segunda-feira, 12 de março de 2012

BONS ENCONTROS: AÇÃO E SUBJETIVAÇÃO; O FIM DA SERVIDÃO... TEXTOS DE AMAURI FERREIRA...

Obrar

           Amauri Ferreira

Realizar uma obra não é algo que nasce espontaneamente da consciência, tampouco obedece algum projeto finalista. Dedicar uma parte do dia, ou uma parte da semana, para se afetar por diversos tipos de sons e imagens, leituras de textos, inclusive observações de miudezas, fazem parte da grande tarefa de obrar. Por isso é fundamental saber o que se escuta, o que se lê, por onde se caminha, pois quando as manifestações artísticas servem para o entorpecimento, certamente não atendem à sublime tarefa de obrar. Não podemos nos sentir obrigados a conhecer os grandes filmes ou as grandes obras literárias de todos os tempos como condição para engendrar as nossas próprias obras. O excesso de filmes, músicas ou livros pode, ao contrário, obstruir essa tarefa. E ao dizermos isso não queremos, de modo algum, negar que a erudição possa estar a serviço da tarefa de obrar, mas queremos apenas observar a importância da distinção, que muitas vezes não é nítida, entre a distração de si pela erudição e o seu uso produtivo. Um rígido, frio e estéril profissionalismo acadêmico, por exemplo, está muito distante da irresponsabilidade inerente ao amadorismo que expulsa certas obrigações entediantes. E o amadorismo, aqui, não indica indolência, mas uma entrega àquilo que se faz por amor, através de uma indispensável mistura de autodisciplina, rigor, agressividade, estética, versatilidade, além da  paciência necessária para organizar as idéias que surgem inesperadas e que, muitas delas, nos escapam sem a ínfima possibilidade de retornarem do mesmo modo que surgiram em nossa consciência. Por isso, exige-se um cuidado peculiar com a organização dos signos: os erros que surgem nos indicam, sempre afetivamente, que tal organização não é a melhor para tentar exprimir as nossas idéias. Então, apaga-se parte do que feito ou joga-se tudo fora mesmo, sem se apegar a nada, e coloca-se novamente no árduo e paciente processo de permitir que as idéias que nascem em nós sejam organizadas por meio dos signos, como trabalho indispensável para inventar um ritmo que permita que, ele mesmo, o autor, sinta a confiança necessária para expor a sua obra ao mundo. Afinal de contas, não sentimos nenhuma vergonha por expressar nossas idéias quando nos conhecemos por meio da introspecção... E, com isso, nos alegramos por sermos generosos... Algo feito, materializado, nos dá ainda mais confiança na vida, na sua absoluta potência de obrar também através de nós. 

Escravidão

           Amauri Ferreira

Não existe exercício da liberdade sem alguma autodisciplina, esforço, treino, paciência. Portanto, para viver livremente é necessário adquirir um certo costume  (o costume dos criadores), distinto do costume da moral dominante. A escravidão é sinônimo de indolência, de passividade, de ausência de si – e que não está necessariamente relacionada a um trabalho que apenas é exercido em razão da necessidade de obter um salário para sobreviver. O fato de ser funcionário de uma instituição não é suficiente para determinar a escravidão de alguém. Se é escravo quando se deseja a escravidão como único meio para ocupar o seu tempo, porque não se sabe o que fazer com a capacidade de exercer a sua própria liberdade. Dito de outro modo: escravo é aquele que deseja ter a sua existência organizada do exterior, não somente como organização que está diretamente relacionada à extração de um trabalho útil à perpetuação capitalista, mas também como organização do seu tempo, dos seus afetos, do seu pensamento, das suas distrações, das suas relações com o corpo. E como as novas tecnologias, pelo seu uso vulgar, reforçam isso tudo, é notório que o seu consumo compulsivo tenha a função de entorpecer.  Desejar ser disciplinado pelo exterior, vampirizado, com a finalidade de obter pequenos prazeres e alívios momentâneos – pela lógica do escravo, isto é muito melhor do que a angustiante sensação de não ter o que fazer com o seu dia ou, até, com a sua própria existência. É por isso que os estímulos sociais que demandam respostas rápidas, eficientes, sem espessura de tempo (“o tempo passa rápido”), são desejados por eles. Evidentemente, são raros os que conseguem exercer a sua liberdade, sendo assalariados ou não, pois é escravo também aquele que, mesmo sem receber um salário, continua a viver de modo exterior a si mesmo. Sem dúvida, exercer uma atividade doentia torna mais difícil – mas não impossível – o exercício da liberdade. Porém, não é menos escravo quem está, supostamente, mais próximo de exercer a sua liberdade por estar livre da atividade assalariada, do trabalho maquinal. O que mais acontece é que muitos indivíduos assim desejam voltar a ser vampirizados para sentirem-se úteis... A escravidão, portanto, não está relacionada ao aspecto social e econômico, mas à contínua negação da capacidade de exercer a nossa liberdade de obrar. 
FONTE:  http://amauriferreira.blogspot.com/


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