domingo, 7 de fevereiro de 2010

SABER E NÃO-SABER : MITOS

                                           A Desmistificação do não - saber

                                                                                  Jorge Bichuetti

 

                                                                       1.Introdução.

'' Se tanta tristeza, pesar e desgosto,
Senti pelo rosto
Correr-me o suor.
Se neste universo só reina tortura
Devo ir à procura
De um mundo melhor ''
Desilusão / Patativa do Assaré.

O Processo de institucionalização da ciência, do saber científico, como verdade única, absoluta, inquestionável, soberana e de validade universal, afirmou-se definindo todo outro e qualquer conhecimento como não saber.
O saber, assim, expropriou as pessoas e as comunidades do conhecimento que se adquire ao longo do tempo nas próprias experiências vitais.
O estatuto de não-saber desqualifica, marginaliza e silencia o saber das pessoas e dos grupos cujo pensar, sentir e agir não se dá legitimado pelas regras e procedimentos do saber instituído.
[No horizonte, um retrato. Retrato des-colorido, desfocado. O não-saber curvado, se revela, então, silêncio, voz sussurante, opinião desclassificada e práticas marginais... Práticas estas que se re-vistas pelo foco dos interesses populares, revelar-se-iam práticas resistentes, resistência clandestina, de um povo que perdeu o chão-território e o seu universo de referência de sua própria história e se viram transformados numa gente sem-voz.]
Voltemos às nossas reflexões...
O paradigma científico hegemoniza a produção de verdades numa relação dialética com o não-saber.
Relação de contradições camufladas...
...Seu processo de dominação e mistificação da realidade ocorre fantasiado pelo vestuário da neutralidade e justificado pela sua pretensa finalidade.
O saber toma a si como um ideal transcendente da própria existência, harmonioso e funcional com o não saber, existindo para servir a este; sendo, deste modo, cuidado e solução. Ele é um ato de cuidar, velar, suprir e prover a impotência e a ignorância depositado, então, no não-saber.
[No horizonte, outro retrato. Retrato colorido e ampliado. Um poster, um outdoor. O saber ereto, vistoso, cheio de bondade, paternal. Palavreado e tecnologias sofisticadas, informações. Lógico, matemático, objetivo... Banco de dados... Leis gerais, produtos de laboratório. Borrados estão os interesses das suas práticas colonialistas; não há culturas diferentes. A ciência é bom senso...]
Retomemos nossas reflexões.
De fato, o não-saber, neste quadro, passa a se beneficiar, passivamente e de forma dependente, dos produtos do saber; tornando-se devedor, carente, necessitado.
Perde, desconecta-se da sua capacidade de pensar, sentir, solucionar e agir...
Cria-se, neste processo, pessoas e coletivos incapacitados. Incapacidade naturalizada pela dominação do saber, saber científico... Ùtil, fértil; e, também, eficiente, eficaz verdadeiro... Mais saber.
Uma situação de desvalia é produzida.
Desvalia do conhecimento dado pelo senso comun, pela cultura popular, pelos experimentos vitais e pelas próprias tradições históricas das pessoas e dos coletivos.
Desvalia suprida pela pujância do saber.
Saber opressivo. Paternalista. Que nos coloniza... à la Macunaíma - nos embranquece distanciando-nos pouco-a-pouco da terra em que nascemos negros.
Desenraízados, descolorimo-nos.
Uma vez territorializados na pátria do não-saber, somos agora todos protegidos pelo pensar e agir dos especialistas que passam a deter em si a capacidade do saber e, nela o que necessitamos para sobreviver e viver.
[No horizonte, um novo retrato. Um retrato distorcido pelo jogo confuso das letras e palavras do indizível dos especialistas.]
Bíblia contorcida:
'' Conheceres a verdade... Sereis livres.
Desconhecereis a verdade e o não-saber vos fará escravos.''

                                                    2.Não-saber e Alienação

''Sou sertanejo e me orgulho
Por conhecer o sertão
Durmo na rede e embrulho
Com um lenço de algodão
De alpercata de rabicho
Penetro no carrapicho,
Sofrendo a vida penosa
Do trabalho do roçado
E por isso sou chamado
Poeta de mão calosa.

Sou sertanejo e conheço
Meu sertão em carne e osso,
Trabalho muito e padeço
Com a canga no pescoço,
E trago no pensamento
Meu irmão de sofrimento
Que, no duro padecer,
Levando o peso da cruz,
É quem trabalha e produz
Para a cidade comer.''
O Retrato do sertão/ Patativa do Assaré

Foucault desnudou as entranhas do saber e neste strip-tease viu os emaranhados do poder.
Marx e sua teoria da alienação mostra-se atual.
['' Existirmos a que será que se destina '' Caetano]
Para Marx, segundo Vásquez, a alienação é uma relação social onde se consuma o domínio do produto sobre os produtores e uma problemática do não reconhecimento de si em seus produtos, em suas atividades e nos demais homens.
Em síntese: a alienação é a pauperização física e moral do trabalhador e a sua transformação em mercadoria.
O homen não se reconhece em sua atividade. Ele se vê exterior.
Desvalido. Nada possui, nada sabe.
O trabalho dividido, fragmentado - saber e fazer, e um fazer cada vez mais parcializado - separa o homem do produto de sua ação e a mercadoria torna-se fetiche.
O homen coisificado, realiza; mas se vê desapropriado do seu fazer.
Realiza, porém, já não sabe que tem em si a potência do saber, saber transformador, saber oriundo da intimidade que se dá entre ele e a vida no próprio processo de trabalho.
E ele, o agente da vida, vê-se despossuído, sem saber; o não-saber que submisso idolatra o saber da mercadoria e o saber que através da divisão social do trabalho, também se fez mercadoria.
Alienado, vê o império do saber...
E a ele se submete. Desumaniza-se, porque, então, teme criar, inventar; conceber, transmutar...

                                  3 A desmistificação do não-saber: um efeito instituinte

'' Sinhô dotô, meu ofiço
É servi ao meu patrão.
Eu não sei faze comiço,
Nem discuço, nem sermão;
Nem sei as letras onde mora,
Mas porém, eu quero agora
Dizê, com sua licença,
Uma coisa bem singela,
Que a gente pra dizê ela
Não precisa de sabença.

Iscute o que eu tô dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo,
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão nem guerra
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!...
Tenha pena do agregado
Não me deixe deserdado
Daquilo que Deus me deu.''
A terra é naturá /Patativa do Assaré

O saber instituido, saber-verdade, relaciona-se com a vida gestando imanente às relações do saber um poder.
O saber e não-saber, assim cristalizam-se. Tornam-se entidades molares, sustentadas pela segmentaridade rígida, circular, das corporações, do mundo dos experts.
O saber apropria, então, da capacidade de analisar e de gerenciar os processos da existência.
Impõe-se e desta verticalidade formata sob sua lógica uma aparente inevitabilidade de que os encontros e os coletivos funcionem cerceados e dependentes de ações e intervenções heteroanalíticas e heterogestivas.
Relações territorializadas e imersas na superfície de registro e controle que acabam por condicionar um predomínio no campo do saber de uma produção mantenedora do status quo, produção de reprodução e produção de antiprodução.
Nota-se o vínculo do saber com o instituído e o organizado, terror ante o novo, quando ao observar as suas relações com o não-saber e outros saberes minoritários, constatamos que estas se dão polarizadas pelo polo paranóico.
O saber, nesta compreensão, torna-se um benefício e um obstáculo.
Beneficia a vida com seus produtos.
Mas obstaculiza o novo, o diferente... a utopia... Já que se mantém subsumido pela realidade tal qual esta se revela e impõe. Sendo, portanto, quase sempre um instrumento-função dos mecanismos de dominação, exploração e mistificação da sociedade.
Os proprietários do saber, subjetivados no lugar seguro do espaço estriado, dificilmente se desterritorializam e desterritorializam este universo de referência, esta relação de poder e dominação.
Eles são... São experts...
Nada veêm, escutam, ou sentem; além ou aquém do que o seu estatuto de especialista prescreve.
Já os historicamente despossuídos do saber, o não-saber, podem em determinadas circunstãncias se desterritorializarem e desterritorializarem esta unidade-função saber-não-saber proscritiva do novo, e, assim, dispararem um funcionamento aonde não mais existindo saber-não-saber, mais sim saberes diferentes transversalizem os encontros e os coletivos que, então, passam a criativamente vivenciarem numa polarização esquizo, processos autogestivos e autoanalíticos.
O não-saber conformado pela segmentaridade rígida da especialidade, pelo poder da verdade-saber do cientificismo, gesta subjetividades assujeitadas que tendem passivamente a reproduzirem o instituído.
Em algumas circunstãncias, contudo, são elas potencialmente sensíveis à ruptura com as normas, regras, valores do existir hegemônico.
Guattari - no Caosmose - diz que a loucura, a arte, a infância e a paixão são situações fecundas; aberturas ao virtual, ao diferente, ao novo. À realteridade segundo conceito desenvolvido por Gregório F. Baremblitt: é a instância do virtual, do novo, no inusitado, dos processos criativos - caósmicos, imanente a realidade, que é no cotidiano negada, suprimida, cerceada e não - percebida.
A miséria, a dor, a desvalia parecem ser situações próximas das chamadas: situações caósmicas de produção do diferente e novo a partir do caos, dos furos e fissuras da ordem.
Entretanto, estas situações por si mesmas não se realizam na sua potência disruptivas.
São situações-limite, potencialmente disruptiva que se agenciadas, articuladas num dispositivo de mudança opera lugar e funcionalidade para a produção de novos saberes, pela interlocução transversal de saberes diferentes.
Desmistifica-se, assim, o saber num ato de torná-lo apenas mais um saber, outrora único e absoluto.
Desmistifica-se, também, o não-saber num ato libertário de resgate do saber oriundo das experiências vitais, o saber do que pode o corpo, os coletivos... e do saber que esconde e revela as entranhas das nossas histórias.

                                            4.Novos Saberes. Do bom-senso ao parasenso

''Mas porém, eu não invejo
O grande tesôro seu,
Os livros do seu colejo,
Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta
E fazê rima compreta,
Não precisa professô;
Basta vê no mês de maio
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô.''
Cante lá, que eu canto cá/Patativa do Assaré.

O desmonte do não-saber é de fato um efeito instituinte. Produto e produtor...
Sem ele, não há autogestão, nem autoanálise. E os processos autogestivos e autoanalíticos no seu desenvolvimento provocam o desmonte do não-saber e libera a capacidade de fabricar saberes, novos saberes.
No dia-a-dia, o senso comun é desclassificado. Pede-se bom senso...
Todavia, classifica-se o bom senso pela sua sintonia com o saber científico.
Monopoliza-se a verdade. Uniformiza-se as opiniões.
Hierarquiza... Tem-se bom senso quem segue os trilhos do saber maior.
Tudo ciência...
E a ciência tudo explica.
Dela, a norma. O bom senso...
Idolatra-se o bom senso. Ainda que cinzento, utilitarista, excludente.
Ele amordaça o diferente. Os saberes menores...
Serve a ordem, ao real do previsto e prescrito.
Exclui o virtual, o novo, a mudança. A utopia ativa.
Fabrica cópias. Robôs... Robôs práticos e pensantes.
Nega a potência do diferente, da multiplicidade; o singular...
Construir pelo surgimento do novo é transversalizar os encontros numa constante liberação. Liberação de algo...
Libera-se o pensar no pensamento, o pensamento da representação. A diferença da identidade.
E libera-se do bom senso um parasenso.
No paradoxo dos encontros, novos saberes. Saberes que emergem como fulgurações de uma vida implicando '' fiapos de centelhas que saltam de um lance de produtividade a outro.''
Pode-se, assim, construir saberes. Novos saberes, que é a própria vida de pura imanência - liberta - e concretizada pela máquina de saberes diferentes, não mais hierarquizados, que então, rompe o silêncio, a passividade e a ignorância e se torna consistente e fecunda nos dispositivos/agenciamentos autoanalíticos.
Neles, um novo modo de viver... Autonomia.
Também, um novo lugar para os experts - peças articuladas a outras peças onde saberes diversos, diferentes se imbricam num processo de afirmação da vida, de um novo paradigma, o paradigma ético- estético.

                                 5.Conclusão: O que pode o corpo?... Pode saber?

Desmistificando o não-saber, vemos emergir um processo transformador das relações do homem e dos coletivos com as verdades necessárias para clarear, modificar e transmutar às suas inserções no mundo.
Antes, e ainda quase sempre, tão- somente o especialista detinha o saber:

'' Quando aparece um sujeito,
De gravata e paletó,
Todo alegre e satisfeito,
Como quem caça um xodó,
O matuto experiente
Repara pra sua gente,
E, sem tê medo de errá,
Diz, com um certo desgosto:
Ele vem cobrá imposto
Ou pedi pra nóis votá. ''
Vida Sertaneja/Patativa do Assaré.

O não- saber era e é puro silêncio.
Ou, apenas práticas marginais.
Deste modo, institui-se e reproduz um jeito de compreender e gerir a vida, baseado em relações verticais de dominação e poder.
Só a ciência pode...
Ao se desmistificar o não-saber e liberar o homem da sua submissão à lógica do bom senso, senso científico, libera a produção de um parasenso. Novos saberes...
Novos saberes - força instituinte...
Descortina-se a vida e a vida revela o que pode o corpo, um corpo que pode saber nos afectos e percepctos que o mobiliza e que ele produz.
O corpo pode saber...
A escola, o livro, o tubo de ensaio, também; porém, não só eles sabem.
Autoanálise e autogestão - assim, depende da capacidade de se transversalizar saberes diferentes, desmistificar o não saber e liberar o corpo na sua potência de vida que é literalmente, uma sapiência visceral.

'' Mas a grande humanidade
Que de tudo qué sabê,
Nunca adivinha a verdade
Do que vai acontecê.
E tem bichinho servage
Que, com a sua linguage
E a musga da sua voz,
Conta tudo certo e exato
Apois tem bicho no mato
Que sabe mais do que nóis ''
A Festa da Maricota/Patativa do Assaré.

                                Referências Bibliográficas

'' Porém, se na eternidade
A gente tem liberdade
De também sentir saudade,
Será grande a minha dor,
Por saber que, nesta vida,
Minha viola querida
Há de passar constrangida
Às mãos de outro cantador. ''
Minha Viola/Patativa do Assaré.

1 Aliez. E (org). Gilez Deleuze: uma vida filosófica. RJ, Ed. 34, 2000
1 . Assaré,Pativa do. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis, Vozes, 2000
1 Baremblitt, G. Compêndio de Análise Institucional. RJ, Rosa dos tempos, 1994
1 Baremblitt, G. Introdução á Esquizoanálise. BH, Inst. Félix Guattari, 200
1 Baremblitt, G. Saber, Poder, Quehacer Y Desejo. Buenos Aires, Nueva Vision1988
1 Foucault, M. Microfísica do poder. RJ, Graal, 1990.
1 Freire, P. Pedagogia do Oprimido. RJ, Paz e Terra, 19
1 Touraine, A. Critica da modernidade. Petrópolis, Vozes, 1994
1 Vázquez, AS. Filosofia da Praxis. RJ, Paz e Terra, 1977
1 Vásquez, AS. Entre a realidade e a utopia. RJ, Civilização Brasileira, 2001

                                                                                                         

2 comentários:

Daiane Leal disse...

Oi, Jorge, eu (Daiane Leal) e minha colega Angelly Moreira, estamos formando em Jornalismo e fazendo o trabalho de conclusão de cuso, em formato revista, sobre a Fundação Baremblitt. Gostariamos de contar com sua ajuda, é um tema novo para nós e diferente, não podemos errar neste trabalho.
Podemos marcar um horário para conversar o mais breve possível?
Nossa orientadora Indiara Ferreira, foi quem nós aconselhou a te procurar.
Por favor me informe uma forma de entrar em contato com você. (daileal@gmail.com)
Desculpa a forma de contato.

Abraço

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Queridas, estou disponível...
Me chame:
utopiativa@netsite.com.br
(34)99718915
Abraços, vamos construindo, sabendo que o sol chega depois da esuridão...
jorge