Há estética nas emoções
Alzira Borges da Silva
No livro “A Insustentável Leveza do Ser”, Milan Kundera dá vida a personagens livres, inteligentes e inquietos, contextualizados no cenário repressor da famosa Primavera de Praga e esta mistura intrigante se transforma em ingredientes capazes de temperar deliciosamente algumas experiências cotidianas com a estética e com a liberdade. A afirmação “a estética do acaso é o último estágio da história da beleza” revela o que a personagem sentiu ao encarar pela primeira vez o conjunto arquitetônico de Nova Iorque, construído casualmente durante o crescimento da metrópole ao longo dos anos. E esta afirmação pode traduzir com simplicidade, sensibilidade e precisão algumas emoções casualmente despertadas em qualquer um de nós no cotidiano.
Levando em consideração o dicionário da língua portuguesa, que traz no primeiro conjunto de sinônimos a definição da palavra acaso como “acontecimento incerto ou imprevisível; sucesso imprevisto, casualidade e eventualidade”, torna-se possível trazer para as experiências pessoais e emocionais rotineiras um leque recheado de vislumbres estéticos. Mas, para aproveitar essa possibilidade é preciso ter consciência que, resumidamente, a estética é a ciência que estuda o belo e que “os olhos que vêem o mundo são o mundo que os olhos vêem”. Se fosse possível colocar as experiências numa vitrine, com certeza aquelas desenvolvidas em situação de crise seriam as mais interessantes, principalmente porque tudo depende de como a gente vê as coisas.
É sabido que qualquer ser humano em crise pode, por exemplo, desfrutar de sentimentos arrebatadores na tentativa de encontrar uma luz no fim do túnel. Em geral as crises são casuais e, quase sempre, quem está no meio delas consegue ver apenas o caos. Sendo o caos a confusão geral dos elementos é praticamente impossível descobrir o fio da meada e, nesta tentativa nasce a ansiedade, que pode ser classificada aqui como uma emoção pouca estética e nada produtiva. Num estado de ansiedade, a pessoa não encontra o próprio foco, não sabe para onde quer ir, preocupa-se desnecessariamente com os resultados e fica ranzinza. A ansiedade seria desclassificada da evolução histórica da estética das emoções por ser de uma feiúra descomunal.
Para transformar a ansiedade em outra emoção mais bonita é necessário que o ser humano aprenda que em situações de crise o melhor a fazer é se afastar do caos, pois ao enxergá-lo de longe, é mais possível isolar elementos e criar estratégias de solução. É importante também reconhecer que a vida não tem roteiro, o elemento surpresa é inevitável e o acaso precisa ser enfrentado e não repudiado. Tudo isso é tão possível quanto difícil. Mas é também muito prazeroso. Observar uma situação complexa com curiosidade para entender os aspectos ali embrenhados requer distanciamento emocional e isso é difícil, afinal o problema só existe porque provoca dor.
Em geral as dores são caminhos que podem fatalmente conduzir ao sofrimento. Mas, ao acreditar na possibilidade de encontrar uma solução, desenvolvemos nossos sentimentos de auto-realização. Munidos deste sentimento admitimos com confiança a existência das dificuldades e numa dinâmica praticamente intuitiva enfrentamos a crise. E aqui entra o prazer. Existem muitas maneiras de sentir prazer durante a vida. E com certeza uma das melhores é lapidar todas as nossas características. Enfrentar as crises pode significar para as emoções da humanidade o que as ferramentas do escultor significam para o conjunto da obra: instrumentos que transformam material bruto em obra de arte.
Os seres humanos têm condições de incorporar esta prática ao cotidiano. Para isso é importante libertar-se dos modelos prontos de felicidade, do apego à aparência e, sobretudo da negação das suas próprias emoções negativas, pois tudo isso precisa e merece ser lapidado. Admitir que a felicidade de um não depende da felicidade do outro ou que a melhor imagem é aquela que temos de nós mesmos, ou ainda que tristeza, medo e até mesmo raiva são sentimentos doloridos e incômodos, mas fazem parte do ser e do exercer humano. Quando deixamos as emoções fluírem com a autenticidade e a coerência dos nossos princípios conseguimos agregar “casualmente” valor estético a história da beleza das emoções humanas e nos tornamos livres de auto julgamentos injustos.
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