SER
Amauri Ferreira
Quando observamos um corpo, imaginamos que ele é e não que ele devém. Fixamos e atribuímos um nome e algumas qualidades a ele (a cadeira é um corpo sólido, é de cor cinza...). Não agimos de maneira diferente quando dividimos os corpos em humanos e não humanos, para, em seguida, fazermos distinções de nome, cor, sexo, raça, nacionalidade, profissão. Dizemos que alguém é Maria, é mulher, é branca, é brasileira, é bióloga. E assim imaginamos que também somos, no fundo, uma realidade fixa. Dessa maneira, reduzimos toda a realidade ao verbo ser: eis o nosso grande vício, a grande armadilha do ressentimento! Mas não há nada fixo no mundo, nem a cadeira, nem Maria, nem nós mesmos. Assim como acontece com todas as coisas do mundo, não paramos de mudar. É necessário compreendermos que não nos separamos do mundo nem mesmo quando acreditamos que somos isso ou aquilo – nem o mais fervoroso defensor da sua identidade está separado do devir. Mas compreender isso é uma tarefa muito difícil, pois a noção de identidade, que é um sintoma de ressentimento, é reproduzida através de uma violência cada vez maior pelos aparelhos do Estado. Certamente, o maior exemplo dessa violência que domestica massas são os meios de comunicação. Quanto mais somos informados pelos mass media, cada vez mais sentimos a necessidade de “corrigir” a realidade – em outras palavras: o péssimo hábito de julgar o mundo é intensificado pelos mass media. E isto é perfeitamente compreensível, já que uma quantidade cada vez maior de entretenimento faz aumentar a tagarelice. Mas, mesmo sob o império da besteira, a realidade segue escoando em nós e de nós para o mundo, sem nenhum objetivo a ser alcançado – mas continuamos a querer encobrir tudo isso através da linguagem! Se ainda nos agarramos à mentira do “eu”, continuamos a reprimir os nossos “eus”, isto é, os estranhos que nos habitam... Mas podemos fazer emergir esses estranhos através da arte, por exemplo. A arte nos faz tocar a fluidez do real porque ela suspende o nosso hábito de falar, de querer fixar tudo que muda. Afinal, sentimos a vida quando deixamos de tagarelar. Passamos a ouvir a enorme beleza das vozes do mundo quando acompanhamos o ritmo que escoa da eternidade...Poema em linha reta
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
[538](Álvaro de Campos)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
4 comentários:
"Afinal, sentimos a vida quando deixamos de tagarelar." Êta frase que me toca fundo! Meu pai já dizia que eu tinha diarréia verbal... Nos últimos anos tenho aprendido o valor e a importância do silêncio e do silêncio consentido e estou mais em paz comigo mesma...
Beijos Jorge
Anne
Anne, falas na poesia coma suvidade dos passarinhos, emora, aborde, corajosamente, as dores da nossa via crucis cotidiana... No dia-a-dia, falamos... e escutamos, se a balamça permite boas trocas, já está de excelente tamanho; nosso mundo é silêncio claustrafóbico ou vozerio ensurdecedor.
Sobre os outros, falo... com es... é meu exerc´cio...
Abraços, com ternura e a brisa do mar, Jorge
Também estou farta de semi-deuses, inclusive daquele que insisto em me vestir...
Abraços
Lillian, como é libertário aceitar a própria humanidade e se colocar na caminhada aberto ao novo , as mudanças e aos devires...Com carinho, Jorge
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