sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

DIÁRIO DE BORDO : SINGULARIDADE E DEVIR

QUEM SOMOS?
jorge bichuetti


   A loucura sempre foi um recurso restritivo da singularidade e do devir.
   Definida pela normalidade e esta pela média das reações do homem comum, valoriza as repetições, o status quo, o jeito de viver funcional a um sistema de exploração, dominação e mistificação, que marginaliza e exclui o diferente, o novo, a vida nômade e criativa de quem se inventa e a vida dionisíaca de quem busca o desejo e os sonhos...
   Assim, a loucura se fez patologia, e normalidade, a expressão da racionalidade técino-instrumental de mundo de vendedores e vencedores... A ciência codificou os limites da vida...
   ... Mas a vida pulsa isurgente e se anseia livre.
   Nossos corpos sentem os clamores da vida e os sentimos, quase sempre, numa lágrima de insatisfação ou num  num vazio tedioso que reivindica novas experiências, novos caminhos, a mudança...
   São os clamores da vida que se anseia potência singularizante e devir.
   Desejamos o novo, mas tememos; afinal, se ousamos seremos dignosticados, fatalmente... Sremos ditos por loucos.
   O relógio e calendário, o vigia e o capataz, a cãmara de filmagem e celular... Um mundo de controle.
   É necessário criar linhas de fuga, vielas de vida nova, singularizações insólitas...
   A Luta Antimanicomial gerou uma nova clínica e uma nova perspectiva de destino, é preciso fazer caber no socius o diferente.
    Se nos queremos diferente, longe da mesmisse, recitemos Fernando Pessoa, com o fervor de quem canta uma oração:
                                    Poema em linha reta


 Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


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