segunda-feira, 12 de setembro de 2011

DIÁRIO DE BORDO: VIVER É SER OUTRO...

                                            Jorge Bichuetti

Dia claro... O alvorecer ativou a vida e sons, cores, cheiros... tudo já me fala do dia novo, recomeçado. Os pássaros persistem cantando, como se desejassem perpetuar o momento mágico do recomeço... Minha pequena Luínha, depois de um tempinho de mimos, já se rendeu à magia dos sonhos...
No clarão de um novo dia, reflito... penso no que nos impede de recomeçar; que forças nos atrelam ao passado e nos mantém na mesmice, roubando-nos a ousadia de inventar no recomeço um dia que pudesse ser nomeado de uma grande novidade... Tendemos ao processo mecânico de existir na repetição, no cinza, fixados no ontem... Evitamos o novo, a mudança... Fugimos da vida; pois a desenhamos na arquitetura do nosso existir como uma linear continuidade... E a vida é bela e grandiosa por conter nas suas entranhas o disruptivo, o novo inédito... a ruptura... um salto...
Se a vida é impermanência, mutações, mudanças... ao perpetuá-la rotina aborrecida, acabamos vivendo-a, somente, parcialmente... Fatiamos a vida e vivemos uma fatia de vida, alheios às outras possibilidades do existir...
A natureza é um adereço... só a pensamos e a sentimos nas grandes catástrofes... Assim, a ecologia é um discurso racional; politicamente correto, consensual... contudo, não incorporamos na afetação deste diálogo um novo existir em que uma nova relação com a natureza pudesse colorir, energizar, vitalizar o nosso dia-a-dia... Não vemos, não contemplamos... Não convivemos com a natureza... Ela é um dado na metereologia que ouvimos ou lemos... discurso para a captação dos nossos neurônios... Todavia, o novo, a mudança mora na pele... Senti-la... Conectamo-nos com... Con-viver com a natureza, tornando-a cenário vivo e um interlocutor ativo nos modificaria a subjetividade...
As pessoas passam e nós passamos... porém, reafirmamos o individualismo, nunca abrindo-nos para o encontro... Passam e passamos, todos num sufocante anonimato...
Seguimos nossa rotina servis e submissos ao roteiro previamente delineado... Não ousamos quebrar a lógica e inventar uma nova experimentação vital...
Muitas vezes, nem mesmo, os trajetos da na circulação no tecido social é alterado: as mesmas ruas, as mesmas esquinas... as mesmas paradas...
Incorporamos o ideal da produtividade; com a supressão de desejos e sonhos... Assim, vivemos, racionais, não pensamos... percorremos os labirintos das prescrições dadas do receituário, no manual de instruções...  o que é o salto e que abre novos saltos no racional é a criatividade, o inventivo, o pensar criticamente e dar à vida nossa invenção singular... Neste existir, abolimos a afetividade... ou melhor, a mantemos sob rígido controle: afetividade e emoções assépticas e incolores... Nunca paramos para dialogar com o nosso próprio coração e com a nossa pele; e se os escutamos, logo os colocamos submetidos aos alvitres da racionalidade pragmática...
Neste sentido, somos uma humanidade perfeita... para o mercado, para a exploração e opressão, para a anulação da vida criativa, desejante, liberta, de intensidade e de produção de alegria...
Somos uma humanidade castrada na sua própria humanidade... Somos robôs...
Acordar o humano que pulsa, sente, vibra, chora, sorri, brinca, sonha, ama, cria, angustia-se, desespera-se... espera, tece esperanças...  é o nosso grande desafio...
Longe destes questionamentos, alheios a este desafio, permaneceremos humanidade castrada, programada, de repetições cinzentas e de vida entristecida e ansiôgena... Vida negada...
E este o grande motivo que nos soa insurgente o analisador verso de Guimarães Rosa "Felicidade se acha é em horinhas de descuido"
Ou como nos disse Fernando Pessoa:
- "Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida."

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