quinta-feira, 21 de julho de 2011

SOCIEDADE DOS AMIGOS: PELOS POVOS INDÍGENAS, LUTAMOS...

                       Fui
                    Concha Rousia

Houve um tempo em que fui índia
e corri descalça pelo campo
sem saber que o campo era meu
mas era
sem eu saber e sem saber o campo
-
e era livre sem saber que era
-
eu era...
sem saber que existia não ser
sem ter que achar palavra para o ser
eu era...
-
e agora ando à procura
sabedora de que eu fui
retorno à minha memória
e tudo muda de lugar como pó ao vento
inclusive aquilo que era eterno
ficou velado pelo tempo presente
sem futuro
sem pés nus
sem relva orvalhada a me inundar o espírito
...
nesse tempo que fui índia
fui água
fui rio
e fui lagoa...
sem saber que era
e agora volto a esses lugares inexistentes
e despovoam-se minhas memórias
e fui águia e amei a montanha
e ela que eu habitasse seu céu
e fui lobo a encher de som a noite
e fui lua que ama a terra
sem saber que a ama
e fui pessoa sem saber que era
-
e agora sou nada
e nem posso reter o que fui
tudo tornado areia no deserto da minha memória
sei que hei de voltar a mim
um dia
que hei de reclamar meu ser
um dia
mesmo ser eu sem saber que sou eu
mesmo ser tu sem saber que sou tu
mesmo ser pó sem saber que sou pó

Concha Rousia poeta da Galiza

Publicado no Recanto das Letras em 22/05/2008
Código do texto: T1000150


4 comentários:

PAULO CECILIO disse...

Concha,

também eu tive uma índia de mãos ariscas que percorreram as minhas no cerrado.
gritamos nas montanhas nas ventanias a liberdade voando nos pés alados
promessas feitas descalças com ingredientes mágicos,
com que tecíamos arrepios na pele quente crespa de frio sob a lua que nos iluminava eterna em longos silencios de alegria
ofegávamos no espelho da relva como potros selvagens: nosso leito era também o lago tinhamos nas unhas o mundo sob os pés descalços
virgens, roçáva-mos os bambus salpicados de pássaros sinfônicos rebeldes afinados
nossa lingua lambia sal no barro branco do desfiladeiro e riamos baixo para não cortar o canto uivante da navalha afiada das cigarras que vibravam correndo contra o tempo
foi um tempo de magia onde bastava um cacho de luz bastava teu sorriso branco para que todos os tesouros fossem encontrados: moram os tesouros nos sonhos do orvalho, no teu colo despreocupado
teus dedos finos afiados nos meus cachos afagavam frutas que a memória já me confunde o gosto
em nosso cerrado-paraíso tinhamos fruta-conde amoras vermelhas jambos doces da cor da tua pele: as máquinas de metal com suas imensas bocas vieram de madrugada e os arrancaram levando juntos nossos olhos e corações.
nem sei mais se é real a sensação que me resta, me roça a pele, a alma, o canto dos sanhaços.
o estreito vale onde jorrava a bica aos borbotões foi coberto por um manto negro que suporta animais de aço sempre apressados em busca de nada.
desconhecem a velocidade do silencio e a quietude da contemplação: foi-se um tempo...
quando tento visitar o peixe perdido na memória que se esvai, peço colado ao colo que minha india me recorde com sua voz doce tremida de saudade
me diz ela, pra não chorar, e me lembra dos cristais fabulosos que brotavam das escarpas das harpas dos canários do espelho dágua que não existe mais.
já nem sei se tudo que ela me diz um dia foi, ou se no seu amor cria navios alados para me ver pegar num sono que não vem
algumas vezes tocado pela ânima em estertor aperto-a contra o peito testemunha que fomos de um tempo esquecido no sorriso fresco do chão batido que não volta mais...Paulo cecilio

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Paulo: que texto belo; posso publicá-lo amanhã... precioso. Vida e visceralidade. Abraços ternos, jorge

Concha Rousia disse...

Paulo: o teu texto é de uma intensidade que arrepia, sim, como diz nosso amigo amado, Jorge, precioso, precioso... Sabes, a minha inconsciência demorou muito tempo em me permitir que o que os europeus fizeram pelo mundo fora com todos os indígenas, fizeram antes com os indígenas da Europa, fizeram o mesmo com o meu povo... levo pouco tempo com esta consciência da indígena que sou, e ainda tenho muita raiva, quero aprender a ver que não estou sozinha... abraço a meus irmãos de além-mar abraçando-te a ti, Paulo, irmão, com toda a ternura de nossos mundos simples e complexos, mas não complicados, como sim são os mundos modernos, e abraço a nosso amado Jorge

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Concha... intenso carinho; abs ternos, jorge