terça-feira, 27 de setembro de 2011

A PROBLEMÁTICA DO CRACK - DEPENDÂCIA QUÍMICA, UM ESPAÇO DO CUIDADO...

Os riscos escondidos do crack - Antonio Lancetti*

Um dos maiores riscos da incidência do crack no cenário nacional é o da interrupção do processo de construção do sistema público de saúde mental brasileiro, tido como exemplar por representantes da Organização Mundial de Saúde, inclusive para países de grande porte, como Índia ou China.

A lei argentina de saúde mental, recentemente promulgada, é baseada em nossa lei, a 10.216, com a
diferença de que no país vizinho a internação compulsória deve ser decidida pela família e por uma equipe multidisciplinar com, pelo menos, a assinatura de um médico e um psicólogo. Aqui, basta a assinatura do médico.

Esse processo de construção de nosso SUS da Saúde Mental chama-se reforma psiquiátrica pelo fato de que nas últimas décadas foram fechados vários locais de horror (em torno de 60 mil leitos), onde a simples permanência de alguns dias deixaria qualquer leitor pelo menos mais deprimido do que entrou.

O resgate de cada um desses seres humanos exigiu um enorme esforço por parte dos terapeutas. A suspensão dos procedimentos iatrogênicos, como sequestro, maus tratos, tempos e espaços fixos e repetitivos e outras formas de desrespeito aos direitos, não foi suficiente.

Houve necessidade de criar, utilizando todos os saberes existentes (psiquiatria, psicanálise, psicologia social, socioanálise, esquizoanálise, arte, economia solidária, etc.), instituições velozes, criativas que operam onde as pessoas habitam.

Os chamados CAPS - Centros de Atenção Psicossocial vão se constituindo em serviços de 24 horas de funcionamento, com internações, integrados a serviços de emergência e moradias terapêuticas onde moram oito pessoas que saíram de internações de 10 ou 20 anos, mostram que o hospital psiquiátrico é cada vez mais prescindível.

Além desses serviços, hoje se faz saúde mental nos mais recônditos locais por meio da parceria de equipes especializadas com médicos de família, enfermeiros e agentes comunitários de saúde, atendendo inclusive casos graves, ajudando na diminuição da internação psiquiátrica, da violência e do consumo de drogas legais e ilegais.

Mas o chamado Movimento da Luta Antimanicomial (que conta com usuários e familiares de usuários) está em uma encruzilhada. Aprendeu a cuidar de casos graves desconstruindo manicômios e atendendo as crises nos bairros, melhorando a reabilitação das pessoas com grave sofrimento psíquico e agora, com o advento dos dependentes de crack, expostos na paisagem urbana e na mídia, devem enfrentar um clamor pelas internações em clínicas fechadas, primas-irmãs dos hospícios.

As cracolândias onde qualquer um é aceito são ao mesmo tempo manicômios a céu aberto, no dizer de Franco Rotelli, um dos principais líderes da Psiquiatria Democrática Italiana**.

Mas transformaremos esses manicômios criando outros manicômios?

As cracolândias são os manicômios pós-modernos, e os craqueiros os loucos do século XXI. E estão aí, nas regiões degradadas das cidades para mostrar nosso fracasso, nossa miséria existencial consumista. O modo como vamos enfrentar a questão expressará nossa sabedoria e ética.

O artigo de Drauzio Varella, da Folha de S.Paulo de 16 de julho, convoca a internação compulsória dos craqueiros e craqueiras e termina perguntando: "Se fosse seu filho, você o deixaria de cobertorzinho nas costas dormindo na sarjeta?".

Essa pergunta sugere imediatamente a diferenciação de crianças e adultos. Mesmo com famílias que não se importem com o cobertorzinho nas costas, interná-los à força implica a existência de um vínculo que se aproxime ao de pai e mãe. Gerará ódio, ressentimento e futuras rebeliões se forem brutalmente recolhidos e amontoados em grande número ou com metodologias negativas e baseada
s exclusivamente na abstinência.

Em segundo lugar, o que o doutor Drauzio talvez não saiba (e acredito que gostaria de saber) é que muitos desses homens, mulheres e crianças estão com graves problemas de saúde e já estão sendo internados em São Paulo (embora o sistema precise ser aperfeiçoado), em hospitais gerais e atendidos em Unidades Básicas de Saúde por equipes de Saúde da Família, pois eles não pedem para ser tratados da dependência, mas demandam atendimentos clínicos e, como consequência do vínculo com seus cuidadores, muitos pedem ajuda para abandonar o uso.

Internar ou prender todos os craqueiros é tão ideológico como pensar que eles vão sair daí pela própria vontade. Ou dito de outra forma, o problema não é internar - que na prática funciona como uma redução de danos -, mas sim como internar e, principalmente, onde e com que perspectivas.

E o que faremos com instituições fechadas que já estão sendo criadas pelo Brasil afora, especialmente as denominadas comunidades terapêuticas? Como se sabe, as instituições de contenção fundamentadas na abstinência possuem uma tendência à cronificação e algumas usam recursos violentos ou não se adequam às regras sanitárias vigentes.

As instituições que cuidam de crianças e adolescentes usuários de drogas não podem ser de contenção, mas de aceleração e criatividade. Em São Bernardo, por exemplo, há Centros de Atenção 24 horas para adolescentes dependentes de drogas, moradias fundamentadas em propostas pedagógicas de ação: meninos e meninas têm atividades o dia inteiro e à noite sessões de cinema. Em Vitória, Espírito Santo, o atendimento é feito a partir das equipes de Saúde da Família associadas ao CAPS Álcool e Drogas ou pelo consultório de rua... E há muitos trabalhos interessantes sendo realizados no Brasil.

Nessa hora de desespero, devemos tomar cuidado com os fenômenos que costumo chamar contrafissura ou tentação de cair no erro da guerra às drogas infiltrado na clínica e no alarmismo infundido na população.

A intervenção nas cracolândias exige ação e calma. Por enquanto no Brasil, a única pesquisa que demonstrou ter êxito significativo, em torno de 70%, foi a realizada pela UNIFESP - "O uso de cannabis por dependentes de crack - um exemplo de redução de danos", Eliseu Labigaline Jr. in Consumo de Drogas Desafios de Perspectivas, de Fábio Mesquita e Sergio Seibel, Ed. Hucitec, 2000 -, livro que leva apresentação de Drauzio Varella. A pesquisa constata mudança de comportamento, como parar de roubar a família, voltar a estudar, trabalhar e, inclusive, parar de usar maconha.

Mas nenhuma estratégia parece ser aplicável como receita única. Calma não significa paralisia, mas enfrentar o problema em sua complexidade de modo a não interromper o processo vitorioso e eficaz da reforma
psiquiátrica, mas aprofundá-lo.

Os riscos são muitos e, por isso, é sempre bom lembrar de que o problema das drogas está longe de depender exclusivamente da saúde. O termômetro que avaliará o valor e a ética do processo será a observância ou não dos diretos das pessoas assistidas e, consequentemente, a sua eficácia.
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*Psicanalista, autor de Clínica Peripatética, Editora Hucitec.
**Acompanhei os doutores Franco Rotelli e Angelo Righetti em uma visita à cracolândia de São Paulo e a expressão me foi transmitida por Roberto Tykanori, coordenador nacional de saúde mental.

Revista Brasileiros, fonte deste texto.
 DEPENDÊNCIA QUÍMICA: CUIDADO SIM; MILITARIZAÇÃO ESTIGMATIZANTE E ASILAR, NÃO!...
                             CUIDAR É INCLUIR...

2 comentários:

odila braga disse...

É IMPORTANTE QUE SE DIVULGUE, QUE SE AVOLUMA UMA DISCUSSÃO NESSE SENTIDO APONTADO POR LANCETTI, E QUE DIVULGUEMOS QUE O CONGRESSO DE ESQUIZOANÁLISE E ESQUIZODRAMA ACONTECIDO NOS DIAS 23, 24 E 25 DE sETEMBRO, QUE REUNIU PESSOAS DE TODO O BRASIL E DE OUTROS PAÍSES, VOTOU UMA MOÇÃO DE REPÚDIO À POLÍTICA QUE FOMENTA A SEGREGAÇÃO NAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS, POLÍTICA DE ASSEPSIA DOS ESPAÇOS, POUCO HUMANA E AUTORITÁRIA, PORQUE NÃO CONTEMPLA O DESEJO E O DIREITO DO OUTRO, MESMO QUE ESTE OUTRO PRECISE DE AJUDA. LANCETTI COLOCA MUITO BEM QUE É PRECISO APROFUNDAR O PROCESSO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA, E EVITAR RETROCESSOS NA POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL, QUE DEMANDOU TANTAS LUTAS PARA CONSEGUIR ABRIR NA SOCIEDADE, ESPAÇOS DE ACEITAÇÃO DA DIFERENÇA, TRATAMENTO EM LIBERDADE, DESOSPITALIZAÇÃO, ETC.
COMO BEM PONTUOU PAULO CÉSAR FRANCISCO, NO CONGRESSO DE ESQUIZOANÁLISE E ESQUIZODRAMA, O MOMENTO É DE RETROCESSO, ONDE APÓS AFROUXAREM-SE OS GUILHÕES QUE APRISIONAVAM OS LOUCOS, ARROCHAM-SE AGORA ESTES MESMOS GRILHÕES COM ESTE GRUPO HUMANO - O DOS DEPENDENTES QUÍMICOS, QUE SE CONSTITUEM A BOLA DA VEZ DA PARANÓIA SOCIAL, AQUELES A QUEM SE DIRIGE TODO O MEDO E A QUEM SE QUER RESPONSABILIZAR PELOS PIORES DRAMAS HUMANOS. MAIS UMA VEZ A SOCIEDADE ELEGE UM GRUPO PARA APONTAR SEU DEDO. TEMOS SIM, COM LANCETTI, E À PARTIR DO CONHECIMENTO ACUMULADO NA LUTA ANTIMANICOMIAL, QUE GRITAR BEM ALTO: EXCLUSÃO DE NOVO... NÃO. PODEM SER, SER NOSSOS FILHOS, DR DRÁUZIO, E É POR ESTE MOTIVO QUE QUEREMOS TRATA-LOS COM RESPEITO, AMOR E TOLERÂNCIA, RESPONSABILIZANDO-NOS TODOS PELO QUE ACONTECE NOS COLETIVOS HUMANOS, E NÃO PERMITINDO QUE ALGUNS PAGUEM ESTA MONSTRUOSA CONTA.

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Odila, querida... sua çucidez e propiedade me levou a pensar que podiamos fazer um semionário para refletir sobre esta realidade... Conversemos e vamos gerar no caminho linhas de vida onde hoje a morte eo preconceito campeiam... abs ternos, jorge