A utopia pode e deve acontecer
Juvenal Arduini confia no olhar libertário da juventude
André Azevedo
1 período de Jornalismo
Monsenhor Juvenal Arduini é filósofo, antropólogo, escritor e conferencista. É membro efetivo da "International Society for Metaphysics", "World Phenomenology Institute", entre outros. Foi professor de Filosofia Geral e de Antropologia Filosófica na Faculdade de Filosofia de Santo Tomás de Aquino, em Uberaba. Publicou várias obras, entre elas "Horizonte de Esperança", "Destinação Antropológica" e "O Marxismo". Hoje, realiza missas na Capela do Hospital São Domingos, dá assistência religiosa aos enfermos e acaba de lançar o livro Antropologia, Ousar para Reiventar a Humanidade.
A entrevista com o antropólogo Juvenal Arduini foi concedida no dia 22 de março em uma sala do Hospital São Domingos.
Revelação: No livro você cita um autor que disse "o mal muito propagado hoje é a apatia". Você diria que a apatia é justamente o grande mal da humanidade?
Juvenal Arduini: Dizer que a apatia é o grande mal pode ser um pouco exagerado. Pode não ser o maior, porque há outros mais graves. Mas é um grande mal. Porque a apatia imobiliza, ela é estéril, torna a vida fixada, sem movimento. A apatia dificulta demais a movimentação da sociedade. Devemos eliminar a apatia porque é um ponto de partida totalmente negativo; aliás, nem é ponto de partida.
Revelação: Você alerta também para o ousar maduro. Como é isso?
Arduini:É claro que não é todo ativismo que é a solução. A apatia é uma falha. O apático cruza os braços e deixa que as pessoas, mais atrevidas até, possam ir mais longe. Por outro lado, quando a gente condena a apatia, não se está justificando todo tipo de ativismo. Por isso devemos refletir em vários ângulos, porque há ativistas que são salteadores, estupradores, ou outras coisas também.
Revelação: Você considera contra-senso de ecologistas medíocres, quando falam de preservação da natureza mas negligenciam o ser humano. Você vê esse tipo de comportamento nos atuais movimentos ecológicos, como o Greenpeace, por exemplo?
Arduini:Eu não queria indicar casos concretos, mas nós podemos perceber que às vezes há uma desproporção nessa questão de causas ecológicas. A ecologia é um grande valor. Eu mesmo a defendo. Só que a ecologia é vista muitas vezes como ambiente, o cosmos... – que também beneficia o ser humano, não há dúvidas nessa parte. Mas se nós formos fazer uma verdadeira hierarquia de valores – e quando falamos nisso, não estamos dizendo que um ideal é valor e outro não tem valor; a hierarquia diz que há vários valores, mas às vezes não vão ter o mesmo peso – então eu posso ter um valor importante, mas há um mais importante ainda. Ou posso ter um valor muito importante e outro menor. Bem, nós precisamos da água, precisamos do ar, da natureza e uma série de coisas. São valores. Pessoas dizem: mas sem eles a humanidade não vive. É mesmo. Só que eles são os instrumentos. A humanidade como tal é o valor máximo.
Revelação: Mas não dependemos totalmente da natureza?
Arduini:É aí que nós temos que refletir inteligentemente. Muita gente fala: mas sem a água, sem o ar, o ser humano não vive. Mas todos nós entendemos que o ser "ar" – que é importante – jamais tem uma complexidade ou um valor que tem o ser "humano", com toda a inteligência, a criatividade, a liberdade – que é capaz, até mesmo, de trazer outras soluções que não as do ar.
Então é isso que nós queremos mostrar. Quer dizer, a ecologia é importante, é meritório o trabalho, é necessário, só que coloco uma prioridade. Essa ecologia tem um valor muito grande e ela é necessária para o ser humano. Agora, o ser humano – se formos colocar uma hierarquia – é a primazia. Mas por ter primazia, não pode abusar da natureza.
Revelação: Vivemos há pouco tempo sob censura feroz do regime militar. Atualmente, gozamos de certa democracia. Entretanto, você afirma que sofremos hoje sob uma tirania difusa, sigilosa. Que tirania é essa?
Arduini:Existem muitas formas de tirania. Tirania é um domínio forte sobre a humanidade. Então, nem só a tirania das armas, da ditadura política, que é verdade. Há outras, e hoje há tiranias muito disfarçadas. Há tiranias até simpáticas.
Quando políticos saem por aí à fora proclamando democracia, proclamando certa grandeza, às vezes ele está apenas defendendo interesses dele e de um grupo. Isso é muito comum. Porque aí nós entramos muito na área do poder.
O poder é uma força muito grande, uma força tremenda. Muitas vezes aparece de modo cruel, brutal, selvagem, que vai arrasando, que vai estragando a vida. A tirania disfarçada é aquela que vai atraindo as pessoas, envolvendo a mentalidade. É uma tirania porque as pessoas ficam "acreditando" numa proposta que, na verdade, é do poder – a proposta não é da sociedade, dos direitos humanos, da dignidade e mesmo da democracia.
Por isso hoje critico muito – não é bem criticar, mas nós precisamos de espírito crítico perante a democracia. A democracia, que nós entendemos em geral como um ideal, é importante. Mas nós temos que perguntar de que democracia nós falamos. Vemos que há "atitudes democráticas", ou chamadas de democráticas, que são totalitárias.
Revelação: Por exemplo?
Arduini:Por exemplo: um ministro quis negar por aí à fora, aos poderosos, que a globalização é anti-democrática. Eles falam até que a globalização é eminentemente democrática. Eles nos dizem isso. Mas não é! O mundo poderoso -– países ricos, grandes corporações – aparecem como democracia, mas que democracia é esta? Os Estados Unidos, por exemplo, foram aliados de Pinochet. Foram aliados também de Somoza. E então eles dizem: precisamos defendê-los porque são nossos aliados. Ora, ser aliado é uma coisa muito relativa e uma coisa ambígua. Porque nós podemos ter aliados autênticos, humanos, com desejo de justiça, e podemos ter aliados tiranos, que enganam, que derramam sangue.
Revelação: Nosso atual governo é constituído por intelectuais de esquerda dos anos 60 aliados a tradicionais representan-tes da oligarquia. O poder no Brasil finalmente colocou a razão à sua mercê?
Arduini:Percebemos que se faz muito disso. Submete-se a razão ao poder. E isso às vezes é feito não por forma violenta, mas por forma capciosa, envolvente, e aí a razão começa a ficar dominada, controlada pelo poder. Mas não aparece como uma ditadura, como um poder violento. Vivemos muito isso hoje.
Revelação: Como enxergamos isso?
Arduini:Por exemplo, temos um governo que aumentou a verba para a publicidade. O que ele vai fazer com isso? Vai ser uma publicidade que vai ajudar a consciência crítica, que vai ajudar a educação, que vai favorecer efetivamente a saúde? Ou é uma publicidade que vai projetar a figura daqueles que têm o poder para que sejam aceitos pela sociedade? E sejam eleitos pela própria sociedade? Então nós temos que pensar muito nisso. Aliás eu tenho sempre muita reserva com relação ao poder. Nós devemos lutar para passar de uma era de muito menos poder e com muito mais a razão.
Revelação: Então você é anarquista?
Arduini:Não sou anar-quista não. Mas acho que a verdade é uma grande força, e muitas vezes tem que discordar do poder.
Revelação: Parece que saltamos de um regime militar meio "1984", (de George Orwell), para uma tirania sedutora de estilo "Admirável Mundo Novo", (de Aldous Huxley), que transformou a metáfora cruel do Big Brother em entretenimento. É mais ou menos isso?
Arduini:Acho que você pode fazer essa comparação sim.
Revelação: O homem é capaz de criar a verdade através da arte. Mas o poder também tende a "produzir" sua própria verdade na intenção de preservar interesses pessoais". A arte tem condições de confrontar sua verdade com a verdade do poder?
Arduini:A arte é um valor muito grande. E esse é o ponto. Nem sempre ela é vista com simpatia pelo poder. É interessante, olhando a história do mundo, perceber que o poder não tem muita simpatia com a arte. A não ser que o artista seja vendido ou submetido. Eu acho muito triste quando um artista fica ali... perto do poder... das autoridades... Não me parece ser uma aliança muito simpática não. Porque a arte é criativa, é independente. Por que nas revoluções, e sobretudo nas ditaduras eles escurraçam com os artistas? Porque os artistas têm uma intuição da verdade, uma visão mais límpida, mais clara.
Quando vi o Madureira fazendo o trabalho dele, aquela exaltação do ser humano, fiquei pensando que certos temas não são admitidos porque aquilo vai desagradar o poder, vai provocá-lo. Então me parece que o poder não tem uma fisionomia simpática. Entre poder e arte, eu opto pela arte.
Revelação: Você critica o idealismo como "concepção abstrata que deduz o mundo real a partir de idéias". Mas o ideal utópico também é visto como um rumo para buscar um mundo melhor. Qual a diferença entre esta noção de utopia aquela noção de idealismo?
Arduini:O idealismo fica muito no plano do pensamento. O filósofo alemão Hegel foi mestre da consciência idealista, do pensamento – que não é totalmente errado. Mas ele projeta muita força e valor na idéia. Por isso que Karl Marx fez grande crítica à ideologia idéia.
Marx não admitia o idealismo. Ele considerava a realidade no aspecto histórico, social. O idealismo é uma visão filosófica que tem também suas verdades. Mas é uma visão mais do pensamento amplo que às vezes não atinge a realidade. Um pensamento muito abstrato. Nem sempre sabe a diferença entre o que é uma idéia abstrata e um fato real concreto. O idealismo tem uma natureza própria e tende a ficar naquele plano, não o da vida, mas no plano do pensamento que circula por aí.
Agora, quando falamos em utopia, ou espírito utópico, é diferente. A utopia ainda não está concretizada. Mas tem uma diferença em relação ao idealismo, porque ela é uma situação que não está concreta mas que pode tornar-se concreta. E que até se deve lutar para fazê-la concreta. Essa é a visão utópica. É aquilo que não existe ainda mas pode e deve vir a existir. Então é muito diferente. Nós temos sonhos que podem, ou devem concretizar-se. E idealismo é uma coisa que nunca se concretiza, que até pode ter uma beleza que circula mentalmente, mas que não seja concretizado.
Revelação: Então é fundamental fazer a distinção?
Arduini:Alguns identificam utopia com idealismo. Então as pessoas falam: é utopia que a humanidade toda possa ser digna, que não haja pobre. Mas eu diria que o idealismo nunca vai concretizar uma solução para essa humanidade. Se nós pensamos na sociedade, temos que lutar para que a utopia se concretize e para que essa realidade utópica, que ainda não existe, possa e deva concretizar-se. Então nós temos que lutar muito nesse ponto, e não permitir que haja uma identificação entre utopia e o idealismo, porque há uma confusão aí nos significados. Que é uma forma também de fugir à uma responsabilidade ao dizer: isso é utopia, isso não vai acontecer, nunca foi assim... Portanto, a gente tem que insistir: A utopia pode acontecer!
Faço mais uma distinção: a utopia não é só o possível. Vai mais longe. Porque só o possível pode ficar eternamente possível e nunca se concretizar. A utopia pode ser possível mas deve se transformar em realidade, deve passar do possível para a realidade.
Revelação: Sua afinidade com univer-sitários é notória. Você vê sabedoria nos jovens?
Arduini:Olha só, não é luxo, não é capricho, mas eu tenho uma afinidade muito grande com eles. Eu olho a humanidade como um todo, mas tem sempre uma coisa que a juventude fala diferente. Porque, sem ir longe, tem duas coisas que ela sempre me impressiona. Porque a juventude – por muito que tenha sido trabalhada – porque não viveu muito, ainda não foi massificada, plasmada pelos costumes, pelos hábitos. Pois uma pessoa de seten... eu já ia falar setenta anos... uma pessoa madura, de quarenta anos, é uma pessoa já acertada. Os jovens não foram tão massificados ainda, tão impregnados da tradição, dos hábitos, dos valores que às vezes não são valores coisa nenhuma. Então eles estão mais livres.
E por outro lado eles têm um olhar que é novo. Eles olham as coisas de modo diferente. Claro que aí já trazem um conteúdo da cultura, mas é muito frequente que eles comecem a olhar diferente.
E por isso que agora volto – e você não viveu na época, felizmente – quando ocorreu o golpe militar, por exemplo. O que aconteceu? O governo foi em cima dos trabalhadores que faziam greve, e dos estudantes. O escritor Alceu Amoroso Lima, que já esteve em Uberaba com a gente mais de uma vez, disse que o golpe militar trouxe duplo silêncio: silenciou os trabalhadores e silenciou os estudantes.
Revelação: A juventude de hoje está mais alienada do que a geração anterior?
Arduini:Tenho uma confiança muito grande na juventude, a ao mesmo tempo sabemos que jovens de hoje também sofrem muitas pres-sões. Agora, por exemplo, nesse de-semprego, o jovem pode ter feito um bom curso para ter uma profissão, mas chega na hora de trabalhar é aquele massacre. Isso força muito a personalidade daquele jovem que precisa trabalhar e tem que se "adaptar" ao sistema. Então eu acho isso muito triste.
A juventude tem critérios diferentes. Eu vejo nas missas. A gente ouve e percebe a sabedoria, a sensatez verda-deira que falam. Às vezes as pessoas dizem: mas não erram? Ora, todos erram. Padre erra também. Errar, nós todos erramos. Mas não porque é jovem; erra porque é humano.
Compreender o ser humano é desafio permanente
Juvenal Arduini convida a humanidade a inventar a verdade
André Azevedo
1 período de Jornalismo
A rebelião antropológica proposta por Juvenal Arduini é uma reação à sociedade de massa que reproduz cópias, multiplica o modelo predominante, enquadra idéias, gestos e costumes. O autor chama de "clonagem sociológica" o fenômeno de auto-reprodução contínua dessa padronização cultural. Ele afirma que há inesgotável potencialidade para a humanidade tornar-se emancipada, autônoma; mas a pedagogia da submissão imobiliza a revolta autêntica. Arduini argumenta que é necessário resgatar o sentido positivo dos termos "insubissão" e "re-volta" – enviar de volta o que é devido, devolver, restituir a dignidade usurpada –; termos que foram estigmatizados pela mentalidade conservadora.
Arduini afirma que um comportamento adesista empobreceu o pensamento contemporâneo. "As pessoas aderem apressadamente a idéias, sistemas políticos, expressões culturais e credos religiosos", escreve. Essa adesão é incentivada pela sedução da publicidade maciça, de forma que "as pessoas incorporam atitudes introjetadas como se fossem decisões de sua própria vontade". A "adesão" é confrontada com o termo "opção". Ao aderir, o ser humano é conduzido por um modelo exterior; mas ao optar o homem afirma-se, assume responsa-bilidade intelectual, responde por seus passos e por suas conseqüências.
A precisão em que o autor analisa os conceitos é justa-mente um dos pra-zeres mais estimulantes na leitura do livro. Arduini tem a habilidade de erguer as palavras, desnudá-la, examiná-la exaustivamente e trazer de volta o significado autêntico do termo. Esse processo - chamado hermenêutica, ou "a arte de interpretar" - ele desenvolve sobretudo através da contraposição de conceitos que, por causa da distração do leitor, antes não pareciam opostos. O texto de apresentação da obra não exagera quando anuncia a "constelação de temas" que Arduini rege no livro. Através de referências à mitologia, filosofia e antropologia, o autor ilumina dimensões do raciocínio que normalmente encontravam-se escondidas na sombra do senso comum.
Um exemplo é a discussão sobre o problema da "diferença". Para ele, a diferença não é anormalidade nem distorção, mas originalidade que distingue personalidades. O autor escreve que há dois modos de interpretar os seres humanos: através do que possuem em comum e pelo que diferenciam. "Na primeira visão, os homens aparecem como repetidos. Na segunda visão, cada pessoa caracteriza-se por alguma singularidade. É o confronto entre a indiferença e diferença". De fato, o que é comum nos é indiferente. Somos naturalmente indiferentes às estatísticas que representam a miséria no país, por exemplo. A valorização da diferença impediria que a indiferença reduzisse os homens a coisas. "Ativar a diferença legítima entre pessoas, nações e culturas é avanço histórico da humanidade. (...) A indiferença tende a cancelar a diferença que incomoda", escreve. Saber conviver com as diferenças, portanto, é sinal de maturidade.
Arduini contesta valores engessados que tornam-se dogmas. Cita Jurgen Habermas, que analisa o dogma-tismo como incapa-cidade de auto-reflexão. "O dogmatismo é utilizado para sufocar o surto emancipatório e impedir a discordância", escreve. Ele refuta, por exemplo, a "paz" que amacia a exploração para torná-la tolerável. "A verdadeira paz gera a coesão orgânica da humanidade. (...) A pseudopaz mascara a realidade". Por pseudopaz, entende aquela paz que anestesia consciências para imobilizar os revoltados. "É moralismo vazio prometer paz aos que nada têm para sobreviver. Há momentos em que protestar é paz, e silenciar é antipaz." Para ele, paz não é sossego, concordismo ou cumplicidade. "Paz requer bravura".
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário