quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A MÚSICA NA CLÍNICA

Roda de viola
   Jorge bichuetti



A terapia nunca foi um patrimônio exclusivo do saber científico.
Curamos doenças com pajés, mães- de- santo, benzedeiras... Com mandingas, água benta...
E criamos na vida, no cotidiano da existência técnicas e táticas de lida como nosso sofrimento psíquico.
Moffat resgatou no roda de chimarrão o modo popular de se cuidar, dialogando e silenciando. Magicamente, criando uma roda de pertença, integradora, capaz de mobilizar a formação de um coletivo no presente e de manusear conteúdos ancestrais.
A cultura popular, de fato, é uma fonte fértil e rica de inspiração para a montagem de um trabalho terapêutico, tendo a vantagem de tramar de um modo já habitual, vivido no dia- a- dia. Sendo, assim, menos alienígeno, já que reporta ao costume, a uma realidade cultural experienciada por um grupo, uma tribo, uma coletividade.
E é, neste sentido, que fizemos da roda de viola uma oficina terapêutica.
Quem já não se agrupou em torno de uma viola ou violão; num bar, canto de casa ou quintal, e passou horas divertindo- se no fluir de uma cantoria, onde uma música evoca outra, e esta outra, outra, outra?...
Quem experienciou uma roda de viola não lhe desconhece o efeito terapêutico: ela integra, alegra... Permite evocar numa catarse suave e intensa dores e sonhos, amores e acontecimentos, antigos e atuais... Possibilita expressão artística o nó na garganta, a fantasia inconfessável... E através dela, elabora-se multiplicando canções que permite a alma fluir, espontaneamente entre sulcos, planícies e planaltos da sua realidade interna.
Nela, oficina de roda de viola, usamos a potência do inconsciente de se devir multiplicidades.
Multiplicamos... E deixamos, a roda girar pela multiplicação musical das ressonâncias ocorridas, e as notamos bifurcando, dando complexidade a um dado tema evocado.
Lembraremos aqui três oficinas...
Certa vez, há anos, um grupo de doze pessoas, usuários, terapeutas e um violeiro, reuniu-se... A cantoria começou.
''Caminhando e cantando e seguindo a canção. Somos todos iguais braços dados ou não.''
Canto alto, forte. Alguém recordou e iniciou: ''Bem , que eu me lembro... Dá gente sentado ali, junto a fogueirinha de papel... Amigos presos, amigos sumindo, assim...''
O grupo para. Fala-se da ditadura, do governo, das lutas populares...
Uma pessoa pede: ''A vida de gado, povo marcado, povo feliz...''
Comenta-se: Vive-se tão mal, e a gente é tão submisso...
A viola canta: ''Liberdade, liberdade... Abre as asas sobre nós. E que a voz da igualdade seja sempre a nossa...''
O coordenador agencia um diálogo: o grupo mostra-se indignado. Reclama da injustiça social. Fala da fome. Do SUS que não funciona... De deputados parasitas... E das vitórias legais: a anistia, o fim da ditadura... Do fora Collor...
Elege-se uma música de fechamento e todos cantam '' Apesar de você... Um mais desinibido ensaia uns passos de dança, o grupo o acompanha e a oficina termina num catártico e guerreiro carnaval: ''Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...''Com bis e roda dançante...
Você sabe o que é ter, um amor, meu Senhor...
Basta um canto de paixão e logo, junta-se... Coração e música.
Lembro- me de uma oficina: ocorreu expontaneamente no refeitório.
Um violão e uma voz melodiosa disparou o agrupar e o acontecimento em si: ''Eu tenho pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer... Como é grande, o meu amor por você. ''
Uma usuária chora, conta seu amor, seus ciúmes e a perda. Continua chorando...
Pedimos e ele ouve abraçada com uma terapeuta que a consolava na nudez de uma companhia – cumplicidade: '' De noite, eu rondo a cidade ... a te procurar...''
Uma vozinha, saltitante, emenda: ''Saudade, palavra triste... Quando se perde um grande amor...''
Uma psicótica, em crise, levanta e interpreta, misturando Dalva de Oliveira com Elke Maravilha, uma canção do repertório sertanejo: '' Entre tapas e beijos... É ódio, é desejo... é paixão, é loucura...''
Todos querem falar. Organizamos, e um a um contaram suas dores: amor- perdido, traição, infelicidade... Saudades do primeiro amor... Desejos de se encontrar alguém... Perdas, sonhos...
Uma terapeuta intervém, cantando: ''Tudo era apenas uma brincadeira, e foi crescendo, crescendo... me absorvendo e eu vi assim... Completamente seu...''
Um diálogo é iniciado e nele o grupo se sente motivado; pede, então, uma canção: ''Começar de novo, só contar comigo... Mas valeu a pena... Ter amanhecido...''
A cantoria cedeu... A fome também solfejava: era hora do café. Alegres, risonhos degustaram o pão nosso de cada dia.
Vendo- os, notei... Ressonâncias musicais que permaneciam, em mim, orquestrando a vida a ser vivida.
A oficina terapêutica é um instrumento cuja potência não esta dada a priori.
Alguns terapeutas, mecanicamente, manuseiam este instrumento e ele se converte num passatempo pueril; outros dele fazem um ato de brincar e propiciam devir-se criança na maturidade de uma vida que vai-se tornando plural; há quem obedece um roteiro e aplica- o codificando emoções e fantasias, e o usuário passivamente se vê dissecado, sem espaço de se emergir análise e relato, expontâneo e singular; e, muito pressionados pela necessidade de produzir delas convertem numa tarefa cuja meta é produzir e vender, é a oficina reprodutora do universo mercadoria- troca- mercado.
A arte possibilita redimensionar o terapêutico e a reabilitação.
E as oficinas inspiradas nesta revelam o quanto de insucesso está condicionado a uma deformação do analista que pensa a terapia como condicionamento do psicótico ao mundo de vencedores, e percebendo isto, ele omite- se e não se expressa nos fracassos, no demasiadamente humano, como a lágrima indecifrável de quem sente a saudade de um grande amor perdido; e também o insucesso das oficinas reabilitadoras que se pretendem forjar mercadores, adaptá- los, submissamente, ao mundo de vendedores, e eles, assim, não podem produzir mercadorias que somente se realizam consumo no deleite do olhar de quem se sente re- definido numa obra, como criador de vida tão- pessoal que frequentemente se situa na ordem do não comercializável.
A roda de viola é uma oficina singular: Alegria. Cultura Popular. União grupal...
Uma bricolagem: de cantos e cantigas.
Nela a alma se mostra e se revela. Conjuntamente, fabrica-se um teatro musical sui generis... Script não previsto, e um a performace... E o encanto de ser uma obra de uma única apresentação, de um lado, a permitir fluir espontânea e do outro, leva-a a condição de um acontecimento que somente perdura no experimentando, no construindo pelos autores.
Já vivemos muitas rodas de viola. Na Vida, na clínica...
Finalizo este texto, relembrando...
Um dia, alguém sabendo de mim, canta: ''Naquela mesa , ele sentava... E dizia contente o que fez de manhã...
Esta música é minha. Dela me apropriei. Com ela chorei, elaborei o luto da perda de meu pai: um câncer cruel e repentino, roubou-me, a sua presença.
E com esta música, eu o conservo vivo: no amor inesquecível, nas lições aprendidas...
Ouvi. Coração apertado... Chorei, chorei, até ficar com dó de mim...
Falei dele. As pessoas desejam saber: Como era ele? Se ele era legal? Etc, etc, e etc...
Olhei, de novo grupo. Impliquei- me. Falei da saudade...''Quanta falta você me faz.''
Trabalhando numa grupalidade, numa clínica, o terapeuta acaba descobrindo que muitas vezes o coletivo exige, demanda, possibilita que este se trabalhe. E eis uma questão difícil: se trabalhar sem... Sem roubar a cena, isto é, sem roubar o lugar do usuário... E sem perder o seu lugar de terapeuta.
Escutei, em mim, rumores : ''Ave Maria no Morro'', ''Amigo, a quanto tempo...'' ; Chuá, Chuá...
Neguei- me a cantá- las. Eram ressonâncias que bifurcavam o universo do meu amor paterno e fraternal; porém, senti nelas ressonâncias que manteria o grupo - prisioneiro da minha dor, da minha história.
Esperei... Dei tempo ao tempo...
Ressonância é ressonância; e funciona pela veracidade afetiva; não é construto intelectual - intencional. Se falsa, paralisa, dispersa...
De repente, notei uma ressonância. Os Titãs... Tão belos, tão revolucionários...
E uma ressonância que me pareceu quebrar a melancolia- piedade e poder gerar outras multiplicações...
Cantei, então: ''Marvim, agora é só você; eu fiz o meu melhor... E o seu destino eu sei de cor... Mas era um grande coração. Vivia a vida com muito suor...''
Logo, alguém acrescentou: ''Pai, você foi meu herói, meu bandido...''
Daí, veio: ''Mamãe, mamãe, mamãe... Eu me lembro o chinelo na mão. O avental...''
Uma explosão de lembranças: casa, família, avós, brigas, retornos... Dificuldades, entendimento a posteriori, o não- dito... Diferença de gerações... Saudade, saudade, saudade...
Uma senhora quando ouviu que a oficina iria terminar: hora dos grupos terapêuticos, sugeriu: uma música, cantada em pé, de mãos dadas em homenagem aos nossos, nossos familiares... Um grito de amor.
'' Tem certos dias, em que eu penso em minha gente... Sinto no peito, uma vontade de chorar...
São casas simples, com varanda na calçada... E na parede, escrito em tinta, que é um lar... ''
A oficina terminou... A vida... Continua...
A noite escrevi... Garimpo, Conceição, texto incluído no livro ''Crisevida''...
A oficina de cantoria é fértil, fertilizante.
É catarse e é catalizante : química, humores... Sentimento!
Resgata-se um costume: a mesa de bar, amigos no quintal, festa...
... Mas é igualmente um instrumento que dá sabor e arco- íris... É vida. Vida numa clínica onde o psicótico excluído e marginalizado tem que lutar minuto a minuto para não aceitar as correntes do status quo, forjando- o devir- tristeza... Necessidade esta em que normais confessam o medo de descobrir na alegria de uma loucura um analisador desta nossa vidinha, cinza e melancólica, vazia.
O canto salva... Provoca, questiona e motiva...
Não foi fortuito a escolha de Deus; quando Jesus nasceu, ele não quis anunciá- lo no escrito de um pergaminho ou no sermão de um erudito, ele- Deus- sabedoria- convocou anjos e querubins que na simplicidade de uma manjedoura, fizeram uma roda de viola e orquestrando a voz das estrelas que iluminam os céus entoaram: Glória a Deus... Paz aos homens...

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