no palco da minha modesta vida, na lida da minha arte- profissão.
Poeta? Ele é... Eu? Companheiro- ser- irmão e ser e mão...
Nesta minha travessia de terapeuta, sempre tive a certeza de que o meu ofício trazia consigo a arte e o feitiço de ter por labor o homem, seus limites, seus sonhos, sua alma.
... Mas nunca pude exercer meu ofício sem o querer, rompendo os podres poderes, e mesmo na clínica caetanear...
São muitas as lições que roubei do repertório de Caetano Veloso, entre caracóis e unhas negras, uma força estranha que faz da dor um cantar.
Aqui, abordarei um dos aspectos, um apenas...
O repertório de vida...
Costumeiramente, temos uma pauta de conduta: rígida, previsível e restrita.
Caetano é a saúde do flexível, do inesperado, da amplidão... finita infinitude.
Velô - cidade - cosmo, bairro e região...
É a multiplicidade ... O Singular...
Provocação. Silêncio. Cantiga de ninar e um toque de acordar.
Serenata: Lua e estrelas...
No escuro, devir luz, provocante amanhecer.
Não sei se o papel o comporta; ele é o luxo, o lixo; o nexo e desconexo; é vida... vida- inovação.
Somos geralmente um script. Um programa: pura repetição... Somos cópias...
Expectativa e medo, vivemos aquém... Não ousamos experimentar o doce e o doce e o bárbaro dos sonhos que emergem do desejo; deixamos nossos desejos à deriva na contramão.
Caetanear... Caetanear: é saúde- vida; loucura- produção.
Não o conheço. Mas não nego: trago comigo uma encantada... ternura
Se falasse por mim... Ah! Não teria a necessária isenção. Texto- científico? Arte? Ou pura admiração.
As rimas tão nordestinas já revelam minha confusão.
...Todavia, num stacatto, deixo o amor(?), e tentarei contar casos, onde a música deste moço- belo me permitiu agir - com vida, sensibilidade e arte- gentil...
Stacatto. Repertório: o conjunto de condutas com as quais efetivamos vínculos, respondendo as demandas diárias da vida e criamos, conscientes e inconscientes, as tramas do nosso próprio destino.
Ser, estar... Responder, intervir...
Ver- se, assumir- se...
Criar... Reinventar- se...
O mundo é o mundo. Gira e cobra; rodopia e pressiona... Nele, vivemos...
Muitas dores, conflitos; doenças e estar mal nascem da pobreza de nossa pauta de conduta.
Queremos ser... o mesmo... a mesmisse...
Queremos agradar, e assim, renunciamos os apitos do próprio coração.
Seguimos robotizados. Quadriculados... Submissos e servis... Excluímos do nosso mundo a ousadia de querer, sonhar e amar...
Súditos, sofremos. Carcereiros de nós mesmos.
Acorrentados pela ilusão de viver por agradar.
Infelizes, adoecemos e na nossa doença descobrimos a nossa vida amesquinhada, por não ousar... não assumir... os fluxos da nossa alma, e de tanto agradar, desgraçamos uma existência perdendo a graça e a luz de viver por desejar...
Caetano. Caetano. Axé, meu moço- Bahia, cantar povo e poesia... Uma prece ensimesmada, suave e terna, rebelde, que provoca, afeta, insita o desejo de se aventurar...
Tenho, na clínica, Caetano... Na vida, tento caetanear.
Músicas. Temas. Poesias: devoluções que provocam, afetam, insitam o desejo de na vida estar.
Estar, presente. Vivo. Viver e experimentar...
Estas reflexões retratam o visto e o vivido quando diante da vida, deixei Caetano encantar...
Texto feito trova- verso, filosofia a granel, pode baratear o rico material que nasceu de um moço- belo, de uma vida- tropicália, sol e luar de uma terra que sabe superar pesadelos por trazer consigo num arquétipo exótico a arte de saber sonhar.
Chega de prosa, mineira ou nordestina, quero devir terapeuta e alguns casos contar:
Caso 1. O usuário mostrava-se melancólico. Porém, longe da vida. Escravo da rotina. Era um perfeito robô dos padrões hegemônicos.
Obsessivo, reclamava da vida. Todavia, jamais ousava.
Para mim, estava difícil clarificar a sua condição: escravo da ordem.
Um dia no meandro da rede de transferências e transversalidades, ele me pergunta:
- E você?
Respondo, cantarolando:
" Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento... Eu vou..."
Stop. Silêncio: no ar, somente o hino de liberdade que provocativamente eu continuei assobiando.
Ele riu. Riso gordo com sabor de pão- de- queijo e acarajé.
Talvez, tenha sido o seu dia D. Uma canção disparando provocações e nos espelhando, nós e o cotidiano.
Caso 2. Após uma tragédia. Um acidente de moto. Machucado. Atento.
Escuto o desespero de quem faceou- se com a morte. Vejo medo.
Conversamos. Escuto.
Depois, de muito escutar, num lamento, ele diz:
E agora, com que forças irei recomeçar?
Seguro sua mão e o meu coração como se orasse, canta:
- "Eu vi um menino correndo,
... Eu vi o tempo...
... Porisso uma força
... Estranha no ar
... Porisso esta voz tamanha."
Caso 3. Um homem se envergonha da sua própria opção sexual. Várias sessões . Do édipo ao machismo, o mundo em revista.
Um dia, ele chora e eu, ternamente, canto “existirmos a que será que se destina / pois quanto tu me deste a rosa pequenina “...
O erótico se divinizou e pode se devir, tranquilamente, apenas mais um Jesus a procura de alguém que pudesse ser tanto que passaria a ser referido como o ''amado''
Casos... N casos.
Caetano também é n vidas.
Vida - liberdade, um poeta.
Simplesmente, o Caetano que ousou nos chamar para a guerra e intensificar a vida, afugentando os podres poderes.
... Ele é terapêutico, pois é o próprio devir numa travessura apoteótica.
À ele, nossa gratidão.