DIÁRIO DE BORDO: ALÉM DO HOMEM...

                                              Jorge Bichuetti

Dia claro, céu azul mesclado com nuvens suaves e dispersas... Antes, o vi estrelado e com luar... os pássaros cantaram e os sinos badalaram... A aurora chegou irradiante, inaugurando um novo dia...  Um domingo.

Muitos desprezam o domingo: o acham melancólico... Como melancólicos são os domingos montevideanos do outono - cinzento, frios e com as árvores nuas e o chão cheio de folhas secas... O domingo deve sofrer o que padece toda crise: é pssagem, é ponte, é encruzilhada... um entre...

Como todos, já fui medroso e preconceituoso na lida com as cirses; hoje, não mais... Devo muito a Nietzsche...

Assim, como não consigo conceber minha vida sem a lua e o luar, sem o canto dos passarinhos... sem o cheiro do orvalho aliciando a terra para novas procriações, sinto que na minha alma sempre ecoará: " Só quem suporta o caos e o frenesi é capaz de engravidar-se de uma estrela bailatina"... Ou ainda: "somente os espíritos acorrentados logram o esforço e a luta para efetivarem a grande libertação"... Nietzsche, Guimarães Rosa, Pessoa, Cartola, Cora Coralina são amigos que frequentam, diariamente, a minha casa, o meu quintal...

Aliás, Nietzsche afirma que só vencemos os nossos demônios íntimos com riso, dança e música... Ando-lhe convencendo a acrescentar a poesia, a arte, o prosear da mineiridade...as milongas do sul, os candombes... e outros movimentos da vida que me vitalizam e me energizam...

Hoje, especialmente, Nietzsche me fez companhia... trabalhando com carinho no tecer as postagens do nosso cantinho Utopia Ativa... um eco: o belo e grandioso no humano é que o homem é um transitar entre o animal e o além do homem... Superar o humano reativo, de culpa e ressentimento, servil, passivo... e de ego hipertrofiado na racionalidade técnico-instrumental... Um humano desumanizado; de existência de aparências - repetitivo, acomodado e subserviente ao poder instituído... Um homem liberto e libertário...

De amor generoso e solidário... de ternura acolhedora... de suavidade guerreira... Um caminho-aurora...

Assim, nas crises, escutamos a vida através de Nietzsche, clamando por um além... além da hipocrisia e da covardia... Um devir... Um porvir... um diferente radical que desbrava no horizonte azul da humanidade as potências negadas, suprimidas, reprimidas... O Homem-Travessia...

A crise não é a falência do ser... é a falência do ser instituído, coíbido, limitado... É clamor por libertação... Uma necessidade de se romper a escuridão e instaurar a aurora...

Sofremos nas crises... Angústia, tristeza, sentimento de despersonalização, medo... O que era já não contempla o que pode o humano... e o sistema vigia, cerceia, amordaça... teme a palavra nova que a crise anuncia.... Um grito pela vida de suavidade e paz... ternura e amor...

Na crise, no indivíduo e no coletivo, pulsa o inédito viável, o projeto de libertação, a utopia como efervescência vital exigindo, num surto, um salto... Um novo existir... Novos sentidos: sonhos e desejos reinventando o homem e a humanidade...

Há uma luz no fim do tunel...

O deserto é fértil...

Na crise, a morte é a ingerência do status quo no seu temor de mudança... Nela, grita a vida... Clama por vida nova, nova humanidade...

A destrutividade que surge no emaranhado de uma crise é o desespero do homem velho e das instituições organizadas como poder dominante... Ela na destrutividade está sendo amordaçada, para que não anuncie as novas possibilidades de alegria e paz que florescem quando a convertemos em fonte, ponte, passagem... um clamor íntimo e coletivo... por um além... pela vida de abundância que é o espaço do devir nos voos encantados do amor para além do ego... uma nova humanidader, um povo por-vir...