Confinamento
Amauri Ferreira
O animal que é colocado à força em um cativeiro reage agressivamente contra essa situação. Entretanto, quando ele está, de alguma forma, adaptado ao cativeiro, apenas come, bebe água, dorme muito. Nessa situação, o animal apenas sobrevive. Embora esteja livre das ameaças dos predadores, esse animal apresenta comportamentos muito diferentes dos que vivem livremente. Limitado pela arquitetura do cativeiro, a sua força não encontra a via suficiente para agir e modificar o ambiente. Enquanto sobrevive no cativeiro, ele não passa pelas experiências fundamentais de procurar o seu alimento, de voar, de enfrentar riscos, de fugir do que o amedronta, de explorar o seu ambiente, de inventar soluções para os problemas que sempre surgem no seu habitat. Com o passar do tempo, esse animal torna-se inevitavelmente entediado porque praticamente tudo que acontece no ambiente artificial em que habita é previsível - as condições em que vive impedem que o imprevisto surja como uma abertura para a sua ação. Em suma, o animal que vive no cativeiro é incapaz de criar um mundo próprio. As tentativas de introduzir nos cativeiros objetos que provocam um mínimo de imprevisto para estimular os sentidos do animal, de maneira que ele possa ter alguma ação, apenas funcionam como paliativos... Já o animal homem, escondido sob o invólucro da racionalidade, busca o confinamento voluntariamente. Ele sobrevive enclausurado no mundo artificial arquitetado para que a sua força seja continuamente impedida de vazar. No seu cotidiano, desloca-se de um cativeiro a outro, o que lhe dá uma aparência de “liberdade”: seja no transporte público, no seu local de trabalho, nos estabelecimentos de ensino ou na sua própria casa, a potência do seu corpo de criar as conexões com outros corpos é continuamente refreada. Tal como o animal que sobrevive no cativeiro, o homem experimenta, na maioria das vezes, uma violência contra o seu próprio corpo, realizada dentro dos espaços modernos de confinamento – violência que é autorizada por leis que visam o seu “bem-estar”. Assim é produzido um indivíduo covarde, resignado, inofensivo e, evidentemente, muito fácil de ser enganado. Diante dessa violência, é inevitável que o seu corpo passe a reagir através de vários sintomas que apontam para uma degradação acelerada. Uma vida assim exige respiro e alívio. Constituída por seres aprisionados que amam o poder, a máquina social que organiza os indivíduos dentro dos espaços de confinamento também oferece os paliativos necessários para combater o tédio que os assola, de modo a mantê-los distraídos antes que esses sofredores destruam o funcionamento do perverso sistema de reprodução de seres atrofiados. Consumidor voraz das quinquilharias reproduzidas sob medida para os doentes, o homem-confinado padece cada vez mais porque nem sequer pode imaginar que a criação de um mundo próprio corresponde à liberdade de efetuação da sua natureza – liberdade que se exprime em um corpo apto a fazer, na maioria das vezes, as coisas que somente lhe interessa; liberdade que se exprime em um indivíduo que ama o risco, que dá boas-vindas ao imprevisto, que cria as suas próprias condições de sobrevivência ao inventar os atalhos no mundo em que vive. Antes a ação do que a crença em uma ideologia... Pois somente enquanto vive, o homem é capaz de desprezar os engodos que servem para aliviar, de modo efêmero, o desespero dos confinados.
DO BLOG: amauriferreira.blogspot.com
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