Foucault e a homossexualidade
Um dos principais filósofos do século XX não só era gay, mas também foi responsável por revoluções profundas no pensamento ocidental. Michel Foucault é, até hoje, 23 anos após sua morte, um dos principais nomes citados nas discussões sobre gênero, sexualidade e poder.
Foucault nasceu em 1926 e morreu em 1984, vítima de complicações provocadas pelo HIV/aids. Seu trabalho desenvolveu-se dentro do chamado pós-estruturalismo, corrente que defende a inexistência de verdades absolutas e considera a linguagem como instrumento que cria a realidade.
Palavras e poder
Desde o início, o pensamento de Foucault voltou-se para a linguagem e sua capacidade de colocar ordem no mundo. Mais ainda, as palavras são capazes de estabelecer relações de poder.Para Foucault, o poder não está localizado em instituições estanques como os Estados ou em pessoas específicas como os governantes. O poder, ao contrário, dissolve-se na teia social e nas relações – qualquer uma delas – que as pessoas estabelecem entre si. Por isso, é impossível pensar um sujeito sem poder. Também é impossível aceitar a idéia marxista do proletariado tomando o poder da burguesia – afinal, o poder está em todo o lugar. Nessa perspectiva, o poder é uma relação de forças que está em todas as partes, atravessando todas as pessoas. Para Foucault, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. As palavras, no caso, servem para criar discursos que justificam a prática do poder e a dominação.
Parece complicado, mas não é. Pense no que acontece quando você fica doente. Quem é a autoridade capaz de falar sobre seu estado de saúde? O médico. Por quê? Porque socialmente há um discurso que legitima a autoridade médica. Além disso, esse discurso produz um "efeito de verdade", ou seja, é aceito como mais verdadeiro, face outras possibilidades de interpretação (uma benzedeira, um pajé ou uma anciã teriam outras visões sobre o processo saúde-doença). Mais ainda, o discurso médico determina a ação, já que o tratamento será seguido de acordo com as palavras do médico. Por esse exemplo, podemos pensar: mas isso não é bom? Afinal, o saber científico não é um avanço na civilização, que cura doenças e acaba com o sofrimento de milhões de pessoas? Em parte, sim. No entanto, Foucault revela que a ciência é, ela mesma, um discurso (palavras) que gera uma verdade sobre as coisas. Mas é somente uma verdade possível.
Quem acompanha a situação das transexuais hoje consegue entender bem isso. Até o momento, a transexualidade é considerada uma doença no discurso médico, a chamada "disforia de gênero". Parte do movimento transexual aceita a condição de "doente" e, por isso, exige tratamento médico gratuito, uma vez que esses sujeitos foram "vítimas" de um mal que os acometeu. Nasceram com o sexo trocado, assim como alguns nascem com diabetes ou má formação de órgãos. Outra parte do movimento trans, no entanto, discorda dessa interpretação e pede que a adequação genital seja baseada no princípio da dignidade humana (no Brasil, defendido pela Constituição). Ou seja, o médico não vai tratar porque são doentes, e sim porque querem que seus genitais reflitam suas mentes. Nesse sentido, um/uma transexual não "muda de sexo". E, também, é possível pensar que há transexuais que preferem continuar com seus genitais inalterados cirurgicamente – questão essa que ainda é polêmica no movimento GLBT.
Ora, percebemos portanto como o discurso constrói realidades e legitima certas práticas. A homossexualidade no discurso médico, até pouco tempo, também era doença e podia ser tratada. E no discurso jurídico continua sendo crime passível de pena de morte (se eles soubessem o que estão perdendo iriam querer morrer disso !rs) em nove países do mundo. Esses exemplos tornam nítidas as relações entre palavras e poder, discurso e verdade, explicadas por Foucault.
Ora, percebemos portanto como o discurso constrói realidades e legitima certas práticas. A homossexualidade no discurso médico, até pouco tempo, também era doença e podia ser tratada. E no discurso jurídico continua sendo crime passível de pena de morte (se eles soubessem o que estão perdendo iriam querer morrer disso !rs) em nove países do mundo. Esses exemplos tornam nítidas as relações entre palavras e poder, discurso e verdade, explicadas por Foucault.
Genealogia e homossexualidade
Para chegar a essas conclusões, Foucault percorreu um longo caminho, realizando pesquisas que ficam no limite entre a história, a antropologia, a sociologia e a filosofia. Estabeleceu um método por ele chamado de "genealógico" que parte de estudos históricos, mas não busca uma origem única e causa dos fatos. Estudou o poder disciplinar, a loucura e a sexualidade.
Em História da Loucura, ele mostra como os "loucos" são excluídos e confinados porque não se encaixam no processo produtivo. A "verdade" do discurso psiquiátrico serviu para isolá-los. Em Vigiar e punir, Foucault expõe como a prisão e o sistema disciplinar nas escolas serve para tornar os corpos dóceis (gente, adorei esse negócio de tornar corpos dóceis !), bem integrados socialmente e assujeitados ao poder dominante.
Mas é em História da sexualidade, obra que deixou incompleta, que Foucault mostra como é possível não se sujeitar aos poderes estabelecidos e legitimados pelos discursos dominantes. Nesse trabalho, Foucault defende que quanto mais falamos sobre sexo, mais o reprimimos. Isso porque criamos esquemas que julgam e comparam as práticas sexuais.
No entanto, a homossexualidade pode ser uma forma da pessoa se afirmar fora do discurso dominante. Em entrevista para a revista gay francesa Gai Pied, em 1981, Foucault diz: "É preciso desconfiar da tendência de levar a questão da homossexualidade para o problema 'Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?' Quem sabe, seria melhor perguntar: 'Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?'. O problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, para além disso, usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações. E isso, sem dúvida, é a razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo de desejável. Temos que nos esforçar em nos tornar homossexuais e não nos obstinarmos em reconhecer que o somos. Isso para onde caminha os desenvolvimentos do problema da homossexualidade é o problema da amizade".
Ou seja, Foucault indica como a homossexualidade pode ser transformadora, ao afirmar um cuidado de si que é alheio ao heterossexismo dominante. Diz Foucault: "Tão longe quanto me recordo, desejar rapazes é desejar relações com rapazes. E isso foi sempre, para mim, algo importante. Não forçosamente sob a forma do casal, mas como uma questão de existência: Como é possível para homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus quartos, seus lazeres, suas aflições, seu saber, suas confidências? O que é isso de estar entre homens nus, fora das relações institucionais, de família, de profissão, de companheirismo obrigatório? É um desejo, uma inquietação, um desejo-inquietação que existe em muitas pessoas". A amizade é a tônica das relações homossexuais para Foucault.
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Vamos tratar da relação entre a vida de Michel Foucault e seu pensamento, buscando detectar como sua homossexualidade aparece refletiva em sua obra. Em primeiro lugar, no entanto, é preciso destacar que não é possível estabelecer uma relação causal simplista, do tipo "como ele foi homossexual, se interessou por sexo". A vida e o pensamento de Foucault são muito mais complexos para serem reduzidos a uma equação dessa simplicidade. Alguns biógrafos e comentaristas seguem esse procedimento, mas o resultado é fraco.É este o caso de David Halperin, autor que ficou conhecido por pesquisar a homossexualidade na Grécia antiga. No livro Saint Foucault (Oxford University Press), Halperin, que é militante homosexual e editor do Gay and Lesbian Quartely, afirma que toda a obra de Foucault é decorrência de sua luta contra a perseguição homossexual. "Os homossexuais devem lutar contra a vontade imemorial de lançar o descrédito sobre eles, e combater para manter o controle da representação daquilo que são", afirma. "Quando ouço alguém dizer que Michel Foucault era homossexual mas não era apenas isso, considero que estou diante de uma versão liberal da homofobia", conclui. Será possível esse reducionismo? Será que toda a produção artística ou intelectual de um gay é determinada por sua orientação sexual? Vejamos.
Sadomasoquismo
O público em geral tem muita curiosidade de saber sobre o sadomasoquismo de Foucault. Ele, de fato, freqüentava – e não escondia isso – os clubes SM de São Francisco. Segundo Didier Eribon, biógrafo de Foucault e autor de Michel Foucault e seus contemporâneos (Jorge Zahar Editor), esse hábito fez com que alguns comentaristas arriscassem fazer relações entre o SM e a obra de Foucault. É o caso, por exemplo, de James Miller, autor de The passion of Michel Foucault (Harvard University Press), que explica o percurso intelectual de Foucault a partir de suas "experiências-limite" com o SM. Para ele, até mesmo a morte de Foucault, vítima da aids em 1984, foi "deliberadamente escolhida" em decorrência de desejos masoquistas.
Da mesma forma, a investigação de Foucault acerca das técnicas de tortura nas prisões, presente nas páginas de Vigiar e punir (Editora Vozes), é um traço SM. Miller vai mais além e diz que o slogan "Sejamos cruéis", pichado nos muros da Sorbonne em maio de 68 era resultado da influência de Vigiar e punir sobre algum estudante contestador. "Essa conclusão é no mínimo singular", afirma Eribon, "já que Foucault publicou Vigiar e punir em 1975, é pouco provável que o estudante em questão tivesse podido lê-lo em maio de 1968".
Ora, os estudos sobre a tortura e a prisão não encontram eco naquilo que Foucault escreveu sobre o SM. Muito pelo contrário, Foucault sabia separar a crueldade do sadismo e do masoquismo. "A idéia de que o SM está ligado a uma violência profunda, de que a prática SM é um meio de liberar essa violência e essa agressividade, é uma idéia estúpida", disse o próprio Foucault em entrevista à revista gay The Advocate. "Sabemos bem que essas práticas não são agressivas. Elas consistem em inventar novas possibilidades de prazer, graças à erotização das partes estranhas do corpo".
Ora, os estudos sobre a tortura e a prisão não encontram eco naquilo que Foucault escreveu sobre o SM. Muito pelo contrário, Foucault sabia separar a crueldade do sadismo e do masoquismo. "A idéia de que o SM está ligado a uma violência profunda, de que a prática SM é um meio de liberar essa violência e essa agressividade, é uma idéia estúpida", disse o próprio Foucault em entrevista à revista gay The Advocate. "Sabemos bem que essas práticas não são agressivas. Elas consistem em inventar novas possibilidades de prazer, graças à erotização das partes estranhas do corpo".
Ou seja, Foucault soube detectar o caráter teatral da cena SM. "Sabe-se muito bem que se trata sempre de um jogo. Há uma concordância, explícita ou tácita, pela qual os atores reconhecem certos limites que não devem ser ultrapassados". Dessa forma, o SM não constituiu para Foucault em uma "experiência-limite", como quer Miller. Ao contrário, aproxima-se mais de uma diversão despretensiosa do que uma ideologia.
Contra a repressão
Segundo Eribon, "o que Foucault teve que superar não foi sua homossexualidade – como poderia ele ter uma idéia tão absurda? – foi a repressão que o impedia de viver sua homossexualidade".
Claro que não é possível desvincular qualquer obra do contexto que a produz. Nesse sentido, a homossexualidade de Foucault certamente influenciou a escolha de alguns de seus objetos de pesquisa. No caso, é possível pensar que toda sua investigação sobre as formas explícitas e implícitas de dominação decorriam, de certa forma da repressão que sentiu. Em entrevista à revista francesa Revue Nouvelle, Foucault diz: "Sempre quis que cada um de meus livros fosse, em certo sentido, fragmentos de autobiografia. Meus livros sempre foram meus problemas pessoais com a loucura, a prisão, a sexualidade".
No entanto, o libelo contra a repressão, a favor da liberdade, tem alcance maior do que ser reflexo da biografia do autor. Remetem a um compromisso com a verdade.
Amizade e homossexualidade
A homossexualidade para Foucault carrega um potencial transformador baseado na amizade. É essa a parte mais sensível e poética de suas considerações sobre os homossexuais. Em outra entrevista, para a revista gay francesa Gai Pied, Foucault diz que o fato de terem de inventar suas formas de se relacionar, os gays desenvolvem novos arranjos, baseados sobretudo na amizade. "Entre um homem e uma mulher mais jovem, a instituição facilita as diferenças de idade, as aceita e as faz funcionar. Dois homens de idades notavelmente diferentes, que código têm para se comunicar? Estão um em frente ao outro sem armas, sem palavras convencionais, sem nada que os tranqüilize sobre o sentido do movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer", afirma.
Todo o debate contemporâneo sobre relacionamentos abertos ou novas famílias refletem essa amizade proposta por Foucault. É essa amizade exposta por Foucault ao responder aos jornalistas da Gai Pied. "É uma das concessões que se fazem aos outros de apenas apresentar a homossexualidade sob a forma de um prazer imediato, de dois jovens que se encontram na rua, se seduzam por um olhar, que põem a mão na bunda um do outro, e se lançando ao ar por um quarto de hora. Esta é uma imagem comum da homossexualidade que perde toda a sua virtualidade inquietante por duas razões: ela responde a um cânone tranqüilizador da beleza e anula o que pode vir a inquietar no afeto, carinho, amizade, fidelidade, coleguismo, companheirismo, aos quais uma sociedade um pouco destrutiva não pode ceder espaço sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas de força imprevistas. Penso que é isto o que torna perturbadora a homossexualidade: o modo de vida homossexual muito mais que o ato sexual mesmo. Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, e aí está o problema. A instituição é sacudida, intensidades afetivas a atravessam, ao mesmo tempo, a dominam e perturbam. Olhe o exército: ali o amor entre homens é, incessantemente convocado e honrado. Os códigos institucionais não podem validar estas relações das intensidades múltiplas, das cores variáveis, dos movimentos imperceptíveis, das formas que se modificam. Estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito".
Todo o debate contemporâneo sobre relacionamentos abertos ou novas famílias refletem essa amizade proposta por Foucault. É essa amizade exposta por Foucault ao responder aos jornalistas da Gai Pied. "É uma das concessões que se fazem aos outros de apenas apresentar a homossexualidade sob a forma de um prazer imediato, de dois jovens que se encontram na rua, se seduzam por um olhar, que põem a mão na bunda um do outro, e se lançando ao ar por um quarto de hora. Esta é uma imagem comum da homossexualidade que perde toda a sua virtualidade inquietante por duas razões: ela responde a um cânone tranqüilizador da beleza e anula o que pode vir a inquietar no afeto, carinho, amizade, fidelidade, coleguismo, companheirismo, aos quais uma sociedade um pouco destrutiva não pode ceder espaço sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas de força imprevistas. Penso que é isto o que torna perturbadora a homossexualidade: o modo de vida homossexual muito mais que o ato sexual mesmo. Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, e aí está o problema. A instituição é sacudida, intensidades afetivas a atravessam, ao mesmo tempo, a dominam e perturbam. Olhe o exército: ali o amor entre homens é, incessantemente convocado e honrado. Os códigos institucionais não podem validar estas relações das intensidades múltiplas, das cores variáveis, dos movimentos imperceptíveis, das formas que se modificam. Estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito".
DO BLOG: pimentapequi.blogspot.com
4 comentários:
É um post muito expressivo. Eu sou de uma educação mais arcaica. Vejo com respeito as uniões estáveis entre casais do mesmo sexo. As barreiras para se adequar ao mundo homosexual ainda são grandes, porém, estão sendo, aos poucos, aceitas por grande parte da sociedade. Como eu disse, outrora aqui em seu blogspot, eu não considero o sexo importante para uma relação. O sexo mais atrapalha que ajuda na maioria das vezes. Neste caso atrapalha, porque são pessoas que se amam e se cuidam na base da cumplicidade e da própria escolha que fizeram. A reciprocidade entre eles soam como fidelidade e, é ainda mais forte que muitas relações de heteros. Abraço carinhoso da amiga LuGoyaZ.
Jorge querido,
Visitei o blog de onde retiraste esse texto e adoreeeei. Falou em Foucault a Tânia saltou de emoção. Estou estudando Bauman a fundo para o Mestrado. Também estou amando saber sobre a modernidade líquida. Beijos
Lu, a dimensão cúmplice e solidária , terna e afável do amor são os patamares que geram o genuinamente novo: um amor de uma nova suavidade. Abraços com carinho, Jorge
Tânia, estava procurando alguma reflexão sobre Foucault e cai lá...
Queria saber mais sobre modernidade líquida... Dê-ma umas pistas,
Abraços com carinho, Jorge
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