sábado, 8 de outubro de 2011

BONS ENCONTROS: O HUMANISNO DE CHE GUEVARA

 
O socialismo e o homem em Cuba   
 
Che
Caro companheiro: acabo estas notas em viagem por África animado pelo desejo de cumprir, embora tarde, a minha promessa. Gostava de fazê-lo tratando o tema do título. Acho que pode ser interessante para os leitores uruguaios. É comum ouvir da boca dos porta-vozes dos capitalistas, como um argumento na luta ideológica contra o socialismo, a afirmação de que este sistema social, ou o período de construção do socialismo ao que estamos nós expostos, caracteriza-se pela abolição do indivíduo em troca do Estado. Não pretenderei refutar esta afirmação sobre uma base meramente teórica, senão que estabelecer os fatos tal qual se vivem em Cuba e agregar comentários de índole geral.
Primeiro bosquejarei a grandes rasgos a história da nossa luta revolucionária antes e depois da tomada do poder.

Como já se sabe a data precisa na que se iniciaram as ações revolucionárias que culminariam no primeiro de janeiro de 1959 foi o 26 de Julho de 1953. Um grupo de homens dirigidos por Fidel Castro atacou na madrugada desse dia o Quartel "Moncada", na província de Oriente. O ataque foi um fracasso, o fracasso transformou-se em desastre e os sobreviventes foram parar na prisão, para reiniciar, após serem anistiados, a luta revolucionária.

Durante esse processo, no qual só existiam germes do socialismo, o homem era um fator fundamental. Confiava-se nele, individualizado, específico, com nome e sobrenome, e da sua capacidade de ação dependia o triunfo ou o fracasso do fato encomendado.

Chegou a etapa da luta guerrilheira. Esta desenvolveu-se em dois ambientes diferentes: o povo, massa ainda adormecida a quem havia que mobilizar, e a sua vanguarda, a guerrilha, motor impulsionador da mobilização, gerador de consciência revolucionária e de entusiasmo combativo. Foi esta vanguarda o agente catalisador, o que criou as condições subjetivas necessárias para a vitória. Também nela, no quadro do processo de proletarização do nosso pensamento, da revolução que se operava nos nossos hábitos, nas nossas mentes, o individuo foi um fator fundamental. Cada um dos combatentes da Sierra Maestra que atingira algum grau superior nas forças revolucionárias tem uma história de fatos notáveis no seu haver.

Em base a estes lograva os seus graus.

Foi a primeira época, heróica, na qual se disputavam por lograr um cargo de maior responsabilidade, de maior perigo, sem outra satisfação que o cumprimento do dever. No nosso trabalho de educação revolucionária, voltamos amiúde sobre este tema lecionador. Na atitude dos nossos combatentes vislumbrava-se o homem do futuro.

Noutras oportunidades da nossa história repetiu-se o fato da entrega total à causa revolucionária. Durante a crise de Outubro ou nos dias do ciclone "Flora" vimos atos de valor e sacrifício excepcionais realizados por todo um povo. Encontrar a fórmula para perpetuar na vida quotidiana essa atitude heróica é uma das nossas tarefas fundamentais do ponto de vista ideológico.

Em janeiro de 1959 estabeleceu-se o governo revolucionário com a participação de vários membros da burguesia entreguista. A presença do Exército Rebelde constituía a garantia de poder, como fator fundamental de força.

Produziram-se imediatamente contradições sérias, resolvidas em primeira instância, em fevereiro de 59, quando Fidel Castro assumiu a chefia do governo com o cargo de primeiro-ministro. Culminava o processo em julho desse mesmo ano, ao renunciar o presidente Urrutia perante a pressão das massas.

Aparecia na história da Revolução Cubana, agora com características nítidas, uma personagem que se repetirá sistematicamente: a massa.

Esse ente multifacetado não é, como se pretende, a soma de elementos da mesma categoria (reduzidos à mesma categoria, ademais, pelo sistema imposto), que atua como um manso rebanho. É verdade que segue sem vacilar os seus dirigentes, fundamentalmente Fidel Castro, mas o grau no que ele ganhou essa confiança responde precisamente à interpretação exata dos desejos do povo, das suas aspirações, e à luta sincera pelo cumprimento das promessas feitas.

A massa participou na Reforma Agrária e no difícil empenho da administração das empresas estatais; passou pela experiência heróica de Praia Girón; forjou-se nas lutas contra os distintos bandos de bandidos armados pela CIA; viveu uma das definições mais importantes dos tempos modernos na crise de Outubro e segue hoje trabalhando na construção do socialismo.

Vistas as coisas desde um ponto de vista superficial, podia parecer que têm razão aqueles que falam da subordinação do individuo ao Estado; a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem iguais as tarefas que o governo fixa, já sejam de índole econômica, cultural, de defesa, desportiva, etc. A iniciativa parte em geral de Fidel ou do alto comando da revolução e é explicada ao povo que a toma como sua. Outras vezes, experiências locais são tomadas pelo partido e o governo para fazê-las gerais, seguindo o mesmo procedimento.

Porém o Estado erra às vezes. Quando se produz um desses equívocos, nota-se uma diminuição do entusiasmo coletivo por efeitos de uma diminuição qualitativa de cada um dos elementos que a conformam, e o trabalho paralisa-se até ficar reduzido a magnitudes insignificantes; é o instante de retificar.

Assim sucedeu em março de 1962 perante a política sectária imposta ao partido por Aníbal Escajante.

É evidente que o mecanismo não basta para assegurar uma sucessão de medidas sensatas e que falta uma conexão mais estruturada com a massa. Devemos melhorá-lo durante o curso dos próximos anos, mas, no caso das iniciativas surgidas nos estratos superiores do governo, utilizamos por agora o método quase intuitivo de auscultar as reações gerais frente aos problemas formulados.

Mestre nisto é Fidel, cujo particular modo de integração com o povo só se pode apreciar vendo-o atuar. Nas grandes concentrações públicas observa-se algo assim como o diálogo de dois diapasões cujas vibrações provocam outras novas no interlocutor. Fidel e a massa começam a vibrar num diálogo de intensidade crescente até atingir o clímax num final abrupto, coroado pelo nosso grito de luta e de vitória.

O difícil de entender para quem não viva a experiência da revolução é essa estreita unidade dialética existente entre o indivíduo e a massa, onde ambos se inter-relacionam e, à sua vez, a massa, como conjunto de indivíduos, inter-relaciona-se com os dirigentes.

No capitalismo podem ver-se alguns fenômenos deste tipo quando aparecem políticos capazes de lograr a mobilização popular, mas se não se tratar dum autêntico movimento social, em cujo caso não é plenamente lícito falar de capitalismo, o movimento viverá o que a vida de quem o impulsione ou até o fim das ilusões populares, imposto pelo rigor da sociedade capitalista. Nesta, o homem está dirigido por um frio ordenamento que, habilmente, escapa ao domínio da sua compreensão. O exemplar humano, alienado, tem um invisível cordão umbilical que o liga à sociedade no seu conjunto: a lei do valor. Ela age em todos os aspectos da sua vida, vai modelando o seu caminho e o seu destino.

As leis do capitalismo, invisíveis para o comum das gentes e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este se percate. Só vê a amplidão de um horizonte que aparece infinito. Assim o apresenta a propaganda capitalista que pretende extrair do caso Rockefeller - verídico ou não - uma lição sobre as possibilidades de êxito. A miséria que é necessário acumular para que surja um exemplo assim e a soma de ruindades que leva a uma fortuna dessa magnitude, não aparecem no quadro e nem sempre é possível às forças populares clarificar estes conceitos. (Caberia aqui a desquisição sobre como nos países imperialistas os operários vão perdendo o seu espírito internacional de classe sob a influência de uma certa cumplicidade na exploração dos países dependentes e como este fato, ao mesmo tempo, lima o espírito de luta das massas no próprio país, mas esse é um tema que sai da intenção destas notas).

De todo modo, mostra-se o caminho com obstáculos que, aparentemente, um indivíduo com as qualidades necessárias pode superar para chegar à meta. O prêmio observa-se ao longe; o caminho é solitário. Ademais, é uma corrida de lobos: só se pode chegar sobre o fracasso de outros.

Tentarei, agora, definir o indivíduo, ator desse estranho e apaixonante drama que é a construção do socialismo, na sua dupla existência de ser único e membro da comunidade.

Acho que o mais simples é reconhecer a sua qualidade de não feito, de produto não acabado. As taras do passado transladam-se ao presente na consciência individual e há que fazer um trabalho contínuo para erradicá-las.

O processo é duplo, por um lado age a sociedade com a sua educação direta e indireta, por outro, o indivíduo submete-se a um processo consciente de auto-educação.

A nova sociedade em formação tem que competir muito duramente com o passado. Isto faz-se sentir não só na consciência individual, na que pesam os resíduos de uma educação sistematicamente orientada ao isolamento do indivíduo, senão que também pelo caráter mesmo deste período de transição, com persistência das relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto exista, os seus efeitos far-se-ão sentir na organização da produção e, por conseguinte, na consciência.

No esquema de Marx concebia-se o período de transição como resultado da transformação explosiva do sistema capitalista desfeito pelas suas contradições; na realidade posterior viu-se como se separavam da árvore imperialista alguns países que constituem as ramagens mais fracas, fenômeno previsto por Lenine. Nestes, o capitalismo desenvolveu-se o suficiente como para fazer sentir os seus efeitos de um modo ou outro sobre o povo, mas não são as suas próprias contradições as que, esgotadas todas as possibilidades, fazem saltar o sistema. A luta de libertação contra um opressor externo, a miséria provocada por acidentes estranhos, como a guerra, cujas conseqüências fazem recair as classes privilegiadas sobre os explorados, os movimentos de libertação destinados a derrocar regimes neocoloniais, são os fatores habituais do desencadeamento. A ação consciente faz o resto.

Nestes países não se produziu ainda uma educação completa para o trabalho social e a riqueza dista de estar ao alcance das massas mediante o simples processo de apropriação. O subdesenvolvimento por um lado e a habitual fuga de capitais face aos países "civilizados" por outro, fazem impossível uma mudança rápida e sem sacrifícios. Resta um grande tramo a percorrer na construção da base econômica e a tentação de seguir os caminhos trilhados de interesse material, como alavanca impulsionadora dum desenvolvimento acelerado, é muito grande.

Corre-se o perigo de que as árvores impeçam de ver o bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com a ajuda das armas deterioradas que nos legara o capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca, etc), pode-se chegar a um beco sem saída. E chega-se lá após percorrer uma longa distância na que os caminhos se cruzam muitas vezes e onde é difícil perceber o momento no que se equivocou a rota. Entretanto, a base econômica adaptada tem feito o seu trabalho de sapa sobre o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material há que se fazer o homem novo.

Daí a importância de eleger corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole moral, fundamentalmente, sem esquecer uma correta utilização do estímulo material, sobre tudo de natureza social.

Como já afirmei, nos momentos de perigo extremo é fácil potenciar os estímulos morais; para manter a sua vigência, é necessário o desenvolvimento de uma consciência em que os valores adquiram categorias novas. A sociedade no seu conjunto deve converter-se em uma gigantesca escola.

As grandes linhas do fenômeno som similares ao processo de formação da consciência capitalista na sua primeira época. O capitalismo recorre à força, mas, também, educa a gente no sistema. A propaganda direta realiza-se pelos encarregados de explicar a inelutabilidade de um regime de classe, já seja de origem divina ou por imposição da natureza como ente mecânico. Isto aplaca as massas que se vem oprimidas por um mal contra o qual não é possível a luta.

A continuação vem a esperança, e nisto diferencia-se dos anteriores regimes de casta que não davam saída possível.

Para alguns continuará vigente ainda a fórmula da casta: o prêmio aos obedientes consiste na chegada, após a morte, a outros mundos maravilhosos onde os bons são premiados, com o que se segue a velha tradição. Para outros, a inovação: a separação em classes é fatal, mas os indivíduos podem sair daquela à que pertencem mediante o trabalho, a iniciativa, etc. Este processo, e o de autodeterminação para o triunfo, devem ser profundamente hipócritas; é a demonstração interessada de que uma mentira é verdade.

No nosso caso, a educação direta adquire uma importância muito maior. A explicação é convincente porque é verdadeira; não precisa de subterfúgios: Exerce-se mediante o aparelho educativo do Estado em função da cultura geral, técnica e ideológica, por meio de organismos tais como o Ministério de Educação e o aparelho de divulgação do partido. A educação prende nas massas e a nova atitude preconizada tende a converter-se em hábito; a massa a vai fazendo sua e pressiona quem ainda não se educou. Esta é a forma indireta de educar as massas, tão poderosa como aquela outra.

Mas o processo é consciente; o indivíduo recebe continuamente o impacto do novo poder social e percebe que não está completamente adequado a ele. Sob a influência da pressão que supõe a educação indireta, trata de acomodar-se a uma situação que sente justa e cuja própria falta de desenvolvimento impediu-lhe fazê-lo até agora. Auto-educa-se.

Neste período de construção do socialismo podemos ver o homem novo que vai nascendo. A sua imagem não está ainda acabada; não o podia estar nunca já que o processo marcha paralelo ao desenvolvimento de formas econômicas novas. Descontando aqueles cuja falta de educação os faz tender ao caminho solitário, à auto-satisfação das suas ambições, há os que ainda dentro deste novo panorama de marcha conjunta têm tendência a caminhar isolados da massa que acompanham. O importante é que os homens adquiram cada dia mais consciência da necessidade da sua incorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, da sua importância como motores da mesma.

Já não marcham completamente sós, por caminhos estreitos, extraviados, face a longínquos anseios. Seguem a sua vanguarda, constituída pelo partido, pelos operários avançados, pelos homens avançados que caminham ligados às massas e em estreita comunhão com elas. As vanguardas têm a sua vista posta no futuro e na sua recompensa, mas esta não se enxerga ao longe como algo individual; o prêmio é a nova sociedade onde os homens terão características diferentes: a sociedade do homem comunista.

O caminho é longo e está cheio de dificuldades. Às vezes por extraviar a rota, há que retroceder; outras, por caminhar com excessiva pressa, separamo-nos das massas; em algumas ocasiões, por fazê-lo lentamente, sentimos o alento próximo dos que nos pisam os calcanhares. Na nossa ambição de revolucionários, tratamos de caminhar tão depressa como seja possível, abrindo caminhos, mas sabemos que temos que nutrir-nos da massa e que esta só poderá avançar mais rápido se a alentarmos com o nosso exemplo.

Apesar da importância dada aos estímulos morais, o fato de que exista a divisão em dois grupos principais (excluindo, claro está, a fração minoritária dos que não participam, por uma razão ou por outra, na construção do socialismo), indica a relativa falta de desenvolvimento da consciência social. O grupo de vanguarda é ideologicamente mais avançado que a massa; esta conhece os valores novos, mas insuficientemente. Enquanto nos primeiros produz-se uma mudança qualitativa, os segundos só vem a meias e devem ser submetidos a estímulos e pressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado exercendo-se não só sobre a classe derrotada, senão que também, individualmente, sobre a classe vencedora.

Tudo isto entranha, para o seu êxito total, a necessidade de uma série de mecanismos, as instituições revolucionárias. Na imagem das multidões avançando face ao futuro, encaixa o conceito de institucionalização como o de um conjunto harmônico de canais, degraus, represas, aparelhos bem azeitados que permitam essa marcha, que permitam a seleção natural dos destinados a caminhar na vanguarda e que adjudiquem o prêmio e o castigo aos que cumprem ou atentam contra a sociedade em construção.

Esta institucionalidade da revolução ainda não se logrou. Procuramos algo novo que permita a perfeita identificação entre o governo e a comunidade no seu conjunto, ajustada às condições peculiares da construção do socialismo e fugindo ao máximo dos lugares comuns da democracia burguesa transplantados à sociedade em formação (como as câmaras legislativas, por exemplo). Têm-se feito algumas experiências dedicadas a criar paulatinamente a institucionalização da revolução, mas sem excessiva pressa. O maior freio que tivemos tem sido o medo a que qualquer aspecto formal nos separe das massas e do indivíduo, nos faça perder de vista a última e mais importante ambição revolucionária que é ver o homem libertado da sua alienação.

Apesar da carência de instituições, o que deve superar-se gradualmente, agora as massas fazem a história como o conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. O homem, no socialismo, apesar da sua aparente estandarização, é mais completo; apesar da falta de mecanismo perfeito para isso, a sua possibilidade de se exprimir e fazer-se sentir no aparelho social é infinitamente maior.

Ainda é preciso acentuar a sua participação consciente, individual e coletiva, em todos os mecanismos de direção e de produção e ligá-la à idéia da necessidade da educação técnica e ideológica, de maneira que sinta como estes processos são estreitamente interdependentes e os seus avanços são paralelos. Assim logrará a total consciência do seu ser social, o que equivale à sua realização plena como criatura humana, partidas as cadeias da alienação.

Isto traduzir-se-á concretamente na reapropriação da sua natureza mediante o trabalho libertado e da expressão da sua própria condição humana por meio da cultura e da arte.

Para que se desenvolva na primeira, o trabalho deve adquirir uma condição nova; a mercadoria homem cessa de existir e instala-se um sistema que outorga uma cota pelo cumprimento do dever social. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é só a trincheira onde se cumpre o dever. O homem começa a libertar o seu pensamento do fato desagradável que supunha a necessidade de satisfazer as suas necessidades animais mediante o trabalho. Começa a se ver retratado na sua obra e a compreender a sua magnitude humana mediante o objeto criado, do trabalho realizado. Isto já não entranha deixar uma parte do seu ser em forma de força de trabalho vendida, que não lhe pertence mais, senão que significa uma emanação de si próprio, um achegamento à vida comum na que se reflete; o cumprimento do seu dever social.

Fazemos todo o possível para dar-lhe ao trabalho esta nova categoria de dever social e uni-lo ao desenvolvimento da técnica, por um lado, o que dará condições para uma maior liberdade, e ao trabalho voluntário por outro, baseados na apreciação marxista de que o homem realmente atinge a sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria.

Claro que ainda há aspectos coativos no trabalho, ainda quando seja voluntário; o homem não tem transformado toda a coerção que o rodeia no reflexo condicionado de natureza social e ainda produz, em muitos casos, sob a pressão do meio (compulsão moral, chama-a Fidel). Ainda lhe falta atingir a completa recriação espiritual perante a sua própria obra, sem a pressão direta do meio social, mas ligado a ele pelos novos hábitos. Isto será o comunismo.

A mudança não se produz automaticamente na consciência, como tampouco se produz na economia. As variações são lentas e não são rítmicas; há períodos de aceleração, outros pausados e inclusive de retrocesso.

Devemos considerar, ademais, como apontávamos antes, que não estamos frente ao período de transição puro, tal como o vira Marx na Crítica do Programa de Gotha, senão em uma nova fase não prevista por ele; primeiro período de transição do comunismo ou da construção do socialismo.

Este transcorre em meio de violentas lutas de classe e com elementos de capitalismo no seu seio que obscurecem a compreensão exata da sua essência.

Se a isto agregarmos o escolasticismo que tem freado o desenvolvimento da filosofia marxista e impedido o tratamento sistemático do período, cuja economia política não se tem desenvolvido, devemos convir em que ainda estamos em fraldas e é preciso dedicar-se a investigar todas as características primordiais do mesmo antes de elaborar uma teoria econômica e política de maior alcance.

A teoria que resultar dará indefectivelmente preeminência aos dois alicerces da construção: a formação do homem novo e o desenvolvimento da técnica. Em ambos aspectos falta-nos muito por fazer, mas é menos excusável o atraso enquanto à concepção da técnica como base fundamental, já que aqui não se trata de avançar às apalpadelas, senão que de seguir durante um bom tramo no caminho aberto pelos países mais adiantados do mundo. Por isso Fidel insiste com tanta insistência sobre a necessidade da formação tecnológica e científica de todo o nosso povo e, ainda mais, da sua vanguarda.

No campo das idéias que conduzem a atividades não produtivas, é mais fácil ver a divisão entre necessidade material e espiritual. Desde há muito tempo o homem trata de libertar-se da alienação mediante a cultura e a arte. Morre diariamente as oito ou mais horas em que age como mercadoria para ressuscitar na sua criação espiritual. Mas este remédio porta os germes da própria doença: é um ser solitário o que procura comunhão com a natureza. Defende a sua individualidade oprimida pelo meio e reage perante as idéias estéticas como um ser único cuja aspiração é permanecer imaculado.

Trata-se só de uma tentativa de fuga. A lei do valor não é já um mero reflexo das relações de produção; os capitalistas monopolistas rodeiam-na de um complicado andaime que a converte em uma serva dócil, embora os métodos que empregam sejam puramente empíricos. A superestrutura impõe um tipo de arte no qual há que educar os artistas. Os rebeldes são dominados pela maquinaria e só os talentos excepcionais poderão criar a sua própria obra. Os restantes devem ser assalariados envergonhados ou são triturados.

Inventa-se a investigação artística à que se dá como definidora da liberdade, mas esta "investigação" tem os seus limites, imperceptíveis até o momento de chocar com eles, vale dizer, de formular-se os reais problemas do homem e a sua alienação. A angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvulas cômodas à inquietação humana; combate-se a idéia de fazer da arte uma arma de denúncia.

Respeitando as leis do jogo conseguem-se todas as honras; as que poderia ter um macaco inventando cabriolas. A condição é não tratar de fugir da gaiola invisível.

Quando a revolução tomou o poder produziu-se o êxodo dos domesticados totais; o resto, revolucionários ou não, viram um caminho novo. A investigação artística cobrou novo impulso. Não obstante, as rotas estavam mais ou menos traçadas e o sentido do conceito fuga escondeu-se atrás da palavra liberdade. Nos próprios revolucionários manteve-se muitas vezes essa atitude, reflexo do idealismo burguês na consciência.

Nos países que passaram por um processo similar pretendeu-se combater as tendências com um dogmatismo exagerado. A cultura geral converteu-se quase num tabu e proclamou-se o summum da aspiração cultural uma representação formalmente exata da natureza, convertendo-se esta, logo, em uma representação mecânica da realidade social que se queria fazer ver; a sociedade ideal, quase sem conflitos nem contradições, que se procurava criar.

O socialismo é jovem e tem erros. Os revolucionários carecemos, muitas vezes, dos conhecimentos e da audácia intelectual necessárias para arrostar a tarefa do desenvolvimento de um homem novo por métodos diferentes aos convencionais, e os métodos convencionais sofrem da influência da sociedade que os criou. (Outra vez formula-se o tema da relação entre forma e conteúdo). A desorientação é grande e os problemas da construção material absorvem-nos. Não há artistas de grande autoridade que, por sua vez, tenham grande autoridade revolucionária.

Os homens do partido devem tomar essa tarefa entre as mãos e procurar o logro do objetivo principal: educar o povo.

Procura-se então a simplificação, o que entende todo o mundo, que é o que entendem os funcionários. Anula-se a autêntica investigação artística e reduz-se o problema da cultura geral a uma apropriação do presente socialista e do passado morto (portanto, não perigoso). Assim nasce o realismo socialista sobre as bases da arte do século passado.

Mas a arte socialista do século XIX também é de classe, mais puramente capitalista, quiçá, que esta arte decadente do século XX, onde se faz transparente a angústia do homem alienado. O capitalismo em cultura deu tudo de si e não fica dele senão o anúncio de um cadáver fedorento; na arte, a sua decadência de hoje. Mas, porque pretender procurar nas formas congeladas do realismo socialista a única receita válida?. Não se pode opor ao realismo socialista "a liiberdade", porque esta ainda não existe, não existirá até o completo desenvolvimento da nova sociedade; mas que não se pretendam condenar todas as formas de arte posteriores à primeira metade do século XIX desde o trono pontifício do realismo a ultrança, pois cair-se-ia num erro proudhoniano de retorno ao passado, pondo-lhe camisas-de-força à expressão artística do homem que nasce e se constrói hoje.

Falta o desenvolvimento dum mecanismo ideológico-cultural que permita a investigação e roce a má erva, tão facilmente multiplicável no terreno abonado do subsídio estatal.

No nosso país, o erro do mecanicismo realista não se deu, mas sim outro de signo contrário. E tem sido por não compreender a necessidade da criação do homem novo, que não seja o que representa as idéias do século XIX, mas tampouco as do nosso século decadente e morboso. O homem do século XIX é o que devemos criar, embora seja uma aspiração subjetiva e não sistematizada. Precisamente este é um dos pontos fundamentais do nosso estudo e do nosso trabalho, e na medida em que atingirmos êxitos concretos sobre uma base teórica ou, vice-versa, poderemos extrair conclusões teóricas de caráter amplo sobre a base da nossa investigação concreta, teremos feito um achegamento valioso ao marxismo-leninismo, à causa da humanidade.

A reação contra o homem do século XIX tem trazido a reincidência na decadência do século XX; não é um erro demasiado grave, mas devemos superá-lo, sob pena de abrir um largo canal ao revisionismo.

As grandes multidões vão-se desenvolvendo, as novas idéias vão atingindo adequado ímpeto no seio da sociedade, as possibilidades materiais de desenvolvimento integral de absolutamente todos os seus membros fazem muito mais frutífero o labor. O presente é de luta; o futuro é nosso.

Resumindo, a culpabilidade de muitos dos nossos intelectuais e artistas reside no seu pecado original; não são autenticamente revolucionários. Podemos tentar enxertar o negrilho para que dê peras; mas simultaneamente há que sementar pereiras. As novas gerações virão livres de pecado original. As probabilidades de que surjam artistas excepcionais serão tanto maiores quanto mais se tenha alargado o campo da cultura e a possibilidade de expressão. A nossa tarefa consiste em impedir que a geração atual, deslocada pelos seus conflitos, se perverta e perverta as novas. Não devemos criar assalariados dóceis ao pensamento oficial nem "bolseiros" que vivam do amparo do orçamento, exercendo uma liberdade entre aspas. Já virão os revolucionários que entoem o canto do homem novo com a autêntica voz do povo. É um processo que requer tempo.

Na nossa sociedade, jogam um grande papel a mocidade e o partido. Particularmente importante é a primeira por ser a argila maleável com a que se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores. Recebe um trato acorde com as nossas ambições. A sua educação é cada vez mais completa e não esquecemos a sua integração ao trabalho desde os primeiros instantes. Os nossos bolsistas fazem trabalho físico nas suas férias ou simultaneamente com o estudo. O trabalho é um prêmio em certos casos, um instrumento de educação em outros, jamais um castigo. Uma nova geração nasce.

O partido é uma organização de vanguarda. Os melhores trabalhadores são propostos pelos seus companheiros para integrá-lo. Este é minoritário mas de grande autoridade pela qualidade dos seus quadros. A nossa aspiração é que o partido seja de massas, mas quando as massas tenham atingido o nível de desenvolvimento da vanguarda, é dizer, quando estejam educadas para o comunismo. E a essa educação vai encaminhado o trabalho.

O partido é o exemplo vivo; os seus quadros devem ditar cátedra de trabalho e sacrifício, devem levar, com a sua ação, as massas ao fim da tarefa revolucionária, o que entranha anos de dura luta contra as dificuldades da construção, dos inimigos de classe, as lacras do passado, o imperialismo ...

Quisera exprimir agora o papel que joga a personalidade, o homem como indivíduo dirigente das massas que fazem a História. É a nossa experiência, não uma receita.

Fidel deu à revolução o impulso nos primeiros anos, a direção, a tônica sempre, mas há um bom grupo de revolucionários que se desenvolvem no mesmo sentido que o dirigente máximo e uma grande massa que segue os seus dirigentes porque têm fé neles; e têm fé, porque eles souberam interpretar os seus anseios.

Não se trata de quantos quilogramas de carne se come ou de quantas vezes por ano pode ir alguém passear na praia, nem de quantas belezas que vêem do exterior podem comprar-se com os salários atuais. Trata-se, precisamente, de que o indivíduo se sinta mais pleno, com muito mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade. O indivíduo do nosso país sabe que a época gloriosa que lhe toca viver é de sacrifício; conhece o sacrifício.

Os primeiros conheceram-no em Sierra Maestra e onde quer que se lutou; depois conhecemo-lo em toda Cuba. Cuba é a vanguarda de América e deve fazer sacrifícios porque ocupa o lugar de avançada, porque indica às massas de América Latina o caminho da liberdade plena.

Dentro do país, os dirigentes têm que cumprir o seu papel de vanguarda; e, há que dizê-lo com toda a sinceridade, em uma revolução verdadeira, à que se lhe dá tudo, da qual não se espera nenhuma retribuição material, a tarefa de revolucionário de vanguarda é à vez magnífica e angustiosa.

Deixe dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade. Quiçá seja um dos grandes dramas do dirigente; este deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria e tomar decisões sem que se contraia um músculo. Os nossos revolucionários de vanguarda têm que idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas e fazê-lo único, indivisível. Não podem descer com a sua pequena dose de carinho quotidiano em face aos lugares onde o homem comum o exercita.

Os dirigentes da revolução têm filhos que nos seus primeiros balbuciamentos aprendem a nomear o pai; mulheres que devem ser parte do sacrifício geral da sua vida para levar a revolução ao seu destino; o quadro dos amigos resposta estritamente ao quadro dos companheiros de revolução. Não há vida fora dela.

Nessas condições, há que ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentido da justiça e da verdade para não cairmos em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, no isolamento das massas. Todos os dias há que lutar para que esse amor à humanidade vivente se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo, de mobilização.

O revolucionário, motor ideológico da revolução dentro do seu partido, consume-se nessa atividade ininterrupta que não tem mais fim do que a morte, a menos que a construção se atinja a escala mundial. Se o seu afã de revolucionário se embota quando as tarefas mais apremiantes se vêm realizadas a escala local e se esquece o internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e some-se em uma cômoda modorra, aproveitada pelos nossos inimigos irreconciliáveis, o imperialismo, que ganha terreno. O internacionalismo proletário é um dever mas também é uma necessidade revolucionária. Assim educamos o nosso povo.

Claro que há perigos presentes nas atuais circunstâncias. Não só o do dogmatismo, não só o de congelar as relações com as massas no meio da grande tarefa; também existe o perigo das debilidades nas que se possa cair. Se um homem pensa que, para dedicar a sua vida inteira à revolução, não pode distrair a sua mente pela preocupação de que a um filho lhe falte determinado produto, que os sapatos das crianças estejam esburacados, que a sua família careça de determinado bem necessário, sob este razoamento infiltram-se os germes da futura corrupção.

No nosso caso, mantivemos que os nossos filhos devem ter e carecer do que têm e do que carecem os filhos do homem comum; e a nossa família deve compreendê-lo e lutar por isso. A revolução faz-se através do homem, mas o homem tem que forjar dia a dia o seu espírito revolucionário.

Assim vamos marchando. À cabeça da imensa coluna - não nos envergonha nem nos intimida dizê-lo - vai Fidel, depois os melhores quadros do partido e imediatamente, tão perto que se sente a sua enorme força, vai o povo no seu conjunto; sólida armação de individualidades que caminham face a um fim comum; indivíduos que têm atingido a consciência do que é necessário fazer; homens que lutam por sair do reino da necessidade e entrar no da liberdade.

Essa imensa multidão ordena-se; a sua ordem responde à consciência da necessidade do mesmo; já não é força dispersa, divisível em milheiros de frações disparadas ao espaço como fragmentos de granada, tratando de atingir por qualquer meio, em dura luta com os seus iguais uma posição, algo que permita apoio frente ao futuro incerto.

Sabemos que há sacrifícios diante de nossa rota e que devemos pagar um preço pelo fato heróico de constituir uma vanguarda como nação. Nós, dirigentes, sabemos que temos que pagar um preço por ter direito a dizer que estamos à cabeça do povo que está à cabeça de América.

Todos e cada um de nós paga pontualmente a sua quota de sacrifício, conscientes de receber o prêmio na satisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todos face ao homem novo que se vislumbra no horizonte.

Permita-me tentar umas conclusões:

Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres.

O esqueleto da nossa liberdade completa está formado, falta a substância proteica e a roupagem; criaremo-las.

A nossa liberdade e o seu sustém quotidiano tem cor de sangue e estão cheios de sacrifício.

O nosso sacrifício é consciente; cota para pagar a liberdade que construímos.

O caminho é longo e desconhecido em parte; conhecemos as nossas limitações. Faremos o homem do século XXI nós mesmos.

Forjar-nos-emos na ação quotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica.

A personalidade joga o papel de mobilização e direção em quanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e não se separa da rota.

Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhores entre os bons, o partido.

A argila fundamental da nossa obra é a juventude: nela depositamos a nossa esperança e preparamo-la para tomar das nossas mãos a bandeira.

Se esta carta balbuciante aclarar alguma coisa, cumprirá o objetivo com o qual a mando.

Recebe a nossa saudação ritual, como um aperto de mãos ou uma "Ave Maria Puríssima": Pátria ou morte.

[Texto dirigido a Carlos Quijano e publicado no semanário Marcha, Montevidéu, março de 1965]

Ernesto “Che” Guevara (1928-1967), médico argentino, conheceu Raúl Castro, em 1954 no México, que o apresentou a Fidel Castro, tendo sido um dos comandantes do foco guerrilheiro da Sierra Maestra que germinou de 1956 a 1959 a Revolução Cubana

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