O outro é tudo
Leonardo Boff
O Ocidente teve sempre grande dificuldade em acolher o outro. A estratégia que predominou foi a da negação seja pela incorporação, pelo submetimento ou pela pura e simples destruição. O caráter imperial do Ocidente se funda na pressunção de que ele é melhor em tudo, a ponta mais avançada do espírito no mundo como escreveu Hegel.
Mas no Ocidente encontramos também outra vertente que o cura desta arrogância: a tradição judeo-cristã. Nesta tradição o outro é tudo porque através dele se dá o amor e nele se esconde Deus que se fez também outro. Ai se diz:"faz justiça ao órfão e à viuva… Amai também vós o estrangeiro pois fostes estrangeiros no Egito". Todos estes são o outro, o outro mais outro porque oprimido.
Mesmo para aqueles que não têm fé, esta tradição possui relevante função humanizadora, pois estabelece com o outro uma relação construtiva e inclusiva. No fundo, tudo passa pelo outro, pois sem o diálogo com o tu não nasce o verdadeiro eu nem surge o nós que cria o espaço da conviência e da comunhão. A exclusão do outro está na base do terror moderno, seja econômico, seja político-militar.
A relação com o outro suscita a responsabilidade. É a eterna pergunta de Caim, o assassino de Abel: "Sou eu responsável de meu irmão"? Sim, colocados diante do outro, de seu rosto e de suas mãos suplicantes não podemos nos subtrair: temos que responder. É o que significa a palavra responsabilidade, dar um responso, uma resposta ao outro.
É o outro que faz emergir a ética em nós. Ele nos obriga a uma atitude ou de acolhida ou de rejeição. A ética é a filosofia primeira, no dizer de Emmanuel Lévinas.
A maioria das filosofias do Ocidente são centradas na identidade, reservando pouco espaço para a alteridade. Por isso a ética vem sempre de menos. Tal carência assumu, por exemplo, forma trágica no filósofo Martin Heidegger no qual se notou lastimável vazio da dimensão ética. Para ele o ser humano é o "pastor do ser", não o "guardião do irmão". Aderindo ao nazismo ao ser reitor da universidade de Friburgo e, confrontado mais tarde com o fato, apenas soube dizer:"Outrora eu vestia a camisa marron (dos nazistas) mas isso foi um erro". Apenas um erro?
Para todos os que tanto temos aprendido de seu pensamento genial, tal frase soa desprovida de sentimento de responsabilidade e, por isso, de densidade ética. O que houve, na verdade, foi mais que um erro, foi falta de ética principalmente ao tolerar o afastamento de professores judeus ou suspeitos, de suas cátedras, e pouco ou nada ter feito para salvar seu mestre e orientador Edmund Husserl.
O mundo não é feito apenas de pessoas que erram e se enganam. Tragicamente é feito também por pesssoas culpáveis e anti-éticas, que não sabem dar uma resposta com responsabilidade ao outro. Por isso há tragédias na história.
Este legado ocidental da tradição judeo-cristã, centrada no outro, nos oferece uma das bases para a convivência possível e necessária no mundo globalizado. A base deve ser ética mais que política. Uma coalizão de valores que se funda na hospitalidade e na acolhida incondicional do outro como outro, no respeito de sua cultura e na disposição para uma aliança duradoura com ele. Ou fazemos isso ou então perderemos as razões para viver juntos na mesma Casa Comum. E ai sim poderemos ir fatalmente ao encontro do pior.
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