quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Terapia e arte

Rita Lee: do divã às constelações estelares

                                    jorge bichuetti




O ofício de terapeuta é uma arte.
...Uma arte complexa e angustiante. Lidamos com pessoas, e com pessoas geralmente no abismo de uma crise.
Diante de nós, vemos vida, mas a vida nas encruzilhadas do destino.
Dor, perda; sofrimento... Solidão, vazio... Desamor...
Eis o temário predominante de uma terapia.
São feridas, cicatrizes; sonhos não- realizados, frustrações...
O terapeuta vê diante de si os excrementos da vida e a potência de um corpo que se desconhece vida e por isso se fez lágrimas, sintomas, padecimento...
Se delira... Não ousa delirar, sonhando um romance de amor e felicidade.
Se escuta vozes... Não ousa escutar um hino de esperança.
O terapeuta lida com vida. Mas frequentemente ele tem por demanda vida estropiada, alma dilacerada.
Insensível, ele nega-se a ver o calvário e evita devir-se Simeão, o cirineu.
Anuviado, ele omite-se e foge da possibilidade de se devir Zumbi, o libertador- guerreiro dos Quilombos.
Ele trabalha, e ás vezes, atrapalha, pois crê na ilusão de que é preciso abster-se, não- cooperar e de que é necessário frustrar, deprimir...
Pretende-se ajuda, explicando o adoecer.
E de tanto rondar pelas feridas do corpo e excrementos da alma, num devir- urubu, ele se alimenta de carniça, e não vê que a dor alheia é um analisador do que precisa de tratamento, esta merda de vida, vida medíocre, rotina robotizada; este mundo mercantil e desumano, consumista e cheio de competição.
Assim, ele age fazendo do entristecer sua arma de ação.
É a terapia- saber prévio, codificando e adaptando, recondicionando o homem para que servil ele retome a lógica do mundo de vendedores e vencedores.
É a terapia- Pilatos e soldadesca romana: lava-se as mãos e ainda se dá vinagre, diante da sede e se tem sempre uma lança com a qual se fabrica da queixa uma chaga à espera de que da cruz venha a ressurreição.
Diante da dor, renunciei-me urubu e tento terapeutizar num devir- beija- flor, sabiá... Curió, pardal... João- de- Barro...
Isto é, inspirado na multiplicação dramática, uso com bastante freqüência a multiplicação musical.
É a música como mais um instrumento na caixa- de- ferramentas da terapia , de uma terapia que se define vida produzindo vida, vida nova , mais vida.
Relembrando casos e casos, devo admitir que minha dúvida para com Freud, Jung, Lacan, Reich; Pichón- Riviere, Baságlia, Deleuze- Guattari e Baremblitt não é maior do que a minha dúvida para com Rita Lee.


Rita Lee é uma estrela...
Quando nasceu, nasceu deixando astrônomos e astrólogos enlouquecidos; o céu perdeu e o chão da Terra se divinizou... O divino humana de uma estrela que se ocultou, num terno e rebelde devir... A estrela se fez mulher, flor, poesia...
Rita Lee é agora uma índia cosmopolita, uma deusa tupiniquim; uma fada cibernética e uma bruxa angelical...
Bela e criativa. Uma guerreira desarmada, que mulher valentia ousou enfrentar crítica e críticos para manter sempre, desarmada, porém , jamais desalmada. Alma livre, mutante... Alma- invenção...
A estrela nasceu... todavia, para isso... quanta mutação.
A cegonha intimidada a entregou e ela veio numa nave espacial que enamorada, com ela ficou, fazendo do coração (Lar? Bar? Templo?... Sei lá!...) moradia.
Cantando é intérprete... Através dela, canta um coro de anjos e querubins que traduzem as lágrimas e sonhos de um povo mutante, e multiplicam os frutos já não mais evitado, embora ainda proibidos, e, também, ensinam que atrás do porto existe uma cidade: São Paulo na Guanabara, Nova Iorque em Jerusalém... Ouro Preto nascendo Paris e Londres no meio do Pantanal...
Ela é feiticeira e santa, terapeuta e menina- mãe.
Pop... Rock... Canção...
Simplesmente, mulher, singular e plural, que mundana nos leva aos céus do amanhã e que divina é a ousadia de desejar, sonhar e lutar fazendo do presente, o amanhã teimosia que se exige já.
Ela é inspiração, provocante...
Provocação, inspirando o virtual, o novo, o inusitado.
À ela devo alguns bons momentos da clínica vivida, onde suas canções me permitiam agir, com ternura, sem perder o poder do fogo, a capacidade de impactar nos processos terapêuticos, vinculando compreensão e solidariedade, mudança e vida

Escolhi quatro lembranças... Já que são inumeráveis os casos que roubei suas canções para lidar clinicamente com determinado conteúdo exposto.
Nos tempos atuais, um texto longo... Ah! Corre o risco de ser lido apenas pelo próprio autor.
Primeiro: Senhor F. quarenta anos. Casado, dois filhos. Funcionário público.
Motivo do tratamento: depressão, stress, desinteresse pela vida, pelo trabalho e pela família.
Depois de três meses de terapia, ele reclama :
a minha vida é um zero à esquerda. Nada tem graça. Custo a suportar as oito horas de trabalho, chego em casa, desmonto... Durmo e no outro dia é tudo igual.
Olho. Em silêncio, vejo sempre de terno pardo; repetindo as mesmas queixas.
Recordo outras intervenções: o desmonte da sua dependência materna e sua antipatia pelo pai; a criança superprotegida, a lenda familiar de que ele gerenciaria a fazenda, substituindo o patriarca, fazenda perdida na falência familiar; e a sua obsessão submissa no trabalho etc, etc e etc.
Recordo, e ainda, em silêncio, escuto uma ressonância musical. Dentro de mim, uma voz ressoa insistente.
Expontaneamente, eu canto:
o Se Deus quiser/ um dia eu quero ser índio,
Andar pelado pintado de verde.
Num eterno domingo...
Espanto. Ele chora e dialogamos longamente.
Falamos sobre rotina e lazer, sobre cotidiano e prazer... Desgaste e desfrute... Etc, etc e etc...
Conversamos sobre a impossibilidade de se sobreviver, longe dos nossos desejos...
Das linhas de fuga- experimentos onde somos nós e fugimos da rotina e do esperado.
Inesperadamente, ele dispara uma série de mudanças na sua vida: passa a reunir amigos e familiares e cozinha, num jantar íntimo semanal; começou a sair, a se divertir e alugou um sítio, onde cuida de um pomar, e uma pequena plantação de feijão.
E agora, o funcionário- índio, o homem que redescobriu o seu domingo vive assintomático, sem medicação e sem queixas.

Segundo: Assembléia geral do Núcleo de Atenção Psicossocial - Maria Boneca, Uberaba. As mulheres reclamam; falam das dificuldades com o corpo, da violência masculina; de gestação e filhos...
Reclamam... E reclamam, assumindo um papel e uma imagem impregnados de desvalia.
Os homens sorriem... Sorriso baixo, todavia irônico.
Discutimos: machismo, a questão feminina.
Relembro teoria espúrias: a inveja do pênis, a castração; heranças de uma ideologia travestida de ciência. Imaginário do ritornelo edípico.
Peço a palavra e ouvindo notas musicais que iam se conjugando, cantei:
o Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra.
Um sexto sentido maior que a razão...
O debate se aprofundou... Todos falaram...
Desta conversa surgiu dois trabalhos: uma oficina de cidadania em que a questão da mulher e o machismo foram lidados e um laboratório ''Elegia à mulher'', descrito no livro ''Lembranças da Loucura''.
Hoje, a problemática mudou... O machismo, às vezes, ainda surge, porém, já se depara com coletivo de homens mulheres que diante dele assume uma posição de luta: por isso, não provoque,/ É cor de rosa choque...

Terceiro: O jovem P. vinte anos, em crise delirante. Mostra-se resistente. Situação preocupante, quadro se agravando e ele, no meio de delírios e atos desconexos, comunica:
o Não volto... Não quero tratamento... Meus vizinhos me chamam de louco..
Preocupado, sinto-me paralisado. Sem argumentos. Conheço sua história. Sei dos preconceitos enfrentados no cotidiano.
Penso... Penso... Não encontro argumento novo. Já havíamos conversado longamente, várias vezes.
Impotente. Escuto um som ressoando, provocante e revolucionário e faço dele a minha intervenção:
o Mas louco é quem me diz / E não é feliz... Não é feliz... Eu juro que é melhor...
Se eles são medíocres, estigmatizadores; se eles desconhecem cidadania, direitos humanos, eu prefiro ( e prefiro mesmo) os que ousam ser Cristo, Napoleão, Di Capri, Allan Delon... Leila Diniz...
''Eles rezam muito'', mas são o inferno.
Atualmente, este usuário é um excelente advogado da loucura. Sabe se colocar, defende o diferente, o singular; o direito e a crise.
E, principalmente, continua se cuidando e produzindo vida, arte...

Quarto: A adolescente Z. Crise impertinente. Rodopia, vaidosamente, num delírio monotemática e repete de cinco em cinco minutos: Eu não a mulher mais bonita.
Não se interessa pelo trabalho terapêutico.
Um dia, depois de ouvi-la, n vezes na mesma cantinela, atrevi- me e cantei: Miss Brasil 2000...
Ela levou um susto. Arredia, quis desconversar, contudo após uma hora, expontaneamente, procurou-me e numa conversa sincera e lúcida, discutimos: estética e ética, outros talentos, a sabotagem de não se investir no que temos de alheios e negando os próprios e sobre o caráter singular, a beleza pessoal.
Agora, ela canta , escreve, tece...
Não é Miss; mas vai construindo um 2000 que lhe tem parecido ''legal''.

Estes exemplos clínicos não podem ser desprezíveis. Quando pensamos o pouco que se consegue interpretando e tantos psicóticos cronificados, desamparados, devo ser autêntico e dizer:
o Rita Lee, que tal nós todos- loucos, artistas, aprendizes de feiticeiros- nós o humano que ainda louco pelo novo, por um mundo novo, numa banheira de espuma, numa nave espacial ou simplesmente no palco do cotidiano, descobrindo a loucura de ser... Ser... Viver, sobreviver...
Sobreviver, resistindo, viver, sonhando...
Assim , finalizo, dizendo, também:
o Ave, Rita Lee... Seu canto é poesia- de vida e de vida capaz de afugentar os fantasmas da morte que tantas vezes nos atravessam a estrada.
Sigamos , cantando...
E rogando aos deuses que a ''Estrela do devir'' possa persistir, seguindo também, encantando este mundo que então estará mais próximo do mundo de justiça e liberdade, ternura e solidariedade, que mundo- clamor de um povo que pode se descobrir mutante.

2 comentários:

Samara Dairel Ribeiro disse...

Se Deus quiser
Um dia acabo voando
Tão banal assim
Como um pardal
Meio de contrabando
Desviar do estilingue
Deixar que me xingue
E tomar banho de sol
Banho de sol!
Banho de sol!
Banho de sol!...

Se Deus quiser
Um dia eu viro semente
E quando a chuva
Molhar o jardim
Ah! Eu fico contente
E na primavera
Vou brotar na terra
E tomar banho de sol
Banho de sol!
Banho de sol!
Sol!...

Se Deus quiser
Um dia eu morro bem velha
Na hora "H"
Quando a bomba estourar
Quero ver da janela
E entrar no pacote
De camarote...

Rita Lee

Se Deus quiser, e ele há de querer!!! E enquanto isso vamos cantando, bailando e sonhando... bj
Samara

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Samara, um dia, aprendemos a volorizar o desejo e a vida, mas passamos muito tempo gastando o tempo num faroeste pós-moderno...
A tribo e suas cachoeiras, o vento e as estrelas, os pássaros... nosssos copanheiros de viagem nos esperam...
abraços jorge