segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

BONS ENCONTROS: ESTAMIRA E A ANÁLISE DE AMAURI FERREIRA

                                      A revelação de Estamira
                                                   e a destruição da humanidade
                          
                                     AMAURI FERREIRA

É comum haver uma desvalorização do que não é compreendido por acreditar-se que palavras supostamente “desconectadas” são meros efeitos de um indivíduo perturbado. É quando a vida normalizada – que se tornou normalizada – julga, através de um restrito campo de visão dos seus valores morais, que o que não é compreendido não pode ter, por isso mesmo, alguma importância. Assim, a vida normalizada constata que o que escapa à interpretação só pode ser algo inútil: “o que eu ganharei com isso?”, pergunta-se o pobre indivíduo massificado. Agindo assim, a massa segue com as suas crenças que tornam os fenômenos do mundo “inteligíveis”. As explicações oferecidas pelas mais diversas superstições dão um impulso rumo ao tão sonhado controle da realidade. Mas o que é considerado inteligível é exatamente tudo que fornece uma aparência de que as coisas estão bem “ordenadas” através de uma fé religiosa ou de uma racionalidade humana. Essa “inteligibilidade” faz com que os verdadeiros problemas nem sequer possam ser colocados, já que estes estão muito distantes da visão automatizada da massa – de tal forma que ela nem sequer pode imaginar que esses problemas existem. Refém de uma exaustiva interpretação dos signos, a massa imagina que pode encontrar um sentido “verdadeiro” para os acontecimentos do mundo, o que faz com que ela se feche cada vez mais a um outro modo de experimentar ou de viver sem pretender mistificar a natureza. Um conhecimento prático, útil à vida que degenera, obstrui o engendramento de questões e problematizações que certamente vão perturbar um determinado modo de viver: é essa a razão para que o discurso do esquizofrênico seja colocado à margem do discurso oficial. Não interessa ao poder um discurso que ponha abaixo o império do significante: os delírios do esquizofrênico são suficientemente potentes para se sustentarem por si mesmos, e é inevitável que eles possuem uma grande força para produzir em nós os mais estranhos afetos. Já que Estamira tem algo de importante a comunicar ou, como ela mesma diz, a revelar, parece-nos ser fundamental fazer uma breve análise do seu discurso. Mas não pretendemos utilizá-lo para encontrar supostas verdades que estariam escondidas por detrás dele – não queremos cair no risco de uma interpretação que busca decifrar enigmas e impor aos leitores uma verdade que seria a mais “verdadeira” de todas. Utilizamos o discurso de Estamira como produção desejante que nos afeta ao produzir algo em nós mesmos e que nos leva à ação. Queremos levar adiante a revelação de Estamira ao dizermos coisas que, talvez, ela não tenha sequer sonhado. Servimo-nos do presente que ela nos deu como um estímulo para realizarmos um esboço de crítica aos valores dominantes do mundo moderno.
 sinopse do fime:

                 ESTAMIRA
Marcos Prado
BRASIL – 2006
121 min
Documentário. Estamira conta a história de uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais e trabalha há mais de vinte anos no aterro sanitário do Jardim Gramacho, um local renegado pela sociedade, que recebe diariamente mais de oito mil toneladas de lixo produzido no Rio de Janeiro. Com um discurso eloqüente, filosófico e poético, a personagem central do documentário levanta de forma íntima questões de interesse global, como o destino do lixo produzido pelos habitantes de uma metrópole e os subterfúgios que a mente humana encontra para superar uma realidade insuportável de ser vivida.

Um comentário:

Renato Guimaraes disse...

Descobri o filme por acaso. Me impressionou a lucidez que a loucura possui em certos momentos. De fato, parece que a loucura pode ter algo a nos ensinar. Seria o distanciamento da realdiade que permiti a Estamira ter clareza sobre tantos problemas?