WANDERSON LIMA
Os super-filmes devem servir para dar lições aos técnicos: os de Keaton, para dar lições à realidade ela mesma”.
“Cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa”.
Os dois fragmentos acima, o primeiro de um texto de Buñuel sobre Amores de Juventude de Keaton e o segundo do primeiro manifesto surrealista de Breton, resumem com feliz precisão as linhas gerais da obra fílmica buñelina. De um lado, a recusa do esteticismo e a assunção da precariedade material como opção estético-ideológica, a serviço de uma concepção cimematográfica que se poderia chamar de cinema de tese (se depurarmos a expressão de certo ranço cientificista): técnica escorreita e linear a serviço de uma violência crítica sem precedentes na história do cinema; de outro lado, o uso da imaginação, do humor negro, da poesia como invectiva contra a racionalidade; a problematização e a complexificação do que chamamos realidade.
Pela surpreendente unidade temática que perpassa essa obra, por sua densidade de pensamento, por sua negação do encantamento da técnica, a obra de Buñuel é dessas que para ser entendida exige antes a perquirição de suas “iluminações profanas” (W. Benjamin) que achegas formalistas. Como observou Octavio Paz, os filmes buñuelinos “podem ser apreciados e julgados como cinema e também como algo pertencente ao universo mais amplo e livre dessas obras, preciosas entre todas, que têm por objetivo tanto revelar-nos a realidade humana como mostrar-nos uma via de ultrapassá-la”. Dessa forma, nossa especulação, antes de delinear algo como um estilo buñuelino, o que em stricto sensu talvez nem exista, imprime-se no sentido de tentar desvelar dois aspectos capitais que enformam a mundividência de Buñuel: o surrealismo e o quixotismo e a relação destes com o que poderíamos chamar de poesia a fílmica buñuelina.
II
Em uma conferência hoje clássica, dizia Buñel, com dissabor, que “em nenhuma das artes tradicionais há, como no cinema, tamanha desproporção entre possibilidade e realização”. Essa reivindicação, verdadeira ladainha na boca dos surrealistas, como aprova as intervenções de Desnos, apologista do “cinema frenético”, não a fez Buñuel nos tempos heróicos de Um Cão Andaluz (1928) e A Idade do Ouro (1930) mas em 1958, quando o cineasta já residia no México e já produzira películas do calibre de Os Esquecidos (1950) e A Ilusão Viaja de Trem (1953).
De fato, mesmo com a inserção da fantasia e da técnica decupagem por Meliès, mesmo depois da liberação do cinema da condição de teatro filmado por Griffith e do notável aprimoramento das técnicas de montagem pela escola russa de Eisenstein e Pudovkin, o cinema parece ter se achegando timidamente na região da poesia. Sem desconsiderar experiências anteriores, podemos fazer coro com Octavio Paz e observar que a incursão verdadeiramente definitiva do cinema na região da poesia deu-se com Um Cão Andaluz. Segundo Ángel Sobreviela, Buñuel, com Um Cão, “realizó una película sin personajes realistas ni argumento coherente, donde la imagen poseía una fuerza casi independiente en su poder de conmoción”.
Nessa película, cujo roteiro Buñuel dividiu com Dali, a poesia associativa - herdeira do encontro casual de um guarda-chuva e uma máquina de costuras numa sala de cirurgia de que fala Lautréamont - poreja por todos os lados. Não há uma narrativa; a montagem relacional simbólica, para usar a nomenclatura de Pudovkin , não tem fins ideológicos imediatos, como no cinema russo, mas é um instrumento de desautomatização, de afronta ao bom senso burguês, de crítica pela via do humor negro, de exploração do obscuro mundo dos desejos. Poético que seja, no entanto, não se pode negar que Um Cão peca pelo esteticismo, por certos maneirismos surrealistas, o que explica o fato de esse filme, conforme Buñuel relata em sua autobiografia, ter sido sua senha de entrada no grupo surrealista. A aura buñuelina - hispanicamente lírica e feroz, como observa Paz - já vai está bem delineada em A Idade do Ouro, seu segundo filme.
O feroz aí faz pressupor que a poesia fílmica em Buñuel não é confundida com lirismo melodramático - embora em um filme como Abismo da Paixão (1954) o cineasta mexicanamente desperdice sua força poética pela incursão ao melodrama - nem tampouco com o núcleo essente que permeia as artes: trata-se do consórcio preciso entre as opções técnicas e as matrizes anti-racionalistas (surrealismo, anarquismo, quixotismo) do pensamento buñuelino. Isso porque em Buñuel a idéia precede e seleciona a técnica (sem, no entanto, prejudicá-la), de modo que sua mundividência está não somente na camada discursiva verbal de suas faturas, mas em todas as outras camadas discursivas. Buñuel, portanto, passa ao largo dos cineastas que pretendem fazer filmes com mensagens subversivas mantendo os padrões racionalistas e comerciais de produção.
A poíesis (do grego poiein: fazer, criar, imaginar) de seus filmes origina-se de técnicas como a montagem relacional (o choque de imagens de campos distintos), a quebra da causalidade, a quase indiferenciação, tão espanhola, entre o sonhado e o vivido e a inserção de elementos estranhos à diegese do décor ou do fluxo da narrativa (o urso e uma ovelha na mansão de O Anjo Exterminador, de 1962; uma mulher cerzindo numa loja um rasgão num mantô de renda ensangüentado em Esse Obscuro Objeto do Desejo, de 1977) , mas estas técnicas não estão para ostentar uma postura vanguardista, hermética, adepta da arte pela arte. Surreal e anarquista, poeta e escafandrista dos desejos obscuros, Buñuel não descende da linguagem de Griffith e Welles. Don Luis quer demonstrar, quer materializar idéias, quer polemizar contra qualquer instância repressora dos instintos humanos - daí a necessidade de ser sóbrio, claro; de comunicar - tornar comum - para intervir. “A imaginação mais violenta e livre a serviço de um silogismo cortante como um punhal, irrefutável como uma rocha”, eis a imagem desse cinema subversivo na visão de Octavio Paz. A ética anarquista-surrealista de Buñuel jamais permitiria o encantamento da técnica, sua fetichização. Fiel às raízes surrealistas, ele preferia Chaplin a Welles, De Sica a Rossellini.
Para Buñuel, a função do cinema não é “representar a realidade” - noção cara ao realistas vulgares, de ontem e de hoje, e oriunda de uma leitura deturpada da mímesis aristotélica - mas poetizá-la, alargando-a pela escavação dos pontos obscuros que a moral burguesa tenta ignorar. Uma poética visceral - jamais ornamental. Sua crítica a um diretor do porte William Wyler, por exemplo, centra-se no fato de Wyler produzir filmes de perfeita realização técnica porém a serviço de uma narrativa banal, melodramática, destituída de mistério e comprometida com o bom gosto e o humor branco da moral vigente. “O cinema”, afirma, “parece ter sido inventado para expressar a vida subconsciente, tão profundamente presente na poesia”.
O cinema buñuelino, ainda que sendo indubitavelmente surrealista, não apresenta, exceto em Um Cão Andaluz e em extratos de A Idade do Ouro, o vício efectista das obras que se querem ortodoxamente surreais. Em pleno século XXI, já um tanto distante da revolução surrealista, não podemos fugir, diante de algumas peças desta e doutras vanguardas, de um quê de constrangimento diante de certos maneirismos, certas recorrências que percebemos não passar de concessões à euforia da época. Com o cinema de Don Luis o mesmo não ocorre: ele captou o cerne do espírito surrealista e rechaçou quase totalmente seus maneirismos mecanizados. Por isso, sua obra entra no século XXI mais maldita do que nunca, na melhor acepção do termo “maldito”.
Em sua autobiografia, Buñuel fez um balanço do que ficara como permanente, em seu espírito, da vivência com o grupo surrealista. Fica claro que os três anos em que participou ativamente do grupo não lhe deixaram traços mais dogmáticos. Buñuel afirma que, em primeiro lugar, lhe ficou “esse livre acesso às profundezas do ser, reconhecido e desejado, esse apelo ao irracional, à obscuridade, a todos os impulsos que vêm do nosso eu profundo”; em seguida, destaca a descoberta “de um conflito muito forte entre os princípios de toda moral adquirida e minha moral pessoal, nascida de meu instinto e de minha experiência ativa”. De fato, some-se a isso o humor negro e teremos os ingredientes básicos de Ensaio de um Crime (1953), A Bela da Tarde (1966) e Esse Obscuro Objeto do Desejo.
III
Mas as raízes da obra buñuelina não são apenas surrealistas. Estão cravadas, com igual vigor, na hispanidade.
Um dos intérpretes mais considerados da hispanidade, Américo de Castro, definiu a moderna história espanhola como sendo “a história de uma insegurança”. Segundo Castro, enquanto a França assimilou seu passado, não sem muitos esforços, valendo-se das categorias do racionalismo e da clareza, e a Inglaterra conseguiu semelhante proeza pela via do empirismo e do pragmatismo, de modo que para essas duas nações o passado não se constitui num problema, a Espanha, herdeira de múltiplas heranças (cristã, judaica, mulçumana), não atingiu qualquer síntese, de modo que no ethos espanhol palpitam querelas irresolúveis e o passado lhe é um peso dos mais desconfortáveis.
Ora, talvez a melhor síntese da palpitante e confusa alma espanhola seja o quixotismo. E seu intérprete mais radical talvez tenha sido Miguel de Unamuno. Para Unamuno, Dom Quixote é um verdadeiro santo, fundador do quixotismo, lídima religião da Espanha e maior contribuição desse país à cultura ocidental. Quixotismo, de acordo com voluntarismo agônico desse pensador, seria bem mais que o enlace entre boas intenções e ingenuidade; seria “todo um método, toda uma epistemologia, toda uma estética, toda uma lógica, toda uma ética; sobretudo, toda uma religião, isto é, toda uma economia do eterno e do divino, toda uma esperança no absurdo racional”. Dom Quixote é grande pelo seu heroísmo trágico e sua grandeza era vencer justamente por ter sido vencido: “su locura sublime consistió en hacerse el loco frente al mundo, en tomar éste no como es, sino como el creía y quería que fuese”.
Esse heroísmo trágico, essa loucura lúcida, essa coragem de se entregar à zombaria do mundo e extrair forças dela, esse sentido comunitário que Quixote encarna tão bem perpassa, mutatis mutandi, segundo Unamuno, os grandes empreendimentos hispânicos (A Conquista Americana, a Contra-Reforma), seus místicos (San Juan, “cavaleiro andante do sentimento do divino”) e seus artistas (Velázquez, Calderón).
No âmbito dessa problemática, Carlos Fuentes, com aguda percepção, mostrou que o herói espanhol é “o herói do que falta, do que não está a seu alcance, do que ele almeja, do que deseja”. Contrapondo o Quixote ao Robinson Crusoé, Fuentes observa que este, como o Tom Jones, “são produtos do apogeu de progresso atingido por sua sociedade, e estão, nesse sentido, afinados com ela”, ao passo que o Dom Quixote é criado “a despeito da sociedade”, a despeito da Contra-Reforma, da Inquisição, da dinastia dos Hamburgos. Robinson, protótipo do herói inglês, encara o mundo com segurança pragmática, é um “self-made man que aceita a realidade objetiva e depois a adapta a suas necessidades”; Quixote, protótipo do herói espanhol, naufraga em qualquer empresa prática.
O cinema de Buñuel aponta para o quixotismo na medida em que a relação de seus personagens com a realidade empírica é uma relação de ruptura. Seus personagens são restauradores netos de Alonso Quijada, ainda que nem sempre com o mesmo grau de pretensão ou num tom às vezes menos heróico-trágico que pessimista. Como observou Ruy Gardinier, em Buñuel repete-se continuamente “o sonho da bela comunidade, da agregação ideal de um grupo de pessoas afins, de modo a transformarem o mundo em algo mais belo”, embora isso nunca se dê plenamente, como acontece com Nazario e Viridiana. Ou, menos pretensiosamente, mas de forma não menos quixotesca, os personagens buñuelinos tentam completar-se na busca do Outro - o personagem de Fernando Rey à busca da ambígua Conchita em Esse Obscuro Objeto do Desejo - ou de Algo - um jantar que nunca se realiza em O Discreto Charme da Burguesia (1972). Grande parte da magia que Buñuel imprime aos seus filmes advém da força sugestiva desses gestos incompletos - o sacrifício tantálico dos que desejam. Essa impossibilidade de realização dos desejos tem em Buñuel uma explicação de cunho político - os processos de reificação, a falta de ousadia da burguesia - e outra de cunho metafísico - a negação da racionalidade do real. Esse pressuposto metafísico engendra outro artifício “mágico” nos filmes de Buñuel: a ressignificação do espaço humano, do ser-no-mundo mesmo, pelo deslocamento, prenhe de humor negro, de seres de um lócus para outro: o formigueiro que surge na mão de um personagem ou os pêlos da axila de uma moça que tomam o lugar da boca de um rapaz (em Um Cão Andaluz), um saco de estopa desnecessariamente carregado por um apaixonado (em Esse obscuro Objeto do Desejo), um velório num restaurante burguês (em O Discreto Charme da Burguesia).
Para o filósofo Clement Rosset, “o que a moral censura não é, de modo algum, o imoral, o injusto, o escandaloso, mas sim o real - única e verdadeira fonte de todo escândalo”. Grande número de filósofos e artistas - reflete esse filósofo francês - engendram obras “cujo principal objetivo não é revelar a verdade ao homem, mas fazê-lo esquecê-la", já que a realidade é intrinsecamente cruel. É possível que Buñuel não concordasse com os fundamentos da ontologia do real de Rosset, mas é certo que o cineasta é um exemplo acabado de artista “cruel”, cuja obra, imbuída de lucidez e retidão ética, visa não a remediar provisoriamente as agruras do real, mas torná-las visíveis, obrigando-nos, se não a uma ação efetiva, pelo menos a reflexão inapelável. Tanto a Rosset quanto a Don Luis horroriza não, imediatamente, a imoralidade e as injustiças, mas a propensão pusilânime do homem ao moralismo, que escamoteia estes aspectos. Como todo artista que deseja intervir mas recusa a arte panfletária, Buñuel aponta mas não julga, preza pela clareza mas não pelo simplismo, respeita o espectador mas não o adula: perturba-o. Realiza aquilo que Sartre queria do verdadeiro artista engajado: dá a sociedade uma “consciência infeliz”. Em suma, tem uma visão de mundo, mas não uma doutrina.
Mas voltemos ao quixotismo, aos gestos incompletos e vejamos, ainda que de relance, como ele se constrói em algumas obras fílmicas do autor.
Como observa Fuentes, “o cinema de Buñuel é sempre fiel ao seu conflito básico: uma luta entre dois estilos de olhar, e, através de qualquer um deles, um conflito entre a decisão de se ligar ao mundo ou recusar esse laço”. Em A Ilusão Viaja de Trem dois homens, depois de uma bebedeira, resolvem matar a saudade de um velho bonde que vai ser desativado realizando uma última viagem. O desejo de ambos é dividir a “poesia da vida” que sentiam, oferecendo às pessoas um passeio sem cobrar pelo ingresso. À certa altura, um senhor entra no bonde e , mesmo com explicações, insiste em pagar, qualificando os dois saudosistas de comunistas. Um pouco adiante, o velho bonde é confundido com outro que conduziria uma excursão. De decepção em decepção, o gesto poético dos dois Quixotes não encontra guarita num mundo desencantado até as vísceras: os gigantes voltam a ser moinhos. Como Tântalos às avessas, os dois oferecem fino maná mas as pessoas não podem tocá-lo: Dom Quixote volta a ser Alonso Quijada.
Nazario (1958), quiçá o mais quixotesco dos filmes de Buñuel, explora a temática da debilitação das possíveis forças revolucionárias do cristianismo causada pela sua institucionalização, ou antes, indaga sobre a possibilidade de um cristianismo radical no mundo desencantado. O cura Nazario, numa tentativa poeticamente exasperada de viver os Evangelhos, recusa o jugo da Igreja institucionalizada e resolve sair em peregrinação para pregar a Palavra. Mas assim como Quixote só em si restaura o espírito cavaleiresco, o cura tampouco estende seu cristianismo radical (do latim radix: raiz) aos outros. Todos os episódios do filme se constituem num processo de lenta assunção, por parte do protagonista, da poesia precária da condição humana em detrimento da ilusão de uma divindade. Talvez o momento mais denso do filme, o momento em que ressoa com mais intensidade no cinema buñuelino o clamor de fidelidade à terra tão bem personificado no Zaratustra nietzschiano, talvez esse momento seja aquele em que indo o cura oferecer consolo a uma aldeã, ouve-lhe essas palavras: “Juan si, cielo no”. Para Octavio Paz, todo o cinema de Buñuel é uma “crítica da ilusão de Deus”; seu tema-mor não é a culpa do ser homem mas de Deus. É possível que Paz esteja certo, mas é possível que essa sua afirmação case melhor em trabalhos como A Idade do Ouro, Nazarin, Simão no Deserto (1965), A Via-láctea (1969) e Viridiana (1961). Da nossa parte, preferimos ver, nessas películas abertamente atéias como Nazarin e Viridiana, a exemplificação do paradoxo do triunfo pelo fracasso conforme o quixotismo radical de Unamuno. Mas também não podemos negar que o quixotismo , como a crítica da ilusão de Deus, também seja uma forma até certo ponto precária de ler o cine de Buñuel, já que também ele não perpassa, pelo menos explicitamente, todos os filmes do diretor. Uma palavra que talvez resuma a complexa obra buñuelina seja acusação. Por qualquer lente que se queira ver este cinema - quixotismo, surrealismo, anarquismo, ateísmo, marxismo, freudismo - não se pode negar que suas estratégias formais, sua densidade simbólica, estão a serviço da acusação: da ilusão de Deus, das ilusões da burguesia, das ilusões do cinema comercial, das ilusões de satisfação espiritual do homem, das ilusões de domesticação dos instintos.
O cinema de Buñuel encontra seu resultado estético mais bem acabado, segundo muitos intérpretes, em Viridiana. O filme conta a história da jovem noviça Viridiana que, em vésperas de tornar-se freira, é mandada a visitar seu tio e financiador Dom Jaime. Este, que não vê a jovem há muitos anos, ao contemplá-la lembra-se da imagem da mulher morta precocemente. Apaixona-se subitamente. E por meio de remédios dormitivos, já que não havia outra saída, tenta possuí-la. Ao saber da tentativa do tio, Viridiana, sentindo-se impura, quer retornar ao convento, mas o suicídio deste que é praticamente seu único parente, obriga-a a ficar e pagar por sua “culpa” e sua “impureza”. A quixotesca estratégia da jovem é expiar sua culpa reeducando um grupo de mendigos que é levado para as terras do falecido tio, a fim de adquirir bons modos, fé e interesse pelo trabalho. Mas assim como Dom Quixote é ridicularizado e apedrejado pelos escravos que liberta das galés, assim também Viridiana é explorada, escarnecida e quase violentada pelos mendigos que tenta em vão reeducar. Ao final, Viridiana, “A Don Quixote mulher”, desiludida, reúne-se a seu primo e sua dissimulada criada, “dois outros grandes arquétipos espanhóis, Don Juan e La Celestina, num arruinado castelo feudal onde formam um profano ménage à trois, jogando cartas e ouvindo discos” (Fuentes). Um aspecto irônico e de grande significado nessa cena final que Fuentes tão bem interpretou é a introdução do rock n’roll no lugar da música religiosa, reforçando adesão heroicamente trágica de Viridiana à vida profana. Esse filme apresenta ainda uma das seqüências mais grotescas e violentamente atéias da história do cinema, a seqüência da festa dos mendigos, que culmina com a paródia da Última Ceia de Leonardo, paródia na qual o lugar de Cristo é ocupado por um mendigo cego, lúbrico e violento.
IV
Caberia ainda algumas observações complementares sobre a poesia fílmica de Buñuel, na tentativa de atar dialeticamente a questão forma-e-fundo que perpassa sua filmografia. Para isso, cabe uma breve achega com outro poeta do cinema, Andrei Tarkovski. Temos, nestes dois cineastas, dois modelos extremos de poesia fílmica, que podemos denominar provisoriamente de pura e impura, sem com isso estabelecer um juízo de valor.
Em Tarkovski, como observou um estudioso de sua obra, o já citado Sobreviela, a expressão poética é pura porque é ela seu ponto de partida e de chegada. Considerando o cinema uma arte auto-suficiente (ao contrário de Buñuel, que sempre quer transcendê-lo), esse grande cineasta russo filma antes epifanias que histórias; o uso inconfundível que faz do traveling antes denuncia e adensa o mistério dos objetos e paisagens, doando-lhe voz, do que lhe explicam. Segundo Sobreviela, o cinema tarcovskiano adota “unas actitudes ante el mundo que se tornan subjetivas, cargadas de emotividad, en cuanto cesan de ser documentales, mero registro. Los objetos, los ambientes (…) son otra cosa que en una película cualquiera”, apesar disso “no debe pensarse que se limita a aplicar una pátina lírica a un relato (…) pues este estilo, que no se adapta a las historias que narra, sino que las historias se adaptan a él, construye minuciosamente una atmósfera de alta tensión espiritual que hace posibles los milagros y las revelaciones en el mundo real”.
Em Buñuel, ao contrário, a poesia é impura porque nasce de imperativos éticos e ideológicos. Afinal, como transmitir uma visão de mundo surrealista de forma apoética? As perspectivas ideológicas de Dom Luis precediam suas opções formais. Ele nunca buscou sistematicamente a poesia imanente nas coisas. Não existe para ele cinema em si. Da mesma forma que a prática dos poetas surrealistas “representou a recusa da poesia em se deixar reduzir ao poema, isto é, a uma pura e simples expressão literária” (E. Morin), assim também Buñuel relutou em fazer - com o perdão do termo - um cinema “cinematográfico”: quis antes complexificar, ressignificar, numa palavra cara a Morin, desprosaizar o que chamamos realidade cotidiana. Herdeiro do romantismo alemão, filho do surrealismo, escudeiro do exército de “nosso senhor Quixote”, como dizia Unamuno, Buñuel recusa tanto a prosaidade do mundo utilitário burguês, como a esterilidade (no ponto de vista dele) do esteticismo; sua arte emerge de um pacto com a vida, na busca de resgatar, ou pelos menos recordar, o animal humano anterior ao pecado original. Não se pode, pois, falar sensatamente de um primeiro plano, de um travelling ou de qualquer outra figura retórica em Buñuel que não esteja para além da função estética: ato de rebeldia.
A poesia fílmica de Buñuel é, como toda poesia surrealista, cataclismática. Se Dom Luis a escrevia às vezes em arabescos um tanto irregulares é porque se recusava tanto à pena dos antigos, como à nossa triste esferográfica produzida em série: preferia uma navalha.
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